Quando se escreve:"O acontecimento, como realidade abruptamente inédita e inacessível ao discernimento não é, nem pode ser, sufragável. E pede-nos uma de duas coisas: ou a ele aderimos ou o rejeitamos, e nisto a adesão ao indiscernível efectua-se na base de nada", o que se exalta são os direitos superiores da fé e do fanatismo, baseados na revelação, contra o juízo político e a racionalidade democrática, enquanto elementos necessários de qualquer perspectiva de emancipação das relações de poder hierárquicas, entre as quais se contam as relações de produção capitalistas.
Por outro lado, quando se confunde - por ignorância ou cálculo - a democracia com a vigência do princípio aristocrático da eleição dos melhores governantes, faz-se esquecer que o princípio democrático fundamental não é a eleição de alguns magistrados ou delegados, mas a participação igualitária de todos no governo da cidade e na deliberação e decisão das suas leis, tarefas e objectivos comuns. Ou seja, deita-se borda fora qualquer perspectiva dessa democratização radical da economia política fora da qual não se vê — como, honra lhe seja, Marx também não via — o que possa ser o socialismo.
Por mais que se invoque Marx para apresentar a "revolução" como uma reedição política do episódio religioso da Estrada de Damasco, em que razão e a vontade abdicam perante a manifestação de força de uma verdade arbitrária e arbitrariamente imposta e revelada "porque sim", o certo é que a "revolução" em causa parece ter mais a ver com o decisionismo e o violentismo do irracionalismo fascista do que com qualquer outra orientação filosófica ou política. Mas pode ser que algum crítico mais caritativamente relativista venha dizer-nos que uma versão fascista do marxismo é tão legítima como qualquer outra que se queira dar-lhe. Parafraseando Kundera, o relativismo politicamente correcto é, com efeito, o mais brilhante aliado dos seus próprios coveiros.
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04/05/12
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10 comentários:
Os dilacerantes matemas e a ontologia servil mais rasa e masoquista- metafísica de supermercado-agregam este discurso do neo-papa da servitude burocrática nacional... Como sublinha Castoriadis, em nenhum domínio, mesmo no da " pura " filosofia, não existe interpretação que não seja ligada a um projecto e a uma vontade...política.O non-sens era muito bonito para os dadaistas e quejandos no papel, claro! Niet
O fanático Schoenberg, antes de escrever o seu Tratado de Harmonia, consta que o sufragou. Exactamente. Pediu votos para o fazer/escrever. Apoios, uma base maioritária.
Quando, para refutar a deliberação e decisão entre iguais no governo geral da cidade, o sofista recorre a frases como: "O fanático Schoenberg, antes de escrever o seu Tratado de Harmonia, consta que o sufragou. Exactamente. Pediu votos para o fazer/escrever. Apoios, uma base maioritária" -, tenta confundir várias coisas: a criação individual e a colectiva; a liberdade de proposta e de express\ao e a decisão política; a distinção entre o que um regime democrático institui como relevando da eleição (que não é por si só um princípio democrático) e da legislação e o que não é nem deve ser regulamentado.
Por definição, não escolhemos democraticamente o acontecimento nem a criação. Mas tomamos partido sobre eles, e é a esse nível que a questão da democracia e do juízo político se põe. O facto do acontecimento ou o facto da criação não critérios de avaliação de si próprios. A invenção dos sovietes, em 1905, foi um acontecimento e uma criação. Mas Auschwitz - ou, recuando no tempo, a instituição da escravatura - foi-o também. Tanto no primeiro caso como no segundo, estamos perante "novidades" que não são dedutíveis nem decorrem necessariamente do estado de coisas anterior, que excedem as suas condições de possibilidade, "novidades" que talvez tenham condições necessárias, mas que as não têm suficientes (ou são elas próprias a fazê-las ser ou a criá-las). O porblema é que isso não as torna equivalentes nem nos dispensa de tomarmos partido sobre elas.
A rendição perante o acontecimento é própria da fé na esfera religiosa e da abdicação da exigência de dar conta e razão que a epifania requer. Na esfera política, corresponde à sacralização do poder e da lei, à consagração da superioridade dos pastores sobre o "rebanho pelo medo perseguido" dos súbditos. É a estrada real do totalitarismo.
Mas há mais: o próprio sofista que fala do acontecimento como "indescernível", sabe ao mesmo tempo o que é e deve ser esse acontecimento que opõe ao probabilismo ou à incerteza da democracia. Com o que se refuta a si próprio e enfraquece sem remédio o seu argumento. No entanto, isso pouco lhe importa: no fundo, ele despreza a força do argumento em favor do culto do (não-)argumento da força. É o que o leva, entre outras coisas bem mais graves, a fazer a apologia da censura das opiniões alheias nos órgãos da blogosfera em que se exprime, sem ter pejo de usar a liberdade de expressão, democraticamente regulada, que outros adoptam e reivindicam.
msp
O Carlos Vidal tem toda a razão na importância do que ele chama de acontecimento: uma irrupção vertiginosa e inesperada criou o poder operário na Comuna de Paris, em Petrogrado em 1905 e 1917 na formação de sovietes, etc. Todavia, esse acontecimento nