19/10/10

O neo-nasserismo de Helena Matos

No Blasfémias, Helena Matos dá voz a um gajo qualquer que diz que nunca houve palestinianos e que o que havia naquele território (tradicionalmente considerado parte da Síria) eram árabes, beduínos, etc., mas não "palestinianos".

Portanto a conclusão que podemos tirar é que, em 1948/49, os fundadores de Israel não expulsaram centenas de milhares de palestinianos, mas sim centenas de milhares de árabes; é falso que desde 1967 mantenham sobre sua ocupação os palestinianos dos "territórios" - na verdade, quem está ocupado pelos israelitas são os árabes dos "territórios"; e os colonatos, barreiras militares, muralhas, etc. que os israelitas constroem na margem ocidental não privam as aldeias palestinianas das suas terras, das suas reservas de água, dos caminhos e estradas que necessitam para circular... não! O que os colonatos, barreiras militares, muralhas, etc. fazem é privar as aldeias árabes das suas terras, das suas reservas de água e dos caminhos e estradas que necessitam para circular.

É uma tese com um passado histórico respeitável - sempre foi largamente a tese da Liga Árabe e dos que se opõem a qualquer "paz separada" com Israel (e por isso consideraram Sadat um traidor), já que para eles o conflito é entre Israel e a "nação árabe" no seu todo, não com qualquer "nacionalidade árabe" em particular. Dentro da OLP é a linha da Saika (que pretende, não uma Palestina independente mas um mega-estado pan-árabe dirigido pelo Baath sírio) e da Frente de Libertação Árabe (a mesma coisa, mas sob a liderança do Baath iraquiano); até certo ponto, era também a posição do Movimento Nacionalista Árabe / Frente Popular para a Libertação da Palestina, inicialmente fãs de Gamal Abdel Nasser e da "República Árabe Unida" (até à Guerra dos Seis Dias e a retirada egípcia do Iemén os terem desiludido com o regime do Cairo).

A tese de que toda aquela região sempre foi chamada de "Síria" (e, concomitantemente, que  "Israel", "Líbano" e "Jordânia" são "criações artificiais do imperialismo") também sempre foi popular entre o regime sírio, nomeadamente para justificar as suas pretensões de tutela sobre o Líbano.

Já tenho mais dificuldade em perceber alguns defensores da política israelita alinharem pelo mesmo diapasão (discutir sobre se os palestinianos são um povo em si ou apenas parte do povo árabe pode ser relevante para os conflitos internos dentro da OLP, mas não vejo em que altere muito os dados do conflito israelo-árabe/palestiniano).

Mas a deriva nasserista/baathista/pan-árabe de Helena Matos cai no erro de todos os nacionalismos que julgam que o que faz uma nação é um passado partilhado; não é - o que faz uma nação é o desejo de viver um presente e um futuro partilhado (e quando esse desejo existe, facilmente se inventa esse tal passado partilhado) - o caso mais paradigmático é mesmo o de Israel (uma nação deliberadamente criada por indivíduos que decidiram, de forma racional e voluntarista, constituir uma nova nação em vez de continuarem a pertencer às nações em que tinham vivido durante séculos), mas praticamente todas as nações surgidas no século XX andam lá perto (há uns séculos atrás, quem ouvia falar em "checos"? O que havia era "boémios", "morávios" e talvez mais um ou outro grupo; e que moçambicanos havia no século XIX? E paquistaneses antes da partilha da Índia? E bangladeshis? E os moldavos, que só são uma nação porque viram que a Roménia estava ainda mais falida que eles? E , já agora, em 1760 qual era a diferença entre o que veio a ser os EUA e o que veio a ser o Canadá?).

A verdade é que os "palestinianos" poderiam ser tão só e apenas "árabes" durante séculos, mas a partir do momento em que, após 1948, nos campos de refugiados começaram a aparecer grupos "palestinianos", que tiverem que lutar tanto contra Israel como contra a repressão jordana e egípcia (o primeiro morto da Fatah foi morto pelos jordanos, não pelos israelitas), surgiu uma identidade nacional palestiniana, distinta (embora não necessariamente contraditória) da identidade árabe, como das identidades tribais e clânicas pré-existentes. E a prova disso é que durante décadas o grupo palestiniano mais importante foram os "nacionalistas palestinianos" da Fatah, enquanto nunca ninguém ligou muito aos "nacionalistas árabes" da Saika ou da FLA, nem à primeira direcção da OLP, de Ahmed Shukeiri (que havia sido largamente escolhida pela Liga Árabe) - ou seja, os "palestinianos" consideram-se um povo, e é isso que os faz um povo (creio que foi Alexandre Herculano - será que os liberais do Blasfémias não o leiem?! - que disse "Nós somos portugueses porque quisemos ser portugueses").

15 comentários:

Jahwork disse...

