31/03/12

Quem era realmente Mohamed Merah?

Was Toulouse killer a police informant? (The Independent):
Media reports point to close relationship with French security service despite official denial.
 
The head of the French internal security service has denied suggestions that authorities "missed" the Toulouse gunman because he was a police informer. Bernard Squarcini took the unusual step of intervening personally to quash speculation that Mohamed Merah was an indic or "snout" for one of his own agents in Toulouse.
Paradoxically, however, the allegations, including stories in the Italian and French regional press, began with a remark by Mr Squarcini himself. The speculation has since been amplified following comments by a retired head of one of the two French security services merged under Mr Squarcini's control four years ago.

Last Friday, the day after Merah, 23, was shot while resisting arrest, Mr Squarcini told Le Monde that the killer had asked, during his 32-hour siege, to speak to a Toulouse-based officer in his agency, the Direction Centrale du Renseignement Intérieur (DCRI). It was this agent – understood to be a young woman of North African origin – who had interrogated Merah when he returned from a two-month visit to Pakistan in November last year.

The DCRI chief told Le Monde newspaper that Merah shocked the agent by saying: "Actually, I was meaning [before the siege] to call to say I had some tip-offs for you. But, actually, I was going to bump you off." In French, he used the word fumer, which means "to smoke" but in slang translates to "murder" or "waste". He also used tu, the familiar word for "you".

In other words, Merah appeared to have a friendly relationship with the agent and intended to lure her into an ambush by pretending to have information about radical Islamist activities in Toulouse.(...)

 In an interview this week with the Toulouse paper La Dépêche du Midi, a former security chief, Yves Bonnet, said it was "striking" that Merah seemed to have a DCRI "handler". "Having a handler, that is not an innocent thing," he said. "I don't know how far his relationship, or collaboration, with the service went but it is a question worth raising.

28/03/12

Castoriadis sobre as condições e tarefas de uma alternativa ao capitalismo burocrático mundializado

Repesco aqui uma entrevista de Castoriadis, datada de 1993, que põe bem evidência algumas das tarefas atrasadas e das condições requeridas para uma alternativa política democrática ao governo do capitalismo burocrático mundializado - do qual a "financeirização" e a "economia de casino" são sintomas que, ao mesmo tempo, funcionam peculiarmente como "cortinas de fumo" — ocultando, por exemplo, o facto de a ordem capitalista actual não ser um "capitalismo de mercado", mas, justamente, "um capitalismo burocrático, com empresas por vezes mais poderosas do que os próprios Estados"…

A entrevista, sob o título "Cornelius el griego", foi conduzida por Rolando Graña, e publicada no jornal Página 12, de Buenos Aires, a 5 de Setembro de 1993.


Cornelius Castoriadis. —Marx se equivocó en sus vaticinios sobre la economía capitalista. El quiso ser el Newton de la economía capitalista: establecer leyes inmutables. Pero fue des¬mentido por la realidad. El problema es entender por qué y en qué se equivocó. Mi opinión es que había un error de origen que consistía en creer que el capitalismo engendraría cada vez más miseria. No hubo tal pauperización, paradójicamente, por¬que los obreros resistieron, lucharon y pudieron arrancar mejoras casi equivalentes al aumento del nivel de productividad. Por el contrario, entonces, el nivel de vida aumentó considerabl¬mente. Es curioso, pero Marx, que había dicho que la Historia era la historia de la lucha de clases, cuando llegó al análisis del capitalismo moderno olvidó la resistencia de los obreros, o sea, la acción de los seres humanos. Detrás de todo esto hay una especie de determinismo objetivista: la historia de la humani¬dad está regida por la historia de las fuerzas productivas y no le queda ningún lugar a la creación humana, los hombres no importan.

Rolando Graña.—Algo que en Lenin se volvió autoritarismo.
C.C.— Pero ya en Marx había algo que en manos de Lenin se volvió un arma criminal: la idea de la ortodoxia. Una teoría es verdadera, las otras falsas: "Nosotros los marxistas poseemos la única concepción verdadera y esta única concepción corresponde a los intereses de clase del proletariado y por ende no¬sotros y sólo nosotros somos los representantes del proletariado. Los otros son enemigos de la clase obrera y por ende hay derecho a fusilarlos". Marx no fusiló a nadie pero Lenin sí.

R.G.— Usted suele decir que este tiempo se caracteriza por el triunfo del imaginario capitalista. ¿Cuáles son sus características y sus consecuencias?
C.C.— Asistimos a la dominación integral del imaginario ca¬pitalista, que consiste en la centralidad de lo económico, la expansión indefinida y pretendidamente racional de la produc¬ción, del consumo y del ocio, que cada vez es más planificado y manipulado. Los rasgos del imaginario capitalista son bastante difíciles de precisar y tanto Marx como Weber vislumbraron algunos de ellos pero ni uno ni el otro (precisamente porque ambos eran racionalistas) pudieron calificarlo de "imaginario capitalista''. Marx hablaba de la expansión de las fuerzas productivas. Hay una frase muy bella en El Capital: "Acumular, acumular, esa es la ley y el profeta". Pero como Marx no tuvo en cuenta el deseo de los hombres no vio que había una segunda parte para su proverbio. Que no era solamente "acumular, acumular", sino también "consumir, consumir". La ley es "acumular", pero el profeta se llama ''consumir". Y esto ni él ni Weber lo vieron. El tercer imperativo del capitalismo es "racionalizar, racionalizar": la producción, la educación, todo. Y hay un cuarto imperativo que es ''dominar, dominar": todo puede ser dominado, la naturaleza, la sociedad, hasta la muerte.

26/03/12

Vergonhoso

Estes pseudo-sindicalistas gostaram tanto de ajudar o governo a tramar os trabalhadores, que agora decidiram tornar-se seus porta-vozes, desvalorizando a última greve geral. Para tentar limpar as mãos de tanta porcaria, queixam-se de que o governo não começou ainda a implementar "as prometidas políticas de emprego". Mas alguma vez acreditaram nisso?! Têm algum problema cognitivo, ou acham que nós é que somos estúpidos? Se os tivessem no sítio, ameaçavam com a denúncia do acordo de rendição que assinaram, em vez de se lamentarem a jornalistas.

24/03/12

Aprendiz de Salazar

“defesa da democracia é garantir a paz pública, segurança para que os portugueses possam viver tranquilamente”

Podia ter sido proferido por António de Oliveira Salazar. Mas quem o disse foi um seu aprendiz, Miguel Macedo, ministro da Administração Interna. Também aproveitou o momento para elogiar o comportamento da CGTP, incluindo a sua intolerância perante movimentos que não controla:

"Aquilo que aconteceu no Chiado não tem nada a ver com a manifestação da CGTP, que decorreu tranquilamente, com sentido cívico e de tranquilidade. Quero sublinhar também que em frente à Assembleia da República há imagens em que elementos da CGTP não permitiram que fosse confundida a sua manifestação com aqueles elementos que provocaram a situação no Chiado.”

Quando é que a CGTP se cansará de tantos elogios daqueles que pretensamente combate?...

O resultado imprevisto do Acordo Ortográfico

Os defensores do AO apresentaram-no como uma forma de uniformizar a escrita da língua portuguesa; alguns dos seus críticos dizem que é uma tirania estatista, com o Estado a querer mudar a maneira como as pessoas escrevem.

Mas, atendendo à carrada de comentadores que terminam as suas crónicas dizendo "Fulano escreve de acordo com a antiga ortografia", e aos correctores ortográficos que agora vêm em duas versões (pré- e pós-AO), parece-me que o resultado prático acabou por ser que, agora, o "Português de Portugal" tem duas normas ortográficas socialmente válidas (note-se que não digo legalmente válidas), e cada um pode escolher qual quer seguir sem se considerar que está a escrever "mal" - no fundo, entramos numa situação parecida com a da Galiza, em que há duas normas concorrentes sobre qual a forma "correcta" de escrever galego.

Ou seja, contrariamente aos objectivos do acordo, não se uniformizou nada (muito pelo contrário); por outro, inversamente ao que diziam alguns críticos, não há nenhuma estatização da língua: muito pelo contrário - neste momento, na prática, há muito mais liberdade para escrever de forma diferente da ortografia "estatal".

