11/10/10

Uma feminista que soube e contou o que “a casa gastou” (2)

“A minha avó morreu nos anos setenta, depois de alguns meses no hospital. A minha mãe aproveitou o internamento dela para arrumar os seus armários e gavetas e deitar fora o “lixo” que continham, já que a minha avó era uma célebre coleccionadora de todo o tipo de objectos. O conteúdo do enorme armário de carvalho revelar-se-ia bastante normal (…). Já o outro armário era, de facto, um pequeno armazém ou um barco a vogar por águas desconhecidas. Estava cheio de detergentes que os anos tinham praticamente petrificado, garrafas de óleo rançoso, diversos quilos de açúcar, farinha e café (aparentemente, os produtos base da dieta familiar), algumas embalagens de chá, biscoitos, massas, latas de polpa de tomate (a Avó adorava cómoda italiana), feijões, e até um ou dois quilos de sal, embora ninguém se recordasse de ter havido falta disso. Os produtos alimentares ocupavam as prateleiras de baixo. As de cima estavam atafulhadas de objectos de todo o género: um rolo de tule branco, lãs de diferentes cores, meias de lã e de vidro novas e remendadas (algumas, creio, do tempo da II Guerra Mundial), tinta preta e castanha para o cabelo, champôs, sabões, cremes para as mãos, papel higiénico, antibióticos fora de prazo, aspirinas, insulina (embora não houvesse diabéticos na família) e diversas outras cápsulas sem rótulo, algodão em rama, e cerca de cinco ou seis embalagens de toalhetes higiénicos. Mais do que um armazém, o armário era um museu dedicado à escassez comunista.”

“Mas só ficámos verdadeiramente surpreendidas quando abrimos uma das gavetas. Aquilo era demais até mesmo para nós, tão propensas quanto ela a acumular objectos. A gaveta estava a abarrotar de sacos de plástico. (…)”

“Estou convencida de que as gavetas da minha avó explicam não apenas como sobrevivemos ao comunismo, mas também o porquê do seu fracasso. O comunismo falhou devido ao medo e à falta de confiança no futuro. É certo que as pessoas acumulavam todos estes objectos devido à pobreza – mas estamos a falar de um tipo de pobreza muito específico, uma pobreza generalizada, partilhada por toda a gente, um estado de carência e privação praticamente irremediável, pois não podia ser resolvido pelas palavras, as declarações, as promessas ou as ameaças dos políticos. Além disso, mais importante ainda, estas práticas de acumulação e reutilização constituíam uma necessidade, porque no fundo ninguém acreditava num sistema que, ao longo de mais de quarenta anos, se mostrou continuamente incapaz de satisfazer as necessidades elementares dos cidadãos. Enquanto os líderes acumulavam palavras sobre um futuro luminoso, as pessoas comuns acumulavam quilo de farinha e açúcar, frascos e copos, meias de vidro, pão duro, rolhas, cordas, pregos e sacos de plástico. Se os políticos tivessem olhado, uma vez que fosse, para dentro dos nossos guarda-fatos, caves, armários e gavetas – sem ser para confiscar livros proibidos ou propaganda subversiva -, teriam visto o futuro que estava reservado aos seus magníficos planos e ao próprio comunismo. Mas não o fizeram.”

(De: “Como Sobrevivemos ao Comunismo Sem Perder o Sentido de Humor”, Slavenka Drakulic, Edições “Pedra da Lua”)

(publicado também aqui)

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