24/05/12

Esquerda Livre

Já que o Zé Neves traz o assunto à colação no seu "Esquerda livre?", talvez valha a pena adiantar aqui as razões políticas que me levaram a não subscrever o manifesto em causa, apesar das razões pessoais — a amizade e as convergências múltiplas que me aproximam sobre questões importantes de alguns dos subscritores — que me poderiam ter levado a fazê-lo.

Não subscrevi o manifesto, porque, abundando em termos "neutros" (desenvolvimento, ambiente, propseridade, etc.), e apesar da reiteração, mas demasiado imprecisa, de termos como "esquerda", "livre" e "democracia", lhe faltava o mínimo de caracterização política, de afirmação da necessidade de separar as águas, que uma plataforma, por mais inclusiva que se queira, não pode dispensar. E acresce aqui que os termos referidos são objecto de interpretações e usos distintos, por vezes antagónicos, podendo ser origem e alimentar equívocos que o texto do manifesto não contribui para dissipar. O que é que significa, por exemplo, em vez de fazer da exigência da universalização da participação igualitária nas decisões um critério distintivo da "esquerda livre", reclamar uma democracia, ao mesmo tempo, "mais representativa" e "mais participativa"?

Não o subscrevi também tendo em conta formulações que, embora não deliberadamente, enterinam o Estado como única ou insuperável forma de exercício do poder político, e outras que, não o dizendo explicitamente, podem ser lidas, independentemente das intenções pessoais dos seus autores, como consagrando o capitalismo — a sua organização hierárquica e fundamentalmente antidemocrática e classista da actividade económica — e a sua economia política. Esclareço que, sendo "anticapitalismo" e "socialismo", tal como "esquerda", termos que conhecem utilizações distintas e antagónicas, não penso que uma plataforma de defesa e extensão da cidadania activa e do autogoverno igualitário e responsável devesse sequer utilizá-los. A exigência de uma democratização instituinte e continuada (do governo, do mercado, da actividade produtiva, dos critérios de repartição estabelecidos, etc.) seria mais do que suficiente, contanto que a definição de "democracia" o fosse também, explicitando-a como regime em que a validade das leis e medidas colectivas exige a participação regular dos cidadãos na sua deliberação e decisão.

Enfim, não o subscrevi pelas mesmas razões que me fazem pensar ser efectivamente necessária qualquer coisa como uma plataforma activa cujas condições mínimas tenho tentado explicitar tanto neste blogue como noutros escritos e intervenções. E quero crer que não serão raros entre os subscritores do manifesto da "esquerda livre" aqueles que concordam com os princípios e condições que resumi, por exemplo, em "Da democratização como plataforma necessária e suficiente da acção comum" e, discutindo com o Pedro Viana e o Rui Tavares, em "Que movimento por que democracia?". É por isso que tomo a liberdade, aqui, de lhes dizer que, para honrarem os melhores propósitos da iniciativa que tomaram, talvez não fosse má ideia a definição de uma plataforma, não menos inclusiva, mas um pouco mais precisa.

15 comentários:

Libertário disse...

Seria de espantar que alguém de afinidades libertárias assinasse um manifesto feito de lugares-comuns e assinado por co-responsáveis dos governos socialistas mafiosos, além de personagens que são já há muito companheiros de estrada deste PS. Quando o Sistema se torna ingovernável não me parece que o caminho seja procurar as soluções dentro dele, pelo contrário, será fora dele e retomando a tradição dos movimentos sociais do século XIX e XX, de uma mudança radical das sociedades.
Clarificar ideias, e caminhos, é o mais urgente e isso não é o que faz tal manifesto, pelo contrário...

as disse...

compreendo as reservas em relação ao manifesto; foram as minhas no momento em que o subscrevi, tal como bem aponta no final deste texto.

contudo, permito-me deixar duas perguntas:

1. serão inconciliáveis uma maior representação e uma maior participação? ou uma não advém, precisamente, da outra?