23/03/12

Um desprezo histórico democraticamente desprezível

Anda por aí um post que — partindo o seu autor do pressuposto de que a violência e a força bruta são as figuras por excelência da razão e tanto o mais perfeito meio como o fim último de toda a acção política — apresenta a prática dos piquetes de segurança da CGTP que espancam manifestantes dos Precários Inflexíveis como uma expressão superior de unitarismo. Na caixa de comentários do mesmo post, um correligionário do autor, denuncia os espancados e as vozes que se levantaram em sua defesa como divisionistas, cavadores de fossos anti-unitários.

O mais curioso é que todo este alarido vem a propósito de um certeiro texto de Carlos Guedes, cuja importância a Joana Lopes já assinalou na rubrica "Leituras" do seu Brumas, do qual se podem - devem - reter as seguintes palavras: É histórico o desprezo com que a CGTP trata os movimentos sociais que vão surgindo e não há, infelizmente, nada de novo aqui — ou seja, nas equívocas e ventríloquas declarações de repúdio por "actos de vandalismo" que Arménio Carlos houve por bem proferir — assim fazendo, como sublinha também Carlos Guedes, a «figurinha» de parecer estar a defender a brutalidade policial e a esquecer o que os seguranças da CGTP fizeram.

Conclusões imediatas:

1. o desprezo histórico com que a CGTP trata os movimentos sociais é politicamente desprezível e, como tal, só pode ser combatido sem reservas por qualquer democrata.

2. Igualmente desprezíveis são as considerações e as concepções orgânicas — tácticas, mas não só — que a levam a não combater e denunciar a infiltração nas fileiras dos seus apoiantes de ruidosos apologistas de métodos e ideias de inspiração caracterizadamente fascista, como é o caso do reincidente autor do post que aqui comecei por referir e de alguns daqueles que, na respectiva caixa de comentários, o aplaudem.

À espera do anúncio da regulação do direito de voto através do livre funcionamento do mercado livre

O Pedro Viana, embora por outras palavras e noutro registo, já chamou aqui a atenção para o projecto governamental de ceder à iniciativa privada a exploração dos direitos do cidadão, integrando as "lojas" ditas dos mesmos no mercado e tornando-as empresas lucrativas. É um passo mais na expropriação da cidadania em benefício da propriedade oligárquica e dos seus aparelhos governantes que constitui o núcleo fundamental e o sentido último das autoridades da nossa região, explicitados em termos que, por uma vez, podem chegar a fazer sombra às demais iniciativas da mesma classe que proliferam por toda a Europa. Mais do que previsivelmente, todavia, a extensão em curso da economia política dominante não se dará por satisfeita com tão pouco, e, um destes dias, veremos que nos será anunciada a integração no mercado e a rentabilização do direito de voto: quer dizer, a restauração, sob uma forma ou outra, do sufrágio censitário, sistema particularmente eficaz do governo colectivo e da concertação organizada da oligarquia. É inevitável — a menos que…

Ex. Sr. Primeiro-ministro Dum Dum Mata-baratas

Que acham? Ou então, Ex. Sr. Primeiro-ministro Dodot Limpa-o-rabinho? Se é para colocar simbologia do Estado à venda, não vale a pena perder tempo com trocos, ponhamos já em leilão o filet mignon, capaz de render um bom carcanhol. E que empresa não gostaria de patrocinar o nosso Ex. Sr. Primeiro-ministro, sempre tão prestável e servil? Conseguem imaginar quantas vezes é nomeado em documentos, recepções, visitas, banquetes e outros actos oficiais? Aposto que o branding no nosso Ex. Sr. Primeiro-ministro renderia milhões, milhões!

22/03/12

O valentão do Chiado deve ter nome, não?



Repórter fotográfica da AFP agredida hoje no Chiado.

Pouco importa a conta contanto que haja luz e o preço da electricidade é o menos

Escola põe alunos a fixar lâmpadas para terem melhores resultados. Perante esta notícia veiculada pela imprensa, é inevitável conjecturar que os nossos governantes acreditam também no fosfenismo e fixam a luz das suas lâmpadas com tanta intensidade e persistência, que sejam quais forem os resultados, não podem deixar de os declarar os melhores que são possíveis — ou os únicos possíveis, o que vem a dar no mesmo — aconselhando a quem não entenda assim que fixe as lâmpadas que os alumiam com a obstinação estóica que baste,  pois pouco importa a conta contanto que haja luz e o preço da electricidade é o menos.

Os cadáveres ainda não arrefeceram a já a caganita histérica chamada Sarkozy os profana apelando à censura e à democracia do músculo

«Toute personne qui consultera de manière habituelle des sites Internet qui font l’apologie du terrorisme ou qui appellent à la haine sera punie pénalement», Nicolas Sarkozy

Mais uma sondagem grega

[Via Reuters e Phantis]

Nova Democracia ........ 22,5%
PASOK........................ 12,5%
KKE ................................12%
SYRIZA...........................12%
Esquerda Democrátia......11,5%
Gregos Independentes........11%
Chrysi Avgi.......................3,5%
LAOS.................................3%
A sondagem completa está aqui [pdf]; está em grego, claro, mas o quadro da página 19 é fácil de perceber (nem que seja pelos símbolos). Para uma descrição dos partidos gregos, é ver neste post sobre uma sondagem de há 15 dias atrás (dá também para ter uma ideia da evolução de cada um - parece-me que a direita pró-troika e a esquerda anti-troika estão a descer e a direita anti-troika subir).

Sobre a racionalidade democrática da greve

Manuel Castro no artigo 58:

Porque é que se faz greve, perguntaram-me ontem várias vezes e bem.

Greve faz-se para mim, por uma simples razão: as massas perceberem que são elas que fazem o país funcionar. Quando paramos todos o País pára e essa é a ideia que alimenta a consciência de que na realidade somos nós que escolhemos o nosso caminho.


Não é a Troika, não é o Passos nem o Aníbal, ou o Relvas e o Seguro, somos nós. Se paramos mostramos aos que ainda não acreditam que é imaginária a corrente que nos prende à miséria e a uma vida sem dignidade. Se paramos hoje, amanhã mais vão dizer para consigo: "Mas porra se eu faço a diferença porque é que continuo vergado a isto?"

20/03/12

O "Observatório da Segurança"

Devia haver mais pesquisa sobre o que é exactamente o "Observatório da Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo", que me parece uma espécie de think-tank privado com uma agenda securitária e um nome escolhido para criar a ideia que é algum organismo oficial.

“REAPRENDER A DEMOCRACIA” — Um Ciclo de Debates Organizado pela Plataforma Outra Democracia (PODe) e o Movimento Internacional Lusófono (MIL)

A PODePlataforma Outra Democracia — e o MIL Movimento Internacional Lusófono — irão promover, em parceria, um Ciclo de Debates, que visa realizar um diagnóstico sobre o estado do país e do mundo, procurando, ao mesmo tempo, encontrar vias de superação para as situações de bloqueio diagnosticadas. Os temas são os seguintes:


I – Ainda vivemos em Democracia?

24 de Março, 18h

Manuel Villaverde Cabral
Miguel Serras Pereira

II – Como seremos um País economicamente viável?

28 de Abril, 16h

Carlos Vargas
Sandro Mendonça

III – Somos mesmo um Estado de Direito?

19 de Maio, 16h

Paulo Ferreira da Cunha
José Preto

IV – Desígnios para um Mundo pós-globalização

16 de Junho, 16h

Fernando da Costa
Sofia Neuparth e Margarida Agostinho (Centro em Movimento)


Os Debates realizar-se-ão na Sede do MIL (Rua Mouzinho da Silveira, 23, 2º - Lisboa), obedecendo ao modelo: alocuções iniciais dos oradores convidados (15 minutos cada, no máximo), seguindo-se debate com os presentes (1 hora). Os Debates serão igualmente gravados e colocados nas plataformas da PODe e do MIL.