Excelente texto. Sem compromissos nem parcialidades.

Coisas simples, sem estórias, eternizadas na História.

Outside

Jorge Nascimento Fernandes disse...

Não sei quem é o Sr. Miguel Madeira, mas reconheço que por vezes,o que é raro,surgem textos bem feitos na Internet. Eu próprio, que costumo ler sobre estes assuntos,nunca tinha abordado a questão deste ponto de vista. Bem haja.

Luis Rainha disse...

Belo post e excelentes respostas lá no estádio do "inimigo"...

Nuno Santos Silva disse...

Não é "leiem", mas "lêem"...

Miguel Madeira disse...

Caro Nuno Santos Silva,

realmente o corrector ortográfico deu "leiem" como um erro, mas como não gostei de nenhuma das sugestões que ele me deu, deixei ficar o "leiem"...

Niet disse...

Oh. Manuel Madeira: Confesso-lhe a minha admiração pelo ver debruçado nesta hora sobre a montanha abracadabrantesca das teses sobre o Judaismo versus Nacionalismo e tragédia(s) Identidárias. Problemas sem fim ,meu caro, que Agamben,Ignatieff ou B.R. Barber tentam perceber! Salut! Niet

Niet disse...

Oh. Manuel Madeira: Confesso-lhe a minha admiração pelo ver debruçado nesta hora sobre a montanha abracadabrantesca das teses sobre o Judaismo versus Nacionalismo e tragédia(s) Identidárias. Problemas sem fim ,meu caro, que Agamben,Ignatieff ou B.R. Barber tentam perceber! Salut! Niet

Ricardo Alves disse...

Excelente texto. Parabéns.

Anónimo disse...

Excelente post.

Só um senão:


"Mas a deriva nasserista/baathista/pan-árabe de Helena Matos cai no erro de todos os nacionalismos que julgam que o que faz uma nação é um passado partilhado; não é - o que faz uma nação é o desejo de viver um presente e um futuro partilhado (e quando esse desejo existe, facilmente se inventa esse tal passado partilhado)..."

O passado, presente e futuro formam um gestalt indecomponível.

O passado de perseguição de judeus, ciganos, etc foi/é uma invenção?? A tese de Anderson (que a identidade nacional assenta numa invenção ou na postulação de uma comunidade imaginária) nunca me pareceu inteiramente convincente. Teria sido impossível "inventar" ou "imaginar" uma identidade comum sem uma invocar uma história partilhada. Mais: se assim fosse, a invenção, o imaginado, não teria qualquer fundamento existencial ou histórico. Anderson não explica os porquês do enraizamento da identidade nacional.

Este seu argumento talvez seja mais plausível se o aplicarmos ao novo mundo (ausência de uma história comum?). Contudo, mesmo no caso dos EUA (exemplo), podemos falar de uma história comum: a condição do emigrante em busca da terra prometida e o juramento de fidelidade à Constituição (um acto de fidelização a uma tradição)... etc...

Gadamer explora este assunto no seu Wahrheit und Methode. Vale a pena ler o que ele escreve sobre o assunto (a relação indecomponível -gestaltiana- entre passado, presente e futuro)

Anónimo disse...

"Nós somos portugueses porque quisemos ser portugueses")


Perante esta afirmação do venerável Herculano, pergunto-lhe isto: Porque é que nós quisemos ser Portugueses??? (eu não acho que a nossa identidade emanou de uma decisão colectiva, mas pronto)

Este "desejo" ou "necessidade" de sermos Portugueses (seguindo a sua lógica) surgiu de um vácuo histórico?? Esta é a maior vulnerabilidade no pensamento de Anderson (bem sei que não o mencionou, estou apenas a ilustrar): a subvalorização da condição existencial e a concomitante sobrevalorização da intenção, da vontade e do puramente subjectivo no processo da formação da identidade nacional ou comunitária.

As condições existenciais são importantíssimas, caro Miguel Madeira. Não podem nem devem ser ofuscadas pelo subjectivismo Cartesiano que, como sabe, privilegia a intenção e os actos mentais (a comunidade postulada ou inventada pela imaginação)

Não quero ser chato mas isto parece-me importante. Vital.

Miguel Madeira disse...

Anónimo 15.39:

É capaz de ter razão. Na verdade o que muitas vezes acontece não é tanto a invenção de um passado partilhado, mas sobretudo o esquecimento das partes não-partilhadas desse passado (p.ex., se as tribos A, B e C tiverem um passado de alianças variáves, e se surgir um nacionalismo correspondente às tribos A e B, todas as batalhas de A e B contra C serão lembradas como momentos históricos fundadores, enquanto as batalhas de A contra B e C serão varridas para debaixo do tapete).

Anónimo disse...

" Don't get involved in partial problems, but always take flight to where there is a free view over the whole single great problem, even if this view is still not a clear one."