permito-me adiantar que, em certa medida, abandonar de todo a representatividade em favor exclusivo da participação exigiria de todos deliberar sobre tudo em todos os momentos. como ponto de fuga, esta forma de participação total, se quiser, é fundamental. mas até que ponto se poderá levar a aproximação a esse ponto? (deixaria como forma de abordar o problema algo como a definição, em geometria, do que são duas linhas paralelas, que o sendo, tocam-se no infinito. mas o infinito está sempre para lá do agora, ou do aqui, no caso. o que nos obrigaria ao trabalho constante da relação entre as duas linhas)

2. o segundo ponto prende-se com a pouca precisão do manifesto. concordo consigo, claramente. mas deixaria uma pergunta: não seria necessário que um primeiro manifesto de algo que se pretende desenvolver a partir da participação de quem o assinou ou venha a participar nas suas reuniões fosse propositadamente aberto e vago?

contudo, e como mera nota de rodapé, um texto com estas dimensões foge completamente à definição do que é um manifesto. uma aporia difícil de vencer se não pela vontade - seria desejo? - que fosse tomado como isso mesmo por quem o redigiu.

um abraço.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro as,

talvez a sua leitura seja sustentável - mas teria de ser explicitada no manifesto, para desfazer ambiguidades e equívocos. É que, muitas vezes, a oposição entre "representativa" e "directa", ou "participativa", a propósito de "democracia" é utilizada precisamente pelos adversários da cidadania activa e da extensão do regime democrático a áreas mais amplas do que as da cena política oficial. A meu ver, de resto, a democracia participativa - ou a democratização como processo participado e cujos avanços são sustentados e legitimados pela participação - NÃO exclui delegados e mandatários nem um certo número de magistrados mandatados para funções especígicas. E a minha questão era a da excessiva "aproximatividade" ou imprecisão de certos conceitos e formulações, comprometendo a verosimilhança e a operacionalidade políticas da plataforma proposta. Uma plataforma pode ser ampla, muito ampla, mas tem de ser consistente para poder sustentar alguma coisa ou servir de ponto de partida em que se apoie alguma acção transformadora.

Cordiais saudações democráticas

msp

as disse...

caro miguel serras pereira,

vai em partes porque o blogger não autoriza outra forma.

tentei, juro que tentei, percorrer todas as ligações implicadas neste texto. discorrer sobre isto sem espalhar o terror do comentário das bíblias de 1100 seria impossível.

no entanto, deixo comentários o mais breves possível - viver de paradoxos ou aporias é, eventualmente, trazer o mundo à teoria. o que poderá ser em si, um paradoxo, se bem que, por minha parte, seja um paradoxo necessário e estimável.

1. do primeiro, http://5dias.net/2010/02/10/daniel-bensaid-potencias-do-comunismo/,
retiro tamanhas contradições que não as consigo desenvolver sem um trabalho mais aturado. principalmente a partir do ponto 3, a partir do momento em que o empirismo histórico se perde e começa outra coisa - eventualmente contrária ao tal comunismo filosófico que parecia ser o objetivo. revelou-se pescada de rabo na boca, mas talvez a leitura diagonal o contradiga.

2. até aqui concordaria, por maioria de razão comigo próprio, com tudo. e isto mesmo tendo em conta a forma como os termos - socialismo, por exemplo - são utilizados numa descontextualização histórica dos termos, o que leva a que possam ser equivalentes a tudo por meio de uma retórica mais ou menos elaborada.
no entanto, e por me estar a dirigir a si em concreto, ressalvo a conclusão: 'É que a democratização efectiva do exercício do poder político – em que incluo essa sua vertente essencial que é a organização da economia – seria a mais radical das revoluções. E a medida em que a praticam, a medida em que a “agem” na sua lógica e na sua dinâmica, deve ser já o critério por excelência das nossas lutas e linguagem políticas presentes.'

ressalvo-a não porque discorde, antes pelo contrário. mas pergunto-me, e sem qualquer conhecimento sobre o assunto, se o próprio facto de ter que se salientar a economia - e ciente das chamadas de atenção, por exemplo por uma economista brasileira da qual não me recordo o nome, que toda a economia é economia política e não um conjunto de modelos matemáticos (o que remete totalmente a disciplina para o lamaçal - não num sentido pejorativo - que são as ciências sociais em contraponto às ciências naturais - em si mesmas um outro lamaçal que também não discutirei aqui, mas que deixo apenas no sentido de um senso comum que separa as ciências desta forma) - retomando, que se o facto de ter de se salientar a economia não é já um modo de concessão a uma visão que privilegia trocas, seja de divisas, seja de sorrisos? tenho, para mim, e em nota de rodapé novamente, que a primeira ideia a abolir em qualquer orientação democratizante era mesmo a ideia de troca. resumindo, eu não faço porque recebo em troca; faço porque é esse o meu contributo para a comunidade.

as disse...