PODe: Plataforma Outra Democracia
http://www.podept.blogspot.com/

MIL: Movimento Internacional Lusófono
www.movimentolusofono.org

19/03/12

O sentimento nacional está vivo e mata

Três crianças e um adulto foram abatidos a tiro à porta de uma escola judaica de Toulouse, no Sudoeste de França, por um homem que se pôs em fuga numa "scooter". A análise balística revelou que a arma usada foi a mesma que a utilizada em dois ataques distintos contra quatro homens, três militares e um paramilitar, durante a semana passada, e que fizeram três vítimas mortais.
(…)
As quatro vítimas mortais são um professor de religião, de 30 anos, e seus dois filhos, de seis e três anos, bem como uma outra criança, de dez anos, indicou o procurador da República Michel Valet. Um adolescente de 17 anos ficou também gravemente ferido.

O ataque ocorreu pouco depois das 8h (menos uma hora em Portugal continental), numa altura em que os alunos daquele colégio-liceu – frequentado por cerca de 200 crianças e adolescentes – e respectivas famílias se concentravam à porta do estabelecimento de ensino, que fica numa zona residencial.

O atirador de Toulouse “disparou contra tudo o que tinha à frente, crianças e adultos, e algumas crianças foram perseguidas no interior da escola”, disse à imprensa o procurador Michel Valet.
(…)
Este ataque acontece dias depois de três militares terem sido mortos a tiro, em dois ataques distintos, perpetrados por um homem montado numa scooter na mesma região de França. Primeiro, um paramilitar de 30 anos foi baleado fatalmente numa área residencial de Toulouse a 11 de Março. Quatro dias depois, a 15 de Março, dois soldados foram mortos e um terceiro ficou ferido quando usavam um multibanco na localidade de Montauban, a cerca de 50 quilómetros de Toulouse.
(…)
A análise às munições revela que a mesma arma foi usada na escola e em Montauban, avança a rádio Europe 1.
(…)
Na ausência de pistas sobre a motivação destes homicídios, é fácil também ver neles uma motivação racista — anti-semita ou anti-islâmica, devido à identidade das vítimas, uma vez que os militares mortos eram de origem magrebina.

O extremismo dos moderados

(o meu artigo no i de quinta-feira passada)

Se a política é a arte do possível, quem determina o que é não é possível?

Em política devemos desconfiar das pessoas moderadas. São as menos atentas ao seu próprio extremismo. Vou restringir-me ao campo político que me é mais familiar, o da esquerda. De quando em vez grassa por estas bandas um surto de apelos à moderação. Um primeiro apelo pega-se a outro apelo. Que depois leva a outro e a outro e a outro, até que ao fim do dia há uma correia de moderação que a todos nos atrela. Se aconteceu a alguém acordar com a certeza de que outro mundo era possível, deitar-se-á provavelmente conformado com o menor dos males.

Nos tempos que correm, a correia dos moderados começa por ganhar a forma à direita. É quando o líder do partido da direita pede ao líder do maior partido da esquerda que modere as suas posições em nome do realismo necessário à salvação nacional. Depois o líder do maior partido da esquerda passa o testemunho aos críticos internos desse mesmo partido apelando a que moderem as suas posições em nome do realismo necessário. Estes críticos internos, por sua vez, apelam ao líder do segundo maior partido de esquerda para que também ele modere as suas posições em nome de um realismo igualmente necessário, receita que o líder do segundo maior partido igualmente prescreverá aos críticos internos do seu próprio partido, que, finalmente, fundarão um novo partido que replicará no seu interior a lógica de que inicialmente pretendia excluir-se.

É certo que há quem simplesmente chame realismo a esta escalada de moderação. Mas o que está em jogo não é tanto uma clivagem entre realistas e irrealistas. E sim entre diferentes formas de ver a realidade. Veja-se o que acontece no debate em torno da questão da violência, que frequentemente serve para que se classifique uma parte da esquerda como moderada e uma outra como não-moderada. Do que neste debate se trata, não é tanto de uma oposição entre moderados não-violentos e imoderados violentos. Se perguntarem a um moderado não-violento – um daqueles que rapidamente se apresta a condenar as pedras atiradas por manifestantes atenienses contra a polícia grega porque encontra aí o gesto que inicia o caminho da sociedade rumo ao totalitarismo –, se lhe perguntarem se é contra a existência de forças policiais, ele muito provavelmente dirá que não. Ou seja, o nosso moderado não-violento não é contra a violência, mas sim a favor do monopólio estatal da violência, no qual surpreendentemente não vislumbra indício de qualquer perigo totalitário.

Um outro debate onde a divisão entre moderados e não-moderados tem feito caminho é o que se dá em torno da unidade ou não entre os partidos de esquerdas. Neste debate há os que, em nome de um realismo que seria necessário a fim de derrotar a direita, apelam à moderação dos que consideram imoderados. Aqui os moderados serão os que falam em nome do interesse geral das esquerdas contra a lógica dos interesses particulares que motivaria o núcleo dirigente dos partidos. Funcionam para a esquerda como os “independentes” funcionam para o todo do sistema partidário. Em ambos os casos é como se alguém, por falar em nome do interesse geral, deixasse de dar voz ao seu interesse particular. Não surpreende, por isso, que os adeptos da unidade de esquerda, do líder Gil Garcia ao politólogo André Freire, não acusem qualquer contradição quando decidem apelar à criação de um novo partido de modo a combater a… fragmentação partidária da esquerda.

Em suma, deveríamos não ter medo de começar a falar de realidade no plural. Existe a realidade tal como a observam os moderados e a realidade tal como a entendem os não-moderados. Tentar descobrir qual é a mais verdadeira não só resulta num exercício de ilusionismo como escamoteia o essencial da democracia: a disputa entre convicções diversas, cada qual implicando uma verdade, cada verdade implicando o seu realismo.

Ah, é verdade, o título desta crónica é uma homenagem ao vereador Nunes da Silva, um um moderado homem de esquerda, eleito nas listas de Helena Roseta e António Costa e que, segundo o jornal Público, pretende impedir taxistas sem boa apresentação (com mangas à cava e calção, exemplifica um bastonário de taxistas) de trabalharem na praça de táxis do aeroporto de Lisboa.

18/03/12

Quand viendra t'elle ?

Cuidado com o que escrevem no Facebook

Pelo menos, se forem ingleses:

Teen Charged Over Dead Soldiers Facebook Post (Sky News):
A teenager will appear in court after being arrested for allegedly making comments on Facebook about the deaths of six British soldiers in Afghanistan last week.

Azhar Ahmed, 19, is said to have posted the comments on his profile page and has been charged with a racially aggravated public order offence.
Pelos vistos, Ahmed escreveu isto no Facebook:

O "caso Borges"

A respeito da acumulação de funções de António Borges (antigo vendedor - ou coisa parecida - da prestigiada Goldman-Sachs), a minha preocupação não é tanto eventuais incompatibilidades ou conflitos de interesses; é mesmo "Não há mais ninguém neste país?".

[Sugestão de tema para algum mestrando ou doutorando em Economia fazer uma tese - "Efeito das pessoas com 30 empregos na taxa de desemprego"]

16/03/12

O que são os "Custos de Interesse Económico Geral"?

Quando recebemos a factura da electricidade, há lá uma coisa chama "Custos de Interesse Económico Geral". Em que é que consistem esses custos?

A Entidade Reguladora do Sector Eléctrico explica [pdf]:

[clicar para ver melhor]

O que interessa para aqui é o gráfico da direita, em tons de castanho.

No documento, a ERSE explica que os "sobrecustos com a produção em regime ordinário" se referem aos "[s]obrecusto[s] dos contratos de aquisição de energia, custos para a manutenção do equilíbrio contratual e garantia de potência."

