02/05/12

A idealização do oprimido

O que, entre alguns outros, já escreveram a Ana Cristina Leonardo, o Sérgio Lavos, o Miguel Madeira, mas, sobretudo, e sem desprimor para os anteriores, o Luís Rainha, dispensa-me de retomar o comentário directo do episódio do Pingo Doce. Por isso, aqui direi somente,

em primeiro lugar, que, tal como a demagogia nacionalista proliferante, a idealização do oprimido serve somente a opressão, porque agrava a fraqueza, a subordinação e a dependência daqueles que a sofrem;

e, em segundo lugar, que é essa idealização que propagam e exacerbam os que falam dos acontecimentos desencadeados pela iniciativa sui generis do Pingo Doce neste Primeiro de Maio, vendo neles o prenúncio da expropriação dos expropriadores ou uma justa luta dos consumidores contra a exploração.

É caso para dizer e concluir que, por um lado, em adversários como estes e alguns outros, a oligarquia dominante encontra, na circunstância, defensores de primeira qualidade e amplificadores impares do "Não Há Alternativa" que toma por divisa; enquanto, por outro lado, a eventual multiplicação de "vitórias populares" ou de "reivindicações dos consumidores" como as de ontem, seria a derrota derrota final do que nos resta de solidariedade democrática e responsabilidades de cidadania.

5 comentários:

Libertário disse...

Uma coisa é certa se a crise se continuar a agravar daqui a alguns meses, pode ser também anos, veremos também uma multidão, talvez com mais consciência, a assaltar os grandes supermercados, recuperando assim os bens com 100% de desconto...Isso já ocorreu no século XX em Portugal.

Como se salta desse rebanho de consumidores empurrando-se para «aproveitar» os descontos, para uma multidão invadindo e pilhando os grandes comércios, não chega a ser segredo: radicalização social em resultado do agravamento da crise económica e social mais aquilo que já se chamou «consciência de classe», algo bem diferente da «consciência de consumidor».

Miguel Serras Pereira disse...

Tudo bem, Libertário. Mas o que eu digo continua a ser verdade, e uma verdade que convém termos presente: a afluência a super-saldos de massa, ainda por cima no Primeiro de Maio, ou noutra jornada de luta, não é um ensaio geral da tranformação radical das relações de poder e propriedade. Antes, pelo contrário, confirma-as e reforça-as.

Cordialmente

msp

Ana Cristina Leonardo disse...

Basicamente, o que eu penso do assunto, está neste post do Luiz Carvalho, fotógrafo profissional e um bom fotógrafo.

"O índice de confiança no consumidor subiu ontem pela primeira vez em Portugal, há muitos meses. O Pingo de deflacção do Doce patrão dos Santos. Aquele que passou a sede da empresa para a Holanda porque se internacionalizou com o seu negócio de merceeiro. O que é legítimo. Mas o que não é ético é a sua posição política. Ele acha que só porque é rico pode insultar primeiros-ministros e fazer de agente provocador.
Vindo de quem vem a acção de ontem ganha um sentido político e o sinal é este: nós os ricos podemos desarmar ainda mais os pobres atirando-lhes pernas de frango que eles apanharão no ar com a boca. O mesmo que eu faço ao meu cão quando lhe atiro o biscoito depois de ele se ter portado bem e ter cagado na rua.
O grave não é trabalhar no 1º de Maio. Eu sempre trabalhei nesse dia e ontem trabalhei 14 horas. Mas isso não faz de mim um neo-liberal ou um cidadão que não saiba e defenda os valores básicos de uma democracia.
O grave é a provocação. Como se eu no dia 13 de Maio fosse a casa da ninha mãe e lhe oferecesse um livro das Testemunhas de Jeóva.

O decoro e o bom senso nestes tempos difíceis deveriam ser lemas dos ricos, dos que engordam à custa de negócios monopolistas e que desafiam as leis.

Na verdade há na promoção do Pingo um lado ilegal. Foi feito dumping. Não eram saldos, nem a promoção de produtos em fim de prazo.

O Pingo desrespeitou os trabalhadores e fez concorrência desleal.

PS: claro que só foi trabalhar quem queria para a mercearia do de Santos mas experimentem trabalhar para o emproado e digam que vão gozar o 1º de Maio. Vão ver o que lhes irá saír em sorte."

Anónimo disse...

Totalmente de acordo, Miguel.

E, a "idealização do oprimido" é um conceito a reter e a estudar.

Um abraço

nelson anjos

Joszef disse...

Completamente de acordo!

Não me parece que seja particularmente proveitoso embarcar em críticas cerradas a quem foi fazer compras ao Pingo Doce no dia de ontem. Com certeza que não são "zombies", nem traidores de classe que não se foram manifestar como deviam, ou algo do género. Mas, por outro lado, o (quase) elogio a quem foi ao Pingo Doce como uma espécie de "verdadeiro povo" que os intelectuais malvados criticam porque se imaginam num pedestal, ou como prenuncio de uma futura apropriação desses bens. Parece-me portanto errada por duas razões:

1) Dias como ontem parecem-me mais uma versão levada ao extremo de uma certa cultura do "desconto" e do "leve 2 pague 1" que faz parte tanto do marketing empresarial, como das estratégias dos consumidores para enfrentarem as despesas. Nesse sentido, não me parece que coloque em causa as "relações de poder e propriedade", como foi anteriormente dito. É apenas uma continuação das mesmas, elevada ao nível da provocação por ter sido feita no 1º de Maio.

2) Os discursos virados contra quem criticou - com epítetos mais ou menos idiotas - as pessoas que foram ao Pingo Doce têm a sua razão de ser, mas também têm as suas armadilhas. Por um lado, porque "imaginam" os críticos como burgueses acomodados que não sabem nada das reais necessidades das pessoas. Ora, parece-me que são múltiplos os críticos e múltiplas as críticas. A primeira que me veio à cabeça foi a incredulidade de que houvesse alguém disposto a passar 7 horas fechado num supermercado...eu não aguentava! (Nem saberia como gastar 700€ num Pingo Doce, como parece que algumas pessoas fizeram.)Por outro, porque "imagina" os acontecimentos de ontem quase como uma espécie de economia moral, em que a multidão consumidora está a um passo de se tornar uma multidão revoltada pronta a tomar aquilo a que tem direito. Não me parece...