3. 'Esta breve conclusão sugere um ponto de partida prometedor: a democratização como plataforma necessária e suficiente tanto da resistência à oligarquia como da ousadia de explorarmos e aprofundarmos a "crise" desenvolvendo as capacidades governantes da cidadania política comum'.
sinceramente, já não tive paciência para ir a estas notas bibliográficas - o que não as questiona. nem a elas nem à remissão, apenas exprime a incapacidade de me dirigir a tudo (o que em si mesmo retoma o meu argumento inicial da incapacidade de se deliberar sobre tudo a qualquer momento).
a questão que me fica é a seguinte, mais do foro semântico, mas no entanto muito prática - isto se pudermos separar um campo do outro - aprofundar a crise em que sentido? discuti-la? trabalhá-la, problematizá-la? e enquanto o fazemos, que acontece a quem não a sobrevive?
obviamente, da sequência destas últimas palavras podemos depreender a crítica à razão do manifesto por uma esquerda livre enquanto manifesto. se não aponta um caminho, se não prescreve, como nos serve enquanto solução? o que orienta, diretamente, para o problema da aceitação de um modelo dominante - capitalista, se quisermos - que movimenta a maior parte do eleitorado: é exatamente por, de forma aparente, se direcionar à resolução do viver em comum de forma comum (com duas aceções do termo comum em cada um dos usos da palavra) que se mantém sob o espectro de uma vivência democrática. em última análise, é pela força de uma ligação ao viver do dia-a-dia que prevalece.
a partir daqui poderíamos retomar a ideia da vivência religiosa como forma de imposição de uma ligação ao divino, e portanto, daquilo que nos transcende - os nossos impossíveis e também, mas não no mesmo sentido, daquilo que nos ultrapassa - como única forma de substanciação de um bem comum a ser vivido para além do possível. circulam, aliás, como bem pude entender recentemente num seminário unipop, as ideias de uma forma de tentar formular ou perceber o além do possível. Ora, não será essa mesma dimensão além do possível - e aqui caio no mesmo malabarismo das palavras que apontava uns parágrafos acima – que justificava uma crença? Uma ideia do que pode ser sem qualquer ligação ao que nos é comum, isto é, aquilo que materialmente vivemos e que podemos apreender? Defender o além do possível é pertinente para além de um discurso que se remeta à ligação entre, por exemplo, o estético e o político? Isto sabendo nós, que uma das distinções possíveis entre ume outro campos é, precisamente, a diferença entre a resolução e regulação do viver em comum hoje, aqui e agora, e a ausência de necessidade de uma razão prática actual? (digo razão prática actual, por considerar qualquer adereçamento à arte como dependente de uma razão prática, no mínimo a razão prática de despoletar pensamento, a razão prática da razão em si, se quisermos, sem a qual não estaríamos aqui a raciocinar. Pescada de rabo na boca, concedo.)
passo ao ponto seguinte por esgotamento, meu (que não dou mais) e do possível leitor.

as disse...

4. ‘Mas se a ambição do BE é conseguir influenciar a evolução do modelo sócio-económico em Portugal, então as estratégias acima descritas não bastam. A capacidade de influência cultural e social, em larga escala, donde decorre a força eleitoral, requer a construção duma grande narrativa unificadora e coerente, que faça sentido para as pessoas. O PCP tem essa narrativa. Mas tem sido incapaz de adaptá-la às mudanças culturais e sociais. O seu discurso anti-capitalista remete para o passado, o que também face à incapacidade de obter resultados concretos, tem motivado poucos aderentes novos ao longo do tempo. O PS também tem uma narrativa: o actual modelo político e sócio-económico funciona, mas precisa de ajustamentos. É um discurso que apela a uma evolução conservadora, pragmática, focando-se no presente. O BE não tem tido uma narrativa coerente, e claramente diferenciada perante PCP e PS. E precisa desesperadamente dela. Duma grande narrativa que aponte para um futuro alternativo, sem omitir o presente.’
Sem mais. Era exactamente isto que estava em discussão no ponto anterior deste comentário.

as disse...