15/03/12

Sistemas monetários-financeiros alternativos

A propósito da discussão entre o ladrão de bicicletas João Rodrigues e o insurgente Luciano Amaral sobre o sistema financeiro actual e as suas possíveis alternativas (socialização? "disciplina do mercado", quiçá com regresso ao padrão-ouro?), deixo aqui as opiniões de 3 pensadores do século XIX (pelo menos dois deles - provavelmente os menos conhecidos - escreverem em épocas e contextos em que as "corridas aos bancos" - e respectivas falências - eram frequentes) sobre o assunto:

Pierre-Joseph Proudhon - Solution of the Social Problem [pdf, traduzido para inglês por Henry Cohen, em 1927]; como o nome indica, fala sobre muita coisa, mas grande parte do texto tem a ver com a organização do sistema de crédito

Lysander Spooner - A New System of Paper Currency

Benjamin Tucker - Free Money First, Free Banking, Necessity for a Standard of Value e The Redemption of Paper Money: alguns ensaios do autor sobre a moeda e o crédito

Abstenção fraternal

Consta ter havido quem esperasse que, tanto mais que a coisa não faria para já grande diferença, António José Seguro incitasse o PS a apoiar esta iniciativa de Hollande. Ao que parece, contudo, argumentando ser necessário manter-se coerente com a atitude de "abstenção violenta" adoptada portas adentro, o secretário-geral socialista entende dever abster-se, ainda que, para manifestar a solidariedade do PS com a sua Internacional, pondere convocar uma conferência de imprensa anunciando que, desta feita, a sua abstenção será inequivocamente fraternal.

Até o Greg Smith da Goldman Sachs percebeu que esta merda tem de ter deontologia ou citando o mafioso Johnny Gaspar "I'm talkin' about ethics"

TODAY is my last day at Goldman Sachs. After almost 12 years at the firm — first as a summer intern while at Stanford, then in New York for 10 years, and now in London —I believe I have worked here long enough to understand the trajectory of its culture, its people and its identity. And I can honestly say that the environment now is as toxic and destructive as I have ever seen it. (...)
A rapaziada da Goldman Sachs parece que já respondeu (é ler a resposta a partir deste artigo).

Os arautos do fim das ideias multiplicam-se

No i, o presidente do Instituto Sá Carneiro (e da Câmara de Cascais) Carlos Carreiras exarou a sentença final: “O país já perdeu demasiado tempo a discutir ideias e ideologias. Agora chegou a altura das soluções.” 
Que a ideologia começa a ser vista por muitos espíritos práticos como um empecilho ao progresso já o José Neves demonstrou há uns dias. Mas agora até as ideias tout court surgem como um estorvo aos urgentes desígnios do crescimento. Estamos numa corrida de cavalos e só importa correr mais que os outros, não interessando para onde, ou se somos capazes de semelhantes galopes. 
Assim sendo, que propostas expurgadas das daninhas ideologias nos oferece Carlos Carreiras? Um bucólico regresso ao passado das “indústrias tradicionais, como as pescas, a indústria naval, a agricultura e as florestas” (quase se suspeita que uma tal busca de “desígnios” isentos de ideologia serve sim para camuflar a proximidade destas propostas às que o PCP actualmente defende). E depois uma pitada do mirífico futuro: dos lugares exóticos que serão umas tais “smart cities” ao lugar mais que comum do “empreendedorismo”. Muito vago. Muito curto. 
Não deixa de ser irónico relembrar que até Salazar tinha, em 1965, os olhos bem abertos quanto à natureza abismal deste realismo técnico que se acha capaz de tudo resolver sem reflexões demasiado complicadas:"É sobretudo pernicioso que se tenda a converter o homem em engrenagem da própria técnica, que é para onde se caminha. Até aqui a política definia o que devia fazer-se; a técnica ensinava como se devia fazer"; “Tem de salvar-se o homem, da tentação do abismo (...), o que significa haver outro mundo, dever haver outro mundo para além daquele que a técnica e a economia podem criar.” 
Sabemos bem que o ogre de Santa Comba tinha um outro abismo em mente para nós, mais aconchegado, tradicional e sombrio; mas tinha também inteligência suficiente para reconhecer que um país sem ideologia é apenas um grande formigueiro, tão organizado quanto inumano.

14/03/12

A electricidade e os apoios às renováveis

Em primeiro lugar, confesso que ainda não percebi se, no meio desta floresta de subsídios, taxas, apoios, "custos de interesse económico geral", etc., a electricidade fica mais cara ou mais barata para o consumidor final.

Mas vamos à questão principal - faz sentido haver apoios às energias renováveis; ou (numa expressão que eu prefiro), às energias não-poluentes? À primeira vista parece que sim: afinal, parece haver benefícios para a sociedade no seu todo na produção de energias por meios não poluentes, logo parece ter lógica haver subsídios a esses tipo de energia.

Mas a verdade é que não existe nenhum benefício social no uso de energias não-poluentes; o que há é um prejuízo social no uso de energias poluentes. É verdade que um aumento do consumo e produção de energias não-poluentes reduz os prejuízos da poluição; no entanto, se o individuo, em vez de usar energia não-poluente, não usasse energia nenhuma também existia essa ausência/redução de custos sociais. Dando um exemplo: num dado período de tempo, o Manuel consome 100 kilowatts-hora (KWh) de energias não poluentes e 400 KWh de energias poluentes; a Luciana consome 300 KWh de energias poluentes: ou seja, o Manuel polui mais que a Luciana, mas a energia que ele consome é, no total, mais subsidiado do que a da Luciana.

Ou seja, o que deve haver não é subsídios ou apoios às energias não-poluentes, mas sim impostos adicionais sobre as energias poluentes; depois, se as pessoas e empresas reagem a esses impostos adicionais mudando para as energias não-poluentes ou simplesmente reduzindo o seu consumo de energia, é um assunto para "o mercado" decidir (sim, eu às vezes tenho uns momentos de quase-liberalismo; de qualquer maneira, este post está sendo escrito no contexto da economia mista actualmente existente - se estivéssemos a falar, p.ex., de uma economia planificada por conselhos operários, as políticas a adoptar já seriam totalmente diferentes).

Um possível contra-argumento - o consumo de energia electricidade provavelmente não cresce de forma proporcional ao rendimento: duvido que alguém que ganhe 5.000 euros por mês consuma 10 vezes mais electricidade que alguém que ganha 500; se assim for, é de esperar que as despesas com a electricidade representem uma maior proporção das despesas dos consumidores de menores rendimentos, de forma que o tal imposto adicional sobre as energias poluentes acabaria por ser regressivo, já que (directa ou indirectamente) iria afectar mais as famílias mais desfavorecidas. Mas penso que a solução para isso seria usar a receita adicional desse imposto para baixar outros impostos que incidem sobre os mais pobres (como o IVA e os escalões inferiores do IRS), ou então para financiar um "dividendo do cidadão" (um dos meus pet issues...).

12/03/12

Referendos suíços

O Blasfémias e O Insurgente andam entusiasmados com um referendo na Suíça em que foi recusada a proposta de aumentar as férias de 4 para 6 semanas. Diga-se que me parece exagerado alguém, pelos vistos, dar tanta importância a... uma coisa ficar na mesma (se tivesse sido aprovada uma proposta para baixar de 6 para 4 semanas, perceberia o entusiasmo); e, embora a Helena Matos e o A.A. Alves chamem a atenção para o referendo ter passado quase despercebido, não sei qual teria sido a reacção deles se  o assunto tivesse sido falado na comunicação social portuguesa antes do referendo (como foi no caso dos minaretes); não me admirava nada que a Helena Matos tivesse escrito algo do género "os nossos jornalistas andaram em transe com as seis semanas de férias suíças, tratando uma proposta marginal sem - como se viu - qualquer hipótese de ser aprovada como algo digno da máxima atenção".

Mas, pelos vistos, dá-se tanta importância à rejeição de propostas rejeitadas que nem se fala das que efectivamente foram aprovadas; como esta, limitando a construção de casas para segunda habitação (que não poderão ser mais do que 20% das casas em cada município).

Diga-se que tanto esta proposta como a das férias tiveram o mesmo percurso - uma iniciativa popular, com o Parlamento e o Governo a apelarem ao voto "não".