Ludwig Wittgenstein

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Obrigado pela sua honestidade intelectual, caro Miguel. Demonstra, desta forma, não ser apenas inteligente.


Cumprimentos,
Mariana
:)

Niet disse...

Castoriadis e Morin distinguem legado político Árabe- Existe uma relação de afrontamento israelo-árabe ,desde a data da fundação(1948) de Israel. Alimentada quer pela intransigência religiosa das monarquias electivas árabes, quer pelo legado histórico disfarçado hipocritamente pelo antisionismo inglês, o soviético e os equívocos dos americanos " libertadores ", patente no revelador silêncio que prolongou demasiado a revelação de Auschwitz por Rosevelt e Churchill(1943). Isso são questões que mexem com os fundamentos do poder, da política e da autonomia- e sua instituição em dois mundos muito diferentes:o mundo Árabe e o legado judaico-cristão do chamado " Ocidente ", onde Israel se inclui.Sinalizo algumas pistas propostas por Castoriadis e Morin sobre o que se passa entre " O vazio do Ocidente e o Mito Árabe", insertos no "Carrefour 4- A Ascensão da Insignificância",com tradução portuguesa. Nenhum sinal de positivismo ou de de neo-pragmatismo político disfarçados lhes podem ser assacados,releve-se desde já. Castoriadis diz: " Sabemos que durante todo um periodo os Árabes foram mais civilizados que os Ocidentais. Depois eclipsaram-se. Aquilo que captaram da herança da Antiguidade nunca foi porém de natureza política; a problemática política dos Gregos, fundamental para a Democracia, não fecundou nem os filósofos nem as sociedades árabes(...)Não se trata de " julgar " os Árabes mas de constatar que o Ocidente precisou de dez séculos para conseguir, com maior ou menor sucesso, libertar a sociedade política do domínio religioso ". E precisa: " O Islão, como aliàs todas as religiões, pretende ser uma instituição total e recusa a distinção entre o religioso e o político. Esta corrente completa-se e auto-excita-se através de uma retórica " anti-colonialista " acerca da qual o mínimo que podemos dizer, no caso dos países árabes, é que ela é vazia. Se existem hoje árabes na África do Norte é porque esta foi colonizada por eles a partir do séc,VII; o mesmo se aplica aos países do Médio Oriente e os primeiros colonizadores não-Árabes do Médio Oriente e da Africa do Norte não foram os europeus mas outros muçulmanos- primeiro os Turcos " seldjuks " e depois os Turcos otomanos. O Iraque permaneceu sob domínio turco durante cinco séculos e sob protectorado britânico durante quatro anos ".
Edgar Morin, no referido diálogo, depois de salientar que o processo de laicização histórico do Islão podia ter sido anterior de três séculos ao do Ocidente, tal não se verificou. E pelo contrário, acrescenta," mesmo nos países árabe-islâmicos onde existiram poderosos movimentos de laicização, a democracia parecia uma solução fraca quando comparada à revolução, a qual permitia simultâneamente a emancipação em relação ao Ocidente dominador. Ora, tanto a promessa da Revolução Nacionalista como a da Revolução Comunista eram promessas religiosas, uma trazendo a religião do Estado-Nação, a outra a da salvação terrestre ". Salut! Niet

Niet disse...

A Questão da Palestina.
Coloca-se mesmo em sobressalto a tese avançada pelo texto do M. Madeira sobre o papel da OLP para a libertação da Palestina. Apesar de não se poder tirar mérito ao despoletar de uma análise que importa colectivamente apreciar, e que M. Madeira teve a coragem de incitar- desafiando-nos. Portanto, culpas no cartório têem que ser partilhadas,helàs. De imediato,a OLP surje como o que se pode configurar como a construção de um travão, " político-militar ", pago pelos aliados dos EUA na região e mais tarde pelo próprio Departamento de Estado-USA, para " conter " e desarmar as duas grandes organizações de luta armada palestinianas, a FPLP, criada na mesma altura(1959) da OLP, e a FDLP, de raíz m-l, criada dez anos mais tarde. Ninguém hoje sabe onde residem os estados-maiores das organizações rivais da OLP, ao que se julga " integraram-se" quer no Hamas, quer no tentacular movimento intitulado, " Irmãos Muçulmanos ", que se espalha pela Siria, Líbano, Egipto e Iraque. Niet

Anónimo disse...

Para o Miguel S P

"Palestinian researcher Dr. Khaled Al-Hroub, of Cambridge University, recently published an article titled "The Hamas Enterprise and the Talibanization of Gaza,"[1] in which he wrote that the claims of the Islamist movements regarding their promotion of an "Islamic culture" are utterly hollow, and that their actions in implementing the Islamic shari'a are detrimental to Islamic unity and women's rights.

http://www.memri.org/report/en/print4696.htm