18/10/10

Um comentário de João Bernardo: "espaço de trabalho" e "espaço público"

A propósito deste post, o João Bernardo enviou-me a seguinte resposta que, com o seu acordo, aqui se publica na íntegra. 

Caro Miguel Serras Pereira,
Acabo de ver com estupefacção que leste aqueles meus artigos. Nunca pensei que alguém em Portugal os lesse. Mas quero dizer-te que estou de acordo com as ressalvas finais que fazes. No Brasil, uma boa parte do que se denomina Movimentos Sociais visa precisamente o que chamas «a transformação da praça pública». Penso que, com o fim da grande empresa fordista, com a precarização das relações de trabalho e com a diluição da fronteira que antes separava os ócios da actividade laboral, também deixou de existir uma diferenciação nítida entre espaço de trabalho e espaço público. Movimentos como o dos sem-tecto e o do passe-livre, além de outros localizados geograficamente, contam-se entre os elementos principais da luta anticapitalista no Brasil, embora a sua acção não ocorra dentro de empresas. O mesmo se passa no México e decerto noutros países. Mas estes movimentos contribuem para pôr em causa o capitalismo precisamente porque não reproduzem os interesses corporativos, especialmente não reproduzem a fronteira que separa os assalariados do Estado daqueles outros assalariados que trabalham para patrões privados. Ora, é aqui que entra a questão dos sindicatos. Numa longa resposta que dei a um leitor, no último artigo da série que mencionaste, escrevi a certo passo:

Se suceder desta vez o que sucedeu noutras ocasiões, a maioria dos trabalhadores em países onde a economia está em recessão ou estagnada, ou seja, nos Estados Unidos, no Japão e em alguns países europeus, preferirá aceitar uma descida do nível de vida a pôr em risco a continuidade dos empregos e contribuir para o aumento da taxa de desempregados. Contrariamente ao que sucede com os professores universitários e com os alunos que dispõem de bolsas de pesquisa e que, portanto, podem ganhar a vida tranquilamente dando aulas e escrevendo monografias acerca da crise terminal do capitalismo e do horizonte de lutas que se avizinha — ou que já está aí — os trabalhadores ganham o sustento vendendo a força de trabalho e só optam pela revolução quando sentem que ela é uma alternativa viável a muito curto prazo. É por isso que há mais «revoluções» nos campi universitários do que fora deles. Em alguns daqueles países, nos serviços públicos, onde os sindicatos ainda são relativamente fortes, é possível fazer greves que, pelos seus efeitos colaterais, paralisem ou retardem outros sectores da economia. Mas não se trata nestes casos de um confronto de classes, e pretendi chamar a atenção para isso no último artigo da série, infelizmente em poucas palavras, porque o artigo já estava demasiado longo. Porém, se o confronto se ampliar do sector público para as empresas privadas o caso muda de figura, e então já será posível falar de uma luta anticapitalista. Se tal ocorrer, a França será a primeira candidata porque, de todos os países da Europa ocidental, é aí que a taxa de sindicalização é mais baixa. Por isso a França tem tido as lutas mais radicais, sem sindicatos suficientemente poderosos para as poderem conter.

Para avaliar as actuais lutas em França, é conveniente recordar que a França não é um dos países em crise na zona do euro. E é bom saber que 20% da população activa francesa estava sindicalizada na década de 1970, percentagem que caiu para 10% nos meados da década de 1980, para 9% nos últimos anos da década de 1990 e para menos ainda na década actual. A extrema-esquerda portuguesa devia meditar sobre isto, quando implora às centrais sindicais o favor de fazerem a revolução que nós não somos capazes de fazer


Cordialmente,


                      João Bernardo.

3 comentários:

Niet disse...

MS. Pereira: Não brincas em serviço, meu caro. Óptimo texto intercontinental e belas e dinâmicas(!) ideias sobre o que são hoje as Greves de Massas. A radical Rosa Luxembourg bem nos tinha advertido contra as "teorias pedantes" e as " pequenas guerrilhas sindicais " onde, quando se misturam ´a priori `os cálculos e as estatísticas dos estados-maiores partidários e sindicais tudo se perde...no jogo reformista, das concessões nas costas dos trabalhadores e no segredo dos acordos de gabinete. É o que se está a passar em França. João Bernardo determina um justo ângulo de visão e joga com desassombro nos sortilégios da espontaneidade revolucionária. Que é a única forma de se neutralizarem os instintos burocráticos e demissionários dos partidos clássicos. " O que temos necessidade é de menos " disciplina ", de menos " educação política ", de menos precisões sobre os custos e consequências que, em oposição, de uma acção de classe resoluta e verdadeiramente revolucionária, capaz de tocar e envolver as camadas mais extensas das massas de proletários inorganizados, mas revolucionários pela sua simpatia e a sua condição ", R. Luxemburg,1906. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Niet, quem, na circunstância, não brinca em serviço é o João Bernardo. Eu limitei-me a ceder-lhe a minha antena - ou convidei-o a ocupá-la - para precisar melhor as suas posições e concepção do "espaço público".
É uma honra tê-lo feito e ter podido contar com a sua disponibilidade para esta colaboração com o Vias.
Salut, et bon vent

msp

Anónimo disse...

Para além da frescura e da radical irreverência das ideias do João Bernardo, sobejamente sublinhadas e festejadas pelo Niet, o que não deixa também de me espantar é o facto de elas virem de um país com economia em crescendo, o que poderia explicar algumas esperanças no sistema, ao invés do que acontece num país como Portugal, onde o seu estado de agonia não inspira mais do que umas institucionais e ordeiras greves, e umas loas sobre o que não seria o derramar de graças e bençãos, se eventualmente fosse conseguida a eleição de Manuel Alegre.

nelson anjos