My name is Potter, Harry Potter

Há quem diga que a literatura não serve para nada, sendo precisamente dessa inutilidade que retira todo o seu charme.
É verdade que a sua função não se pode comparar à de uma obra de engenharia ou sequer a uma descoberta científica: o que é A Montanha Mágica quando confrontada com uma caixa de antibióticos? Mas se o facto de eu ter lido o romance de Thomas Mann durante uma convalescença nada nos diz sobre as suas qualidades curativas, já o peso das suas mais de 800 páginas facilmente o qualifica como arma de arremesso.
Seria algo demagógico insistir agora em outras funções menos próprias da literatura, apesar de estas existirem: um exemplar de Os Lusíadas convertido em base para copos, a extraordinária novela de Joseph Conrad, Mocidade, a servir de mata-moscas.
Posto isto, nem os mais arreigados defensores da improficiência literária poderão negar que aquela cumpre, chegados aos animais políticos, uma importante função decorativa.
São as estantes em fundo nas entrevistas domésticas, são os livros pousados estrategicamente nas mesas dos gabinetes, são as citações corroborativas do disparate. Num mundo rendido à tecnologia, a literatura empresta patine, mesmo se no fim se roça o caricato.
Foi assim no caso de “Fenomenologia do Ser” lido por Passos Coelho, livro que Sartre nunca escreveu, foi assim no silogismo proferido por José Sócrates: “Mário Soares é um patriota, gosta de Camões. Eu gosto de políticos que gostam de Camões. Eu gosto muito do drº Mário Soares”.
Note-se, porém, a busca de elevação dos dois exemplos: Sartre e Camões.
Também por isso não queria acreditar quando ouvi Miguel Relvas na televisão citar Potter. Harry Potter. Já era mau. Mas chamar-lhe Porter? E duas vezes? É as Trevas!

08/03/12

Sondagem grega

 Publicada domingo passado, no jornal Ekathimireni (tradução do Google; sondagem completa em PDF e em grego):

Nova Democracia (direita): 28%
Esquerda Democrática ("Politica XXI"?): 16%
SYRIZA ("Bloco de Esquerda"): 12%
KKE (comunista): 11%
PASOK: 11%
Gregos Independentes (dissidentes anti-troika da ND): 4%
Verdes: 4%
LAOS (extrema-direita): 4%
Chrysi Avgi (extrema-extrema-direita, neonazi): 3,5%

[Entre os pequenos partidos, a ANTARSYA - uma coligação de grupos de extrema-esquerda - tem cerca de 1%]

São necessários 3% dos votos para entrar no palamento.

Que venham os Vikings, a cavalaria, qualquer coisa, eu só não quero sonhar com a Edite Estrela

Estava eu finalmente posta em sossego a ler A Zona de Desconforto de Jonathan Franzen, livro que acaba de ser publicado pela D. Quixote, quando, a páginas tantas, mais precisamente na 21, tropeço numa palavra inédita, se me permitem o eufemismo.
Já antes tivera de me esforçar para engolir "Excecionais" (em caixa alta e itálico no original, ainda por cima...), com aquele ce a ler-se naturalmente ce e não porque lhe guilhotinaram o p), quando, uma linhas mais à frente, dou com um "viquingue" na minha cama e eu não tinha bebido nada.
O que raio seria um viquingue?!
Ajeito os óculos e a almofada, dirigo o dedo para a palavra, soletro-a, divido-lhe as sílabas, releio a frase para lhe alcançar o sentido como se o livro estivesse escrito em hebraico sem marcas diacríticas, repito o exercício, gaguejo e, por fim, como a Santa Teresa d'Ávila, tenho uma iluminação: viking, porra!
Os vikings são vikings pelo menos desde os tempos em que o meu pai me ofereceu a colecção O Mundo em que Vivemos da Verbo Juvenil, ainda nem aprendíamos o K, mas, a serem outra coisa, seriam víquingues, pensei de mim para mim, lendo alto a palavra como fazia na Primária para adivinhar os acentos.
O esforço hermenêutico-ortográfico deixara-me exausta. Era tarde. Fechei o livro e apaguei a luz.
Sonhei com a Edite Estrela, o Jonathan Franzen que me perdoe.

07/03/12

Da "cultura do esforço dos chineses que trabalham em Espanha"

Temos de imitar a cultura do esforço e o modelo de flexibilidade laboral que as "lojas chinesas" ilustram na Europa — não há dia em que não ouçamos esta tese proclamada pela boca de um "criador de riqueza" ou de um dos seus capatazes políticos de serviço. Eis um exemplo mais — e exemplarmente inequívoco — da versão dominante do chamado, por antonomásia, "projecto europeu".  

El presidente de Mercadona, Juan Roig, subraya la necesidad de tomar medidas para aumentar la productividad, aunque sean "impopulares" y "molestas".

La cadena de supermercados Mercadona obtuvo el año pasado un beneficio neto de 474 millones de euros, lo que supone un incremento del 19% respecto a 2010, ejercicio en el que ganó 398 millones, ha anunciado hoy su presidente, Juan Roig. Durante la presentación de los resultados correspondientes al ejercicio 2011, Roig ha avanzado que la empresa ya está preparada para dar el salto este año a otro país europeo y ha precisado que baraja opciones en Portugal, Francia, Italia y Bélgica. Ha explicado que la intención de la empresa en su aventura internacional es mantener tanto el nombre de la cadena como el modelo de negocio.

Durante la presentación de resultados, Roig ha subrayado la necesidad de tomar medidas para aumentar la productividad de la economía española, aunque sean "impopulares" y "molestas". Ha apostado por "frenar el derroche" de los años anteriores a la crisis eliminando "lo que no añada valor", aunque ha descartado "recortar por recortar". Según Roig, la duración de la crisis dependerá de lo que tardemos todos los españoles en cambiar de actitud y adoptar "la cultura del esfuerzo y el trabajo". En este sentido, ha asegurado que "tenemos que imitar la cultura del esfuerzo con la que trabajan los 7.000 bazares chinos que hay en España (…)".



Esta declaração chega-nos, pois, de Espanha, mas podia vir de Berlim como de Lisboa, de Londres ou de Roma, de Paris ou de Budapeste. De qualquer governante ou dirigente económico, em suma, do "mundo desenvolvido ocidental". Se viesse da China, diria que "temos de evitar a cultura permissiva dos europeus", mas receberia o acordo "internacionalista" de todos os adeptos — chineses, europeus, ou outros — da "cultura do esforço" assim definida e significaria exactamente a mesma coisa: o mesmo "culto da força", que tende cada vez mais a funcionar como justificação da expansão indefinida e da absolutização do poder "global" de uma ordem política reduzida a correia de transmissão dos imperativos de uma economia tão "naturalizada", que a sua "cultura do esforço" só pode ser a de uma radical repressão de qualquer esforço cultural alternativo — e, por isso, revelador da sua miséria e da sua impotência "culturais" últimas — a esse mesmo "culto da força" que, cada vez mais exclusivamente, a alimenta e reproduz.

05/03/12

Fora das autoestradas sem destino e dos becos sem saída… À procura de caminhos para o futuro.

A importância que tiveram, na sociedade portuguesa do século passado, as correntes acratas, é assunto geralmente ignorado. No entanto, o anarquismo foi decerto a corrente de ideias e de práticas colectivas que defendeu afirmativamente generosos valores de humanidade, que mais respeitou a sociedade e que mais profundamente influenciou os movimentos sociais e as tendências culturais progressistas. Um período dos mais ricos e prometedores na história de um povo oprimido por uma sucessão de poderes bárbaros. Cada vez que a revolta social afrontou as forças do obscurantismo, o colonialismo, as guerras coloniais e o fascismo, os ideais libertários e a acção dos anarquistas marcaram a sua presença. A República e o Partido Comunista - hoje duas «respeitáveis» instituições - devem a sua existência à vitalidade, inteligência e coragem dos militantes anarquistas. A atitude comunista sobre tudo o que cheira a ideias anarquistas e libertárias, mistura de arrogância e de ignorância crassa, explica-se em parte por esta dívida ocultada, por esta filiação que se manteve viva na sua massa militante até ao fim do fascismo. Se algum crédito deve ser atribuído ao chefe do estado-maior do bolchevismo lusitano, Álvaro Cunhal, é o de, recorrendo aos métodos da fria organização autoritária, ter sido capaz de extirpar o espírito libertário da estrutura e dos quadros do partido. Isto, em troca da deriva nacionalista e patriótica, que os levaria à respeitabilidade democrática e à defesa da economia nacional.
Não obstante a normalização política do espirito de revolta popular, apesar do peso da alienação mercantil instalada pela democracia representativa, ainda hoje se descobrem vestígios dos valores libertários no quotidiano popular. Valores de solidariedade, igualitarismo e justiça social, únicas referências positivas que permitem imaginar uma saída para o descalabro actual.



