Todos os tradutores cometem erros, têm as suas distracções ou sucumbem à pulsão obscura, ainda que felizmente intermitente, do estado puro daquilo a que, um dia, em conversa, ouvi o meu amigo e confrade José Bento chamar a "vontade de asneirar". Nunca pretendi ser excepção à regra e, no que possam ter de menos injustificado, as minhas traduções muito devem a certas observações de revisores, editores e/ou amigos que me permitiram, antes da publicação, beneficiar de correcções ou sugestões preciosas. À falta desta leitura prévia de outra pessoa que não seja o próprio tradutor, é fatal que este deixe, aqui ou ali, aqui e ali, subsistir no seu trabalho traições supérfluas — que as há também permanentes e consubstanciais, requeridas pela própria fidelidade ao exercício do jogo metamórfico de linguagem aqui em jogo — e escreva "palavra" em vez de "mundo" por ter lido "
word" onde estava "
world" — como já me aconteceu ao verter um parágrafo de Steiner —, ou de outro modo reitere a presença do diabo nos pormenores.
Mas, hoje, parece ter-se instalado em parte do mundo da edição uma prática funesta, tanto para esses "consumidores", ou co-autores e co-tradutores finais que são os leitores, como para os tradutores "originais" ou propriamente ditos, os quais, por semelhante caminho, além de traírem forçosamente e sempre, numa medida ou noutra, para o melhor e para o pior, devido à natureza impossível da sua profissão, se vêem também traídos por uma espécie de
editing que, a coberto da revisão indispensável, certos editores autorizam, senão promovem, sem se darem ao menos ao trabalho de ouvir o tradutor inicial.
Por conseguinte, este último terá de fazer, doravante, saber que, quando, numa tradução por ele assinada, se fala de um doente em "estado de vegetação" em vez de em "estado vegetativo" (ou em vez de um doente "que vegeta"), o leitor deverá creditar à conversão da revisão em
editing a inovação da fórmula;
idem, no caso em que a "alma", vertendo
soul, se transforma em "vida mental"; ou quando, substituindo a opção do tradutor de importar
Monsieur ou
Madame (ou as abreviaturas
M. e
Mme.) como forma de tratamento, o resultado é o leitor ver-se confrontado com alguém que trata um(a) professor(a) por "Senhor(a) X"…
Podia multiplicar os exemplos
ad libitum (atenção, eu não escrevi: "libidinosamente", mas não é certo que não fosse sob essa forma que o
ad libitum se veria editado segundo os critérios de uma parte da aguerrida vanguarda dos novos critérios de edição), mas, para bom entendedor… Desculpem-me, pois, por uma vez, este exercício
pro domo, um pouco à laia de pródromo de uma questão a que talvez ainda tenha de voltar. Tanto mais que há outros aspectos menos triviais da "tarefa do tradutor", que se referem aos critérios da sua fidelidade e das suas traições, e que levantam questões filosóficas e políticas cujo alcance cobre um horizonte demasiado amplo para o podermos confiar aos profissionais — aos profissionais da filosofia, da literatura ou da tradução, quero eu dizer, pois que, dos da política, o melhor será que, com a máxima prontidão possível, e para garantirmos uma das condições necessárias da democracia, deles nos vamos livrando.