16/05/12
Encruzilhadas da UE: via federal e democratização
por
Miguel Serras Pereira
A UE não é a unidade ou conjunto político organizado dos países e regiões que a compõem. É uma espécie de instância tutelar, não eleita e não responsabilizável extra partes, que se vem somar às unidades pré-existentes, para, em cada vez maior medida, as governar do exterior. Assim, no seu quadro, o Estado-nação (ou coligação de Estados-nação) mais forte, ocupando os postos de comando dos aparelhos de decisão da UE, tende a reduzir os outros à condição de Estados-vassalo, e, dentro destes, os direitos e liberdades dos cidadãos, conquistados contra as prerrogativas das camadas oligárquicas que detinham as alavancas de comando dos aparelhos de Estado propriamente ditos e dos aparelhos de direcção da economia, tendem a esvaziar-se de conteúdo efectivo e a ser reduzidos à insignificância.
O resultado é o que a linguagem corrente traduz na perfeição em frases como: "A UE exige de nós…", "A UE impõe aos países da zona euro…", "A UE não permite…", etc., etc. — frases que traduzem a exterioridade que protege e absolutiza as instâncias reais que nos governam.
Ora, não se tornariam as coisas mais claras aos olhos dos cidadãos comuns que somos, e não limitaria o poder das oligarquias governantes, uma transformação federalista da UE, que nos permitisse responsabilizar directamente o seu governo como sendo, para cada país, o "nosso"(ainda que este "nosso" designe o inimigo com que temos de nos haver)? Ou, por outras palavras, que, quando nos referíssemos à UE, nos fizesse dizer, por exemplo: "Este governo não serve, é necessário mudá-lo" — ou: "O problema não é só o deste governo, é de regime; é o regime, ou são as instituições e a nossa relação com elas, que temos de mudar, através da instauração de outras formas de poder político, devolvendo as capacidades de deliberar e decidir aos cidadãos que somos, pois que é do nosso governo que se trata, e é a nós que, como cidadãos adultos, compete a tarefa de nos governarmos"?
Dizer que a federação por si só, ou em si própria, não basta para desencadear o processo de democratização radical que a sobrevivência da nossa condição de cidadãos activos torna uma necessidade cada vez mais urgente, é, sem dúvida, verdade. Mas é verdade também que tornaria mais favorável abrir-lhe caminho.
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11 comentários:
Resposta: NÃO! Os povos da europa já deixaram claro, desde há vários anos, que não querem uma federação e não querem mais transferência de soberania, seja democrática ou não. A "fuga-para-a-frente" não costuma ser a melhor solução...
JPTelo
Caro JPT,
não o explicitei, pois não pensei que me pudessem atribuir a ideia de impor uma solução federativa contra a vontade da maioria dos interessados. O meu post é uma proposta, não um diktat (ainda que no plano das puras intenções, evidentemente).
Saudações republicanas
msp
Há muitos, muitos anos, lembro-me de ouvir o Embaixador Franco Nogueira (um fascista, eu sei) dizer que a então CEE deixaria de existir se a Alemanha se reunificasse, pois uma Alemanha reunificada seria demasiado poderosa e ninguém aceitaria uma união com essa Alemanha. Pensei, na altura (muito antes de 1989): "que raio de opinião, qual é a probabilidade de isto acontecer???".
Pois....
O problema - como o do primeiro comentário - é achar que isso de soberania nacional existe em Portugal. E como se fosse algo de propriamente importante para as futuras lutas da classe trabalhadora amarrarem-se ao nacionalismo...
Entre a luta contra a austeridade na UE e o isolamento nacionalista, prefiro a primeira. Não por defender a UE mas porque: 1) permite a luta popular fora da estreiteza nacional(ista); 2) não é indiferente contribuir para o acirrar de nacionalismos; 3) não confundo os meus desejos mais ardentes de transformação social com o quadro concreto em que a luta decorre nos dias de hoje. E o quadro actual está entre lutar pela internacionalização das mobilizações populares ou cair na estreiteza nacionalista da terra queimada...
Mas qual nacionalismo??? Eu falei de nacionalismo? As únicas escolhas são o nacionalismo ou o federalismo pan-europeu? A Islândia é nacionalista por rejeitar integrar a UE? Sabem o significado político da palavra nacionalismo? Por apelidarem todos os anti-federalistas de nacionalistas é que a extema-direita europeia está a subir.
João Valente Aguiar: Boa sorte para a luta contra a austeridade na UE... está a ter um exito imenso. Isso, e a luta da classe trabalhadora.