Serve esta breve digressão para introduzir o livro de M. Ricardo de Sousa (MRS), Os caminhos da anarquia (Letra Livre, Lisboa, 2011, www.letralivre.com). Uma centena de páginas, onde, sem iludir as fraquezas e os limites desta corrente face às gigantescas tarefas do momento, o autor expõe «uma reflexão sobre as alternativas libertárias em tempos sombrios». Em termos claros e concisos, com uma notável capacidade de síntese, MRS começa por fazer um resumo da história da corrente anarquista em Portugal. Retomando as análises conhecidas sobre o seu declínio histórico, ele vai mais além da badalada explicação baseada no sucesso do bolchevismo lusitano, insistindo nas consequências normativas que teve a integração das organizações operárias no funcionamento do capitalismo moderno, que marginalizou necessariamente as ideias e práticas opostas à cogestão reformista do salariado.

Só roubamos as bicicletas de marca estrangeira?

Diz o João Rodrigues, e bem, que a ideia segundo a qual vivemos um tempo pós-nacional contribuiu para a complacência recente das elites nacionais. Isto é, os sucessivos governantes foram-nos dizendo que nada havia a fazer por cá na medida em que a lógica global ditava regras incontornáveis no sentido do avanço liberal. Mas a questão não se coloca em termos de saber se o mundo é hoje mais nacional ou mais pós-nacional; vivemos seguramente tempos simultaneamente nacionais e pós-nacionais. A ideia de que vivemos um tempo pós-nacional, que o João rejeita para abraçar a relíquia estado-nação legada pela Revolução Francesa, pode não contribuir apenas para isso. Pode bem contribuir para uma estratégia de cariz internacionalista sem intermediação nacional. Nós precisamos de caminhar para uma greve geral supranacional, coisa para que a Revolução Francesa (quanto muito, a Russa...) não é assim tão relevante.

Massacrados em Homs, Síria

Eyewitness: 'Slaughtered like sheep' in Homs.

Qual neo-liberalismo, a culpa é dos táxistas

Paul Krugman trouxe-nos há pouco uma mensagem de esperança: Portugal não precisa de baixar os salários para o nível dos chineses.
Ao ler as palavras do Nobel, suspirei de alívio, o meu coração rejubilou e a minha alma desatou aos pulinhos. E se a esta notícia se acrescentar uma outra, entretanto anunciada por Álvaro Santos Pereira, a saber, que os desempregados portugueses irão ter à sua disposição um gestor de carreira, é mais do que evidente que estamos no rumo certo.
Com sorte, até pode ser que chova alguma coisa de jeito!
O meu optimismo cresce de dia para dia. Há tempos, fora o anúncio feito por Pedro Mota Soares das refeições take away direccionadas para pobres, versão update da sopa do Sidónio. E porque o facto de alguém ser pobre e ter fome não deve obstruir o caminho da modernização gastronómica, espera-se que o toucinho e chouriço de antanho sejam substituídos por produtos menos gravosos dos níveis de colesterol.
Exemplo de louvável “empreendedorismo” é também a passagem anunciada do Ministério da Administração Interna (Terreiro do Paço) a Pousada de Portugal, projecto que vem do anterior governo, e isto enquanto se aguarda que a Fortaleza de Peniche, prisão política do Estado Novo, lhe imite a função recreativa.
Em tempos, Eça resumiu o país a duas frases: Não é uma existência; é uma expiação.
Expiação será, mas no fim aguarda-nos um milagre. Se não o da chuva de Cristas, decerto aquele que podemos deduzir da citação de Benjamin Franklin traduzida há dias no canal “História”.

Original: In this world nothing can be said to be certain, except death and taxes.
Tradução (Canal História): Nada neste mundo se pode ter como certo, excepto a morte e os táxis.
Caso para se dizer: o país vai de carrinho.

[obrigada, Joana]

E o povo pá?

Ao contrário do Nuno Teles, acho o vídeo de Mélenchon pouco estimulante. E não vejo nada de original na forma, ao contrário, também, do Nuno. Sim, é verdade que o homem não aparece em palco como um líder de claque, mas o tom paternalista que assume não é, creio, muito mais recomendável. O que eu ali vejo, naquele vídeo, não é um pedagogo que nos explica o funcionamento dos mecanismos ocultos do neoliberalismo. Ou melhor, é isso mas é também Mélenchon a justificar a sua própria existência. Mélenchon, que de quando em quando relembra a quem o ouve que estas coisas são difíceis de perceber - isto é, que ele percebe e eles não -, está a tentar criar a necessidade de si próprio, ele, o educador.
Enfim, haveria que perguntar ao que vem a expressão "educação popular" que dá título ao post do Nuno. O povo não tem educação e precisa de ser educado, é isso? E por quem? Por quem não pertence ao povo, supõe-se, uma vez que se aquele que ensina pertence ao povo então não tem educação para que lhe permita ser educador. No fundo, em vez de termos o Camilo Lourenço a dar a lição matinal em todos os media teríamos um dos nossos amigos dos Ladrões? Não tenho dúvida que ficaríamos melhor servidos, mas guardem a forma como nome para outras mudanças. A ter alguma salvação democrática, e é discutível que tenha, a expressão educação popular deverá libertar-se deste tipo de rituais pedagógicos.

Facilitismo escolar?

De vez em quando fala-se nisso; mas há dias o meu sobrinho apareceu com umas matérias que aprendeu em Matemática (6º ano de escolaridade) que ninguém da família aprendeu nessa altura (e alguns, como eu, nunca aprenderam; o meu pai lembrava-se de ter aprendido qualquer coisa do género na escola técnica).

Diga-se que, já no concurso "Sabe mais que um miúdo de dez anos?" frequentemente apareciam perguntas que, para o programa escolar dos anos 80, seriam muito puxadas.

04/03/12

Da imbecilidade enquanto modo de aproximação ao real ou de como rir é tudo o que nos impede de cortar os pulsos

Tem existido uma certa "polémica" sobre as causas do aumento da mortalidade em Portugal no último mês.
Dizem alguns que as baixas temperaturas aliadas às piores condições de vida dos portugueses estão na origem do fenómeno.
Garantem outros que somar o frio à crise é falacioso, tanto mais que o "perfil de mortalidade das últimas semanas" é absolutamente normal, já se tendo registado em 2008/2009.

Vamos deixar de lado os mortos que só atrapalham.
Vamos também deixar de lado o frio.
O que não podemos certamente deixar de lado é a brilhante conclusão de um estudo imputado à Organização Mundial de Saúde que aferiu o seguinte: as recessões económicas em países com o grau de desenvolvimento de Portugal não têm impacto ou reduzem mesmo as taxas de mortalidade, nomeadamente por acidentes rodoviários, já que as pessoas usam menos os carros.
Vem, a propósito do referido estudo, lembrar 3 coisas:
1. "A morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhões é estatística", José Estaline
2. "There are three kinds of lies: lies, damned lies, and statistics", Benjamin Disraeli
2. "Get your facts first, and then you can distort them as much as you please", Mark Twain

O que nos conduz, por seu turno, à clássica anedota da rã.
Um cientista estudava o salto das rãs. Colocou o bicho em determinado ponto preciso e disse: "Salta." A rão saltou e o cientista concluiu: "Uma rã de 4 pernas salta um metro."
Cortou-lhe uma perna e disse: "Salta." A rã saltou 75 cm. O cientista anotou: "Uma rã com 3 pernas salta 75 cm."
Cortou-lhe outra perna, disse "Salta" e a rã saltou 50 cm. O cientista registou: "Uma rã com 2 pernas salta 50 cm."
Cortou a terceira perna e ordenou à rã que saltasse. A rã saltou 25 cm. O cientista escreveu: "Uma rã com 2 pernas salta 25 cm."
Finalmente, cortou-lhe a última perna. Fartou-se de repetir "Pula! Pula!" mas a rã permaneceu imóvel.
O cientista concluiu sabiamente: "Rãs sem pernas são surdas."

