“Isto é linguagem de cavador e mineiro, com todo o respeito por cavadores e mineiros. Isto não é linguagem de um responsável político que se quer levar a sério.” Estas declarações foram proferidas recentemente num canal de televisão. São declarações de um responsável político que se quer levar a sério. No caso, trata-se de um antigo ministro, ontem líder do maior partido português da actualidade, hoje comentador político. Poderiam ser, por certo, declarações proferidas por outro similar do insigne senhor doutor Luís Marques Mendes. Poderiam, por exemplo, ser declarações de uma ex-juíza do Tribunal Constitucional, ex-eurodeputada e actual presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, que ainda bem recentemente, em busca da dignidade perdida do parlamentar, achou por bem declarar que o “sentido de entrega” dos senhores e senhoras deputadas era “superior ao do cidadão comum”, terminando este seu estultíssimo exercício de politologia desferindo uma estocada final contra o dito cidadão comum: por este a senhora presidente entende essas “pessoas que estão habituadas às suas vidinhas”.
Cito estas declarações porque julgo falarem-nos com invulgar clareza sobre a natureza política de quem as profere. Essa natureza é a da antidemocracia. Porque democracia não é apenas alimentar a ideia de que todos podemos votar. É também apostar com firmeza no princípio de que todos podem ser eleitos. A clareza da crítica antidemocrática subjacente às palavras de Mendes e de Esteves é por isso verdadeiramente perturbadora. Nomeadamente, revela o enorme à-vontade que os membros da elite política continuam a ter para maltratar o que consideram a massa que lhes caberá representar. A elite política goza hoje de uma liberdade absoluta incompatível com a democracia, nomeadamente uma liberdade absoluta que lhe permite agir a despeito dos próprios cidadãos que a elegem. Já não se trata, repare-se, de cumprir ou deixar de cumprir, representar ou deixar de representar, mas de não reconhecer ao mineiro e ao cavador, à gente do “comum” e da “vidinha”, qualquer politicidade.
Depois de um período como o dos anos da Revolução de Abril, em que os elogios ao “cidadão comum” – o povo, as massas, os trabalhadores, os operários, ele havia nomes para todo o gosto – não escassearam, a chamada classe política de novo subiu ao Olimpo da vida, longe da “vidinha” de cavadores e mineiros, onde impunemente dá provas do seu desprezo por quem dos seus círculos está excluído. Não duvido por um momento que o que motiva o senhor doutor Marques Mendes ou a senhora presidente Assunção Esteves seja cumprir a missão de servir a pátria, o partido, a empresa, os amigos, a família, o que quer que seja. Mas também os motiva, seguramente, a ideia de que a democracia não pode ser abandonada a si própria. A ideia de que se todos podem eleger nem todos podem ser eleitos. A ideia de que só os que falam a língua de prata dos parlamentares têm direito à voz política. E que só quem olha o mundo do alto do palácio de São Bento tem direito a que a sua vida seja entendida como plena e não como miniatura da vida dos eleitos.
Dir-me-ão, a terminar, que este meu texto acaba por resvalar desnecessariamente para o terreno do populismo e da crítica populista aos políticos. É verdade, resvala. E creio que é necessário, nos tempos que correm, assumir esta necessidade. Com o cuidado, porém, de construir uma crítica populista que prescinda do que, na história do populismo, muitas vezes foi a sua face mais visível, o rosto do líder. Trata-se assim de uma crítica populista feita não no sentido de tirar Mendes e Esteves para lá colocar quem fale a verdadeira, autêntica e genuína língua do povo. Sabemos hoje que tal verdade e tamanha autenticidade não existem, e ainda bem que não. O povo, seja isso o que for – seja o cavador ou seja o mineiro ou seja o cidadão comum –, é coisa demasiado viva para caber nas representações dogmáticas, estereotipadas e bárbaras que resultam do racismo de classe que faz a carreira de pessoas como Marques Mendes e Assunção Esteves.
artigo do i de 23 de Dezembro
3 comentários:
«a chamada classe política de novo subiu ao Olimpo da vida, longe da “vidinha” de cavadores e mineiros, onde impunemente dá provas do seu desprezo por quem dos seus círculos está excluído»
E pronto lá temos a mesma conversa mentirosa ou covarde de considerar a classe politica toda igual, como se o autor não soubesse que há partidos nutrem o mais profundo respeito por quem trabalha.
Já o "populares" dos telejornalistas é dum elitismo nauseabundo.
"Racismo de classe", gostei. O actual MNE também disse com toda a convicção que "filho de médico é melhor médico e, filho de operário é melhor operário" são todos robots do deus/capital.
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