João Valente Aguiar,
também os meus desejos mais ardentes vão no sentido de uma transformação radical, instaurando instituições - e uma relação da sociedade e dos indivíduos com essas instituições - que assegure o governo dos iguais, participando plena e responsavelmente nas decisões e na adopção das leis que colectivamente os vinculem. E se vejo bem que tal só poderá ser conseguido pela vontade activa e o desenvolvimento de capacidades políticas governantes da grande maioria dos cidadãos comuns - vontade que não poderá limitar-se a escolhas eleitorais ou, menos ainda, à opção entre "representantes" obrigatórios, e, por isso, não poderá afirmar-se sem uma ou outra forma de demonstração de força -, não me parece que a terra queimada ou o "quanto pior, melhor" sejam as condições mais favoráveis ao desenvolvimento e extensão desse processo de transformação radical, e radicalmente instituinte. Se a sua afirmação implica a substituição da actual ordem estabelecida, não é verdade que a ruína desta por si só garanta a alternativa à dominação hierárquica e classista, qualquer que seja a sua forma.
Quem quer o mais, quer o menos; quem quer a transformação radical não pode desinteressar-se das condições em que a propõe e lhe tornam o caminho mais fácil ou o barram mais violentamente.
Ora bem, creio que o seu comentário não anda longe de raciocinar do mesmo modo, embora em termos diferentes. Gostaria, por isso, que lesse estas linhas de resposta como uma glosa ou tradução que reitera e, nessa medida, confirma a solidariedade das nossas tomadas de posição.
msp
JPT, pode não concordar mas não existe nada na sociedade capitalista que não remeta para as classes... E a referência ao nacionalismo não era directamente para si mas à esquerda parlamentar portuguesa que continua agarrada ao espartilho nacional...
Miguel, não acho que seja a ruína a causa de qualquer transformação social. Pelo contrário. Por isso é que não confundo (ao contrário de certa esquerda) uma saída unilateral do euro com a transformação radical. Aliás, não deixa de ser irónico o esquecimento do internacionalismo por parte dessa esquerda, reduzindo-o a moções e comunicados e menos (ou quase nada) ao nível da coordenação de lutas...
«Quem quer o mais, quer o menos; quem quer a transformação radical não pode desinteressar-se das condições em que a propõe e lhe tornam o caminho mais fácil ou o barram mais violentamente». Ora nem mais. Apesar de se manter bem presente o objectivo da transformação radical da sociedade isso não nos pode levar a omitir as condicionantes reais e concretas que nos defrontamos no dia-a-dia. No caso, a crise do euro e as suas consequências que parte da dita esquerda parlamentar portuguesa não está a ligar puto.
João,
nem mais, digo eu também.
msp
Sejamos claros: a "transformação radical da sociedade", suponho eu que através duma revolução, no sentido duma mudança radical num curto espaço de tempo, desde os anos 70 que, nas democracias ocidentais, falhou redondamente. E o resultado não poderia ter sido pior: O ultraliberalismo "Thatcheriano" tem-se imposto quase sem oposição. E é isso mesmo que está na essencia desta UE, e nada mais. A União Europeia é um projeto Neoliberal. E nunca será outra coisa. E contrapôr a isso algo tão datado ideologicamente como o "internacionalismo proletário", parece-me tão pouco apelativo, a mim e à esquerda em geral, que só pode estar votado ao fracasso.
JPT,
pela parte que me toca, julguei ser evidente do que escrevi neste post e noutros lugares que NÃO concebo a "transformação radical" como podendo ser operada por meio de uma ruptura discreta e discretamente datada no tempo. Essa transformação ou, se quiser, revolução (arrancando ao termo a sua carga mítica), parece-me dever ser concebida como um processo de democratização radical, cuja meta e cujos caminhos são a conquista e extensão do poder (tendencialmente governante, desde o início) pelos cidadãos comuns: conquista e extensão do poder político, entenda-se, de deliberarem e decidirem, dando-se a sua própria lei, sobre os seus próprios assuntos colectivos - escusado é dizer que, sendo cada vez mais os aparelhos "económicos" que exercem efectivamente o poder político, ainda que sob a máscara da "gestão racional" e assim naturalizando e normalizando a sua dominação, a esfera da economia, aos seus diversos níveis, terá de ser uma área prioritária da democratização de que falo.
Mas sobre este conjunto de questões, permita-me que o remeta para três posts que aqui publiquei em momentos diferentes: "Que movimento por que democracia?" ( http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/que-movimento-por-que-democracia.html ), "Da democratização como plataforma necessária e suficiente da acção comum" (http://viasfacto.blogspot.pt/2010/11/da-democratizacao-como-plataforma.html), e "Mais c'est une révolte? - Non, sire, c'est une révolution" (http://viasfacto.blogspot.pt/2010/05/mais-cest-une-revolte-non-sire-cest-une.html).
msp
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