Massacres


Um massacre é um massacre. Seja onde for, independentemente de quem o pratique, qualquer que seja a justificação invocada, deve ser condenado por todos os que conservam um mínimo de empatia por outro ser humano. Parece não ser o caso daqueles para quem os conflitos são vistos como parte dum jogo electrónico de geo-estratégia.

As imagens mostram dois massacres, um que teve lugar no início de 2009, e outro em curso. Tentem descobrir que imagens pertencem a qual. Há quem veja diferenças.

02/03/12

A adopção de crianças por casais homossexuais

[Re-post, ligeiramente retocado, de um que escrevi há 2 anos; imagino que muita gente discordará]

Confesso que sou um bocado agnóstico nesta questão, mas penso que há vários argumentos para considerar que, à partida, é preferível uma criança ser adoptada por um casal heterossexual do que por um homossexual.

Em primeiro lugar, penso que esta questão deve ser separada da questão do casamento - o casamento é uma relação voluntária, entre pessoas que decidem casar-se; a adopção (pelo menos da parte do adoptado) é uma relação involuntária. Assim, enquanto o casamento homossexual é um assunto que eu aceito sem sequer pensar nisso (tal como defendo a legalização da heroína independentemente de que efeitos possa ter sobre quem a consome), acha que a adopção por casais homossexuais é um assunto que deve ser pensado e os prós e contras ponderados.

Quanto a eventualmente ser inconstitucional essa discriminação entre diferentes casamento, como é alegado tanto à esquerda como à direita, é uma questão que para mim não me interessa nada (é triste quando as propostas politicas deixam de ser defendidas de acordo com os seus méritos intrínsecos e abstractos, para passarem a ser discutidas com base se são constitucionais ou não; se vivêssemos no Irão iríamos defender a teocracia islâmica, por ser constitucional?).

Agora, porque é que eu acho que os casais heterossexuais devem ter prioridade na adopção? Acharei eu que um casal heterossexual é melhor a educar os filhos do que um casal homossexual? Não, não acho. Mas é verdade que eu também acho que, em larga medida, não são os pais que educam os filhos, são os filhos que se educam a si mesmos, embora condicionados pelo meio exterior.

As razões porque acho melhor uma criança ser adoptada por um casal heterossexual:

- Não é raro, quando têm aquelas crises de adolescência que quase todos os adolescentes têm, que os filhos adoptados tenham uma fase de rejeição dos pais adoptivos, (nalguns casos passando a tratá-los por "Sr. Fernando" e "D. Felisberta" e coisas do género); no caso dos filhos adoptivos de casais homossexuais, se essa fase de rejeição ocorrer, suspeito que pode ser mais grave: o jovem, alêm de se auto-convencer (provavelmente sem razão) de que seria muito mais feliz se não tivesse sido adoptado ou se tivesse sido adoptado por outras pessoas, se calhar vai-se também auto-convencer (provavelmente sem razão) de que seria muito mais feliz se tivesse sido adoptado por um casal heterossexual.

- Posso estar completamente enganado, mas tenho a ideia de que muitas raparigas adolescentes falam com as mães sobre assuntos íntimos (já os rapazes praticamente não têm esse tipo de conversas com os pais). Se eu estiver correcto, não será complicado para uma adolescente ter dois "pais"? (as leitoras do blogue acham que isto faz algum sentido, ou acham que estou a delirar?)

- Finalmente, duvido que já haja estudos suficientes sobre os efeitos comparados de ser adoptado por um casal homossexual vs. por um casal heterossexual para se poder dizer que uma hipótese é melhor, pior ou igual que a outra; e, na dúvida, quando se trata de decisões que afectam terceiros (neste caso, o adoptado) é melhor errar pelo lado da prudência (por outro lado, é verdade que isso poder dar origem a um ciclo vicioso - poucas crianças adoptadas por casais homossexuais » amostra demasiado pequena para se tirar conclusões » na duvida, prioridade aos hetero » poucas crianças adoptadas por casais homossexuais).

Só consigo imaginar uma situação em que, para uma criança, seja melhor ser adoptada (mantendo tudo o resto igual) por uma casal homossexual do que por um heterossexual - se ele, ao chegar a uma certa idade, descobrir que é também homossexual, sentir-se-á muito mais à vontade para contar aos pais do que se tivesse pais heterossexuais (mas mesmo isso não é certo - em certos casos, um homossexual filho adoptivo de homossexuais pode se sentir mais constrangido em revelar-se em público, com medo que as outras pessoas digam que foram os pais adoptivos que o "converteram").


No entanto, suponho que a "amostra" para se chegar a essa conclusão seja composta maioritariamente, não por crianças adoptadas por casais homossexuais, mas sobretudo crianças que vivem com o pai(mãe) biológico e o seu companheiro (companheira). Essa situação é bastante diferente, porque, como já escrevi, em larga medida não são os pais que educam os filhos, são os filhos que se educam a si mesmos: ora, mesmo que dois pais adoptivos (ou duas mães adoptivas) proporcionem ao seu filho exactamente o mesmo ambiente que um pai biológico e o seu companheiro (ou uma mãe biológica e a sua companheira), a forma como o filho irá reagir já poderá ser diferente (ver o meu ponto sobre as crises de adolescência dos filhos adoptados).

01/03/12

A bolha chinesa

Traidores e traídos

Todos os tradutores cometem erros, têm as suas distracções ou sucumbem à pulsão obscura, ainda que felizmente intermitente, do estado puro daquilo a que, um dia, em conversa, ouvi o meu amigo e confrade José Bento chamar a "vontade de asneirar". Nunca pretendi ser excepção à regra e, no que possam ter de menos injustificado, as minhas traduções muito devem a certas observações de revisores, editores e/ou amigos que me permitiram, antes da publicação, beneficiar de correcções ou sugestões preciosas. À falta desta leitura prévia de outra pessoa que não seja o próprio tradutor, é fatal que este deixe, aqui ou ali, aqui e ali, subsistir no seu trabalho traições supérfluas — que as há também permanentes e consubstanciais, requeridas pela própria fidelidade ao exercício do jogo metamórfico de linguagem aqui em jogo — e escreva "palavra" em vez de "mundo" por ter lido "word" onde estava "world" — como já me aconteceu ao verter um parágrafo de Steiner —, ou de outro modo reitere a presença do diabo nos pormenores.

Mas, hoje, parece ter-se instalado em parte do mundo da edição uma prática funesta, tanto para esses "consumidores", ou co-autores e co-tradutores finais que são os leitores, como para os tradutores "originais" ou propriamente ditos, os quais, por semelhante caminho, além de traírem forçosamente e sempre, numa medida ou noutra, para o melhor e para o pior, devido à natureza impossível da sua profissão, se vêem também traídos por uma espécie de editing que, a coberto da revisão indispensável, certos editores autorizam, senão promovem, sem se darem ao menos ao trabalho de ouvir o tradutor inicial.

Por conseguinte, este último terá de fazer, doravante, saber que, quando, numa tradução por ele assinada, se fala de um doente em "estado de vegetação" em vez de em "estado vegetativo" (ou em vez de um doente "que vegeta"), o leitor deverá creditar à conversão da revisão em editing a inovação da fórmula; idem, no caso em que a "alma", vertendo soul, se transforma em "vida mental"; ou quando, substituindo a opção do tradutor de importar Monsieur ou Madame (ou as abreviaturas M. e Mme.) como forma de tratamento, o resultado é o leitor ver-se confrontado com alguém que trata um(a) professor(a) por "Senhor(a) X"…

Podia multiplicar os exemplos ad libitum (atenção, eu não escrevi: "libidinosamente", mas não é certo que não fosse sob essa forma que o ad libitum se veria editado segundo os critérios de uma parte da aguerrida vanguarda dos novos critérios de edição), mas, para bom entendedor… Desculpem-me, pois, por uma vez, este exercício pro domo, um pouco à laia de pródromo de uma questão a que talvez ainda tenha de voltar. Tanto mais que há outros aspectos menos triviais da "tarefa do tradutor", que se referem aos critérios da sua fidelidade e das suas traições, e que levantam questões filosóficas e políticas cujo alcance cobre um horizonte demasiado amplo para o podermos confiar aos profissionais — aos profissionais da filosofia, da literatura ou da tradução, quero eu dizer, pois que, dos da política, o melhor será que, com a máxima prontidão possível, e para garantirmos uma das condições necessárias da democracia, deles nos vamos livrando.