5. ‘Sim, hoje sou eu que encho o peito e digo: eles não são de esquerda.
E repito.
Sabem porquê? Porque a esquerda, na origem, é uma aliança. Mais do que uma doutrina ou uma ideologia, a esquerda é a aliança daqueles que não são ricos nem poderosos. A esquerda é uma aliança de pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade.
Sendo os ricos e poderosos naturalmente poucos, a esquerda terá de ser, para ter força, a união dos muitos. E esses muitos são — como é evidente — muito diferentes uns dos outros. Não são, não podem ser, todos da mesma seita. Não têm, e não podem ter, todos os mesmos objetivos de futuro, a mesma visão do mundo, ou o mesmo estilo de vida. Isso é impossível, e a esquerda que é esquerda luta para que isso seja impossível, e para que ainda assim haja unidade entre os muitos, os que não são ricos nem poderosos, os que se arriscam a ser lixados se não souberem fazer uma aliança.’
Não discorrerei uma palavra mais para além da iniquidade da discussão a minha esquerda é melhor que a tua. Ideia que, aliás, contrapõe o ponto de partida com o ponto de chegada desta citação. Obviamente, trata-se disso, de uma citação e portanto recoloca todo o pensamento de rui tavares apenas nesta circunscrição. Por outro lado, e não não outro, aqui se encontra a base do manifesto que tratamos e também a sua impossibilidade enquanto manifesto. Não sei qual a origem da esquerda e as suas diversas internacionais contrapõem a ideia de aliança que perpassa o texto.destas palavras ressalta o voluntarismo e a ilusão. Sem ela não conretizaremos o impossível. Reportando-me a pontos acima, sou ateu. O impossível é o ponto de fuga e nunca a base da sustentação do que posso tentar argumentar.
E, no entanto, na análise primeira, concordo com estas palavras. O paradoxo permanece a base do que discutimos. E a questão que se coloca em relação à subscrição do manifesto permanece a mesma: quanto mais aberto, mais paradoxal.
E, em contraponto, quanto mais aberto, mais permanece sujeito à cisão. A cisão que desde logo o Miguel aponta na circunscrição do seus termos – ou na sua definição para lá dos diversos significados de cada palavra.
E a resposta parece simples. É na definição dos termos que a cisão se impõe e a ideia não é de hoje, como todos sabemos.
Portanto, resta-me apontar o chão que me foge entre o ponto de fuga de rui tavares e as linhas paralelas do Miguel. Ambas válidas e coerentes entre si porque, como tentei exemplificar pelo exemplo da geometria, ambas fazem parte do mesmo momento embora ambas não partam, eventualmente, de um mesmo ponto de fuga restrospectivo, se me é permitido incluir uma nova figura neste modelo.

as disse...

6. ‘A modificação que introduzi foi só uma: onde o Rui escreveu "esquerda", eu escrevi "democracia", a fim de acentuar não a defesa ou afirmação destes ou daqueles interesses ou necessidades particulares, mas a exigência de igualdade de poder que é condição de um governo livre.’
E, chegado aqui, calo tudo o que disse anteriormente. Uma questão de termo. Importante, todavia, demasiado importante para ser calada – até pela importância de uma despedida escrita como abraço democrático.

No entanto:
‘O ponto que me importa marcar não é o do relativismo, mas o da criação. A "vida boa" não pode em deve ser concebida como um estado de coisas final ou, menos ainda, uma organização estatal cientificamente definitiva, mas como um fazer quotidiano, que quotidianamente se interroga e explicita, mantendo-se interminavelmente em aberto à posição de novos fins, imaginados, criados e propostos a partir das encruzilhadas comuns dos nossos trabalhos e ócios dos nossos dias. É esta concepção em acto da "vida boa" no fazer e na deliberação do que fazer que permite que, a partir de pontos de partida diferentes, correspondendo ao legado de diferentes "tradições" e/ou "grandes narrativas", a "aliança" de que fala o Rui Tavares e que é, no fundo, também a preocupação fundamental do post do Pedro Viana.’
Se a minha argumentação era sustentável, logo de início, era aqui – neste parágrafo – que a ideia desse argumento residia, mas teríamos que o relacionar com o que está imediatamente acima.
Se não precisamos de narrativas, grandes narrativas, negamos desde logo a forma do manifesto; mas se necessitamos de um fazer quotidiano que se interroga e explicita, negamos o manifesto igualmente. Ou seja, se, à partida, a ideia de um manifesto como prescrição é uma aporia difícil de resolver neste caso – excetuando, como bem diz, que tudo aquilo que sustentei não é explícito no texto. E aí terei que conceder sem mais a cada ponto da resposta que me endereçou - é essa ausência de prescrição que o coloca na linha do que aqui defende.

as disse...

7. por último: ‘Esclareço que, sendo "anticapitalismo" e "socialismo", tal como "esquerda", termos que conhecem utilizações distintas e antagónicas, não penso que uma plataforma de defesa e extensão da cidadania activa e do autogoverno igualitário e responsável devesse sequer utilizá-los.’
Dentro do que li anteriormente, percebo o seu ponto. Todavia, parece-me excessivo recusar um texto porque os termos que usa não correspondem exatamente ao que deles pensamos ou à sua indefinição – reforçando aqui que a indefinição dos termos, como aponta, pode ser precisamente o que gera os equívocos passíveis de minar a discussão pública que uma democratização plena (ou total, como escrevi no comentário anterior ) – sabendo-se e conhecendo-se os autores do texto (ou pelo menos os que sói reconhecer-se, o que é em si e na prática a maior aporia de todo o manifesto, presente até e lamentavelmente na sua apresentação pública) e, portanto, uma definição mais concreta do que significam.
Foi esta a minha dúvida no momento de assinar.
Percebe-se a sua argumentação na frase seguinte:
‘A exigência de uma democratização instituinte e continuada (do governo, do mercado, da actividade produtiva, dos critérios de repartição estabelecidos, etc.) seria mais do que suficiente, contanto que a definição de "democracia" o fosse também, explicitando-a como regime em que a validade das leis e medidas colectivas exige a participação regular dos cidadãos na sua deliberação e decisão.’
Todavia, e agora terei que usar da ironia possível no seguimento do que expus acerca do manifesto, tal não seria um manifesto, mas sim, um dicionário.

Peço desculpam por este último apontamento, que poderá ser mal entendido e não é esse, de todo, o objectivo do comentário. No entanto, as horas tomadas a ler as várias entradas toldam a escrita.
Desculpo-me ainda por não respeitar a telegrafia do meio. Defendo-me com qualquer coisa como diria adorno, citando de cor e adulterando-o, por isto, de alguma forma: o alargamento dos meios pode corresponder à sua limitação.
Um abraço democrático que, por o ser, se torna sentido.

Miguel Serras Pereira disse...

Cao as,

o seu comentário dá muito que pensar e lavanta questões que espero que venham a ser discutidas e retomadas, embora muitas delas vão para além das razões que podem formular-se contra ou a favor da decisão de subscrever a plataforma "Esquerda Livre".

Além de que concordo com a sua objecção sobre a concessão relativa que é explicitar o carácter político de toda a economia - mas por vezes é necessário fazê-lo para sermos compreendidos, de tal modo as cartilhas dominantes separam as duas coisas e as apresentam como "naturalmente" diferentes, ou dão, na alternativa, à economia a consistência de uma matriz substancial que produzitia tudo o mais e seria a explicação da política ou a sua chave científica -, penso que podemos, de momento, deixar aos leitores interessados o cuidado de confrontar criticamente as nossas perspectivas diferentes, tanto nas suas convergências como sobre os pontos em que, digamos assim, "polemizam". Os meus votos são que esse confronto - ou outros semelhantes, na mesma área - possa ir tendo lugar em voz alta, obrigando-nos a transformar o nosso vocabulário e a formulação das nossas propostas de acão, contribuindo assim para a extensão e transformação de espaços comuns de debate político, que de algum modo actualizem o regime de deliberação e decisão democráticas que ambos, creio, pressupomos como outro nome da democracia.

Obrigado e abraço

msp

as disse...

caro msp,

exacto. e desculpe o comprimento do texto.

foi um prazer, abraço.

Anónimo disse...

Ficamos efectivamente empolgados pelo nivel, a coragem e transparência da troca de ideias/processos e projectos entre MSP e AS, tudo em torno do Manifesto da Esquerda Livre vindo a público há menos de duas semanas.Existe no diálogo em movimento um sentido muito eloquente e soberano de não confiar no delírio evanescente da democracia...representativa, avatar mais ou menos púdico e mistificador de uma tentação burocrática assaltante e asfixiante! Ora,no quadro de proposição estratégico do lançamento de uma plataforma de acção política, há um desideratum de base que Castoriadis formula( e com o qual tento sensibilizar os dialogantes actuais e futuros): " O socialismo só é possível como uma acção consciente de transformação da sociedade. Mas uma tal transformação consciente só é possível caso os Elementos Essenciais do Seu Contéudo e Forma sejam formulados explicitamente de antemão. Isto não significa que a revolução burguesa improvisa e a revolução proletária aje de concerto com um plano pré-estabelecido- mas tão-só que a improvisação da revolução proletária contém - e deve, sob pena de falhanço, conter - infinitamente mais elementos conscientes que todas as revoluções precedentes.Não haverá socialismo sem projecto socialista- e o programa socialista da organização é um dos pólos desse projecto. A formulação explicita desse projecto é uma condição da transformação das possibilidades históricas objectivas no sentido da revolução ". Salut! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Niet, a citação é oportuna, embora Castoriadis, anos mais tarde, tivesse adoptado uma terminologia mais próxima da que eu adopto, movido em boa parte pelas razões que ele adiantou na introdução de 1976 (creio) a Le contenu du socialisme (decidindo falar preferencialmente de "autonomia", etc., etc.).
Efectivamente, não sabemos, e não podemos saber como que por definição, que caminhos, etapas, formas, etc, poderão animar, efectuar, um processo de democratização como aquele a que me refiro. No entanto, há condições necessárias, que teremos de adiantar e que caracterizam o projecto político em causa. Assim, por exemplo, não sabermos o caminho, e o facto de termos de o fazer a muitos e não apenas de lhe descobrir, não sei que mapa implícito pré-definido nas profundidades do social que caberia à ciência revelar e legitimar, implica que tenhamos consciência disso mesmo e que a mantenhamos na acção, como refelxão que lhe é intrínseca, que é uma das dimensões da acção política, um seu traço distintivo.

Saúde e liberdade

msp

Anónimo disse...

O apontamento técnico que cito do Castoriadis é dos anos 60, quando se iniciaram no interior da revista " Socialismo ou Barbárie " as clivagens com o grupo de Claude Lefort, como tu, MSP, o sabes muito bem; o prefácio ao " Conteúdo do Socialismo " é de Abril/Maio 1979, na grande fase post-marxista do grande conselhista e autonomista. Aliàs, e já agora, Castoriadis, a sua teoria e desenvolvimento estrutural, afigura-se-me muito mais exaustiva e interactiva do que a de Mattick e Pannekoek, o que é surpreendente e admirável. " Uma sociedade justa não é uma sociedade que adoptou, uma vez por todas, leis justas. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta- dito de outra forma, onde existe sempre a possibilidade socialmente efectiva de interrogação sobre a lei e sobre o fundamento da lei ",in " Contenu du Socialisme ", 1979. Liberté et égalité! Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Tens razão, Niet: a introdução é de Abril-Maio de 1979, e é um dos textos é que a questão terminológica da "autonomia" é tematizada e conceptualmente justificada.
Por outro lado, a citação sobre a "sociedade justa" que fazes é, realmente, capital: assinala a necessidade de ruptura com os horizontes míticos da escatologia do "fim da história", da "superação da política" através da simples "administração das coisas", e por aí fora.

Bom vento!

msp