Abutres & Lobos

Os prémios recentes a dois filmes portugueses não amansaram os proponentes de uma arte apenas dependente dos mercados. Pelo contrário; na imprensa e nas redes da internet proliferam esconjuros contra os “subsídio-dependentes”. Isto nada tem de inesperado; todas as religiões produzem resmas de fanáticos, e o liberalismo não é excepção. Mas não veremos os mandantes desta malta a ruminar cretinices similares; os banqueiros gostam de coleccionar o bom gosto que dá um ar respeitável à mais nova das fortunas; quem não se lembra do patusco comendador Berardo disfarçado de artista da rive gauche, boina e tudo? Os políticos com ânsias de estadistas, idem. O tempo é dos abutres. Dos que se lambuzam com as sobras dos poderosos. Debaixo dos escombros da crise crescem magotes de cogumelos tóxicos, chefias que despedem gente mais competente que eles, sem perderem uma só batida de coração. E dúzias de necrófagos de teclado, sempre em bicos de pés para impressionar os carnívoros a sério. É o regresso à “ordem natural das coisas”, em que os fortes comem os demais e estes só têm é de fazer bicha para o almoço. Entretanto, no mundo real, os abutres passam fome por faltar quem tenha tempo para legislar a seu favor. E programas para conservar muitas outras espécies estiolam ao sol da austeridade. É assim o mundo que vai sobrar depois de esta malta o ter remodelado à sua imagem: sem qualquer herança que possamos deixar aos nossos filhos, “imaterial” ou outra. Assim será o mundo destes abutres.

Ideologia é a tua tia?

o meu artigo de hoje no jornal i:

Em nome de um realismo supostamente incolor, que condicionaria a política em tempos de crise, o horror à noção de ideologia parece hoje generalizado da direita à esquerda.

Várias razões ajudam a compreender tamanha aversão. Mencionemos pelo menos uma dessas razões: ao longo do século XX, sob pretexto da necessidade de manter a fidelidade às suas ideologias, poucos não foram os que simplesmente recusaram a possibilidade de um livre debate ideológico. Nestes casos, as ideologias tornaram-se simples catequeses que o missionário deveria pregar às suas ovelhas, punindo as que insistissem em saltar fora do rebanho. Na Europa, desde cedo no século que os fascismos quiseram impor as suas convicções através de censura, prisão e tortura, igualmente praticadas por inúmeros democratas europeus nos seus impérios coloniais.

Mesmo ideologias que se empenharam na denúncia de todas as explorações e opressões acabaram por ser convertidas em razão de Estado: sob a chancela de governos ditatoriais, o comunismo tornou-se nome de um dogmatismo preservado à lei da força. Em suma, o livre debate ideológico, ideia para a qual a prática militante de Rosa Luxemburgo contribuiu como poucas outras, redundou, a leste, em doutrinarismo musculado. Não estranhem pois que o dicionário do meu computador, quando lhe peço que me dê um sinónimo para endoutrinar, me sugira simplesmente o termo enchouriçar…

Com a queda do muro de Berlim, muitos foram os que rapidamente procuraram livrar-se da má fama da ideologia. Destaco os casos dos dirigentes políticos e o dos historiadores, duas espécies de que julgo conhecer alguma coisa. Quanto aos historiadores, veja-se como, quando querem desqualificar o trabalho de um colega, facilmente utilizam como primeira pedra de arremesso o qualificativo ideológico. Assim, trabalho de fulano é mau porque é ideológico, ao que fulano responde que ideológico é, isso sim, o trabalho do outro, até que finalmente vem alguém dizer que ideológicos são os historiadores de esquerda e os de direita, ao passo que os de centro são naturalmente científicos.

No caso dos dirigentes políticos, e no contexto actual de crise, temos por um lado os governos tecnocratas que não gostam de debates políticos: o tecnocrata não estima a retórica parlamentar, com a sua parada e resposta, sem tempo para a tabuada, e tão pouco simpatiza com as contendas eleitorais, com as marés de jornalistas, peixeiras e militantes cujo ruído invade o recato do seu gabinete. Enfim, se a muitos de nós parece fazer tempo que a política se evaporou tanto do espaço parlamentar como dos períodos eleitorais, para o tecnocrata, ao invés, esses ainda serão terrenos excessivamente politizados. O tecnocrata governa por leis científicas e mezinhas técnicas, por manuais de instruções que considera tanto mais eficazes na medida em que julga não estarem contaminados por qualquer tipo de ideologia política.

Diga-se que esta ascensão tecnocrática é tanto mais preocupante na medida em que os críticos dos tecnocratas pouco se têm distinguido da lógica dos próprios criticados. Se o tecnocrata abomina a ideia de ideologia, boa parte dos seus críticos não a tem em melhor conta. Se os neoliberais acham que foi a ideologia socialista que fez com que nas últimas décadas tivéssemos sido submetidos a uma governação que dizem pouco realista, os críticos dos neoliberais acham que são estes que acusam um défice de realismo em razão da sua alienação neoliberal. Ora, quando uma grande parte da esquerda diz que as actuais políticas económicas são pouco realistas e são o fruto de uma obsessão ideológica, sabemos que a tecnocracia já venceu.

Quando, em nome do realismo, se exige uma suspensão das clivagens ideológicas; e quando esta reclamação é feita tanto pelos que à direita se arvoram em defensores da unidade patriótica como pelos que à esquerda pedem que se suspendam as diferenças ideológicas em nome de uma política de unidade de que se julgam os paladinos, é o ar do tempo que começa a tornar-se irrespirável nesta latrina.

Não é a exposição à ideologia que é um problema, mas o facto de tantos crerem ou pretenderem fazer crer que a sua política é a realidade e que a política de quem os critica pertence ao inferno das ideologias.

Shadow Web

As revoluções nos países árabes e os movimentos de contestação e ocupação na Europa e América do Norte, demonstraram a importância da internet como meio de mobilização. O que acelerou o desenvolvimento de várias iniciativas inter-governamentais com o objectivo de erguer mecanismos de censura na internet, sob o pretexto da proteção dos direitos de autor. Torna-se por isso fundamental começar a construir um sistema de comunicação paralelo à internet, uma sua sombra, mais resistente a quaisquer tentativas para controlar o fluxo de informação. É isso que é descrito neste interessante artigo:

"(...)FreedomBox is not tied to the form of any specific gadget. Rather it’s a stack of code that can go into the increasing number of networked CPUs that are piling up in our homes and lives, like “dust bunnies under people’s couches,” as Moglen puts it. All of these can become the infrastructure of an Internet that “rebalances privacy” and restores the vision of “a decentralized network of peers.” There are IP addresses in television set-top boxes, in refrigerators—any of these, Moglen says, could be a FreedomBox. And it is not just about decentralizing the infrastructure. It is about decentralizing data, too. For Moglen, for example, the concentration of user data in cloud services such as Facebook and Google is just as much a threat to privacy and freedom of expression as the concentration of traffic in ISPs. To counteract this trend, FreedomBox will be optimized to run alternative social networks such as Diaspora that store your personal data on your machine, sharing it only with the people you choose via peer-to-peer networks. 

Still, the key element in the project, Moglen says, is “the political will that is being displayed by a generation of young people who, because of their dependence on social networking, are increasingly aware of their and other people’s vulnerability online.” It is this earnestness he is counting on to motivate, in part, the many coders who are contributing labor to the project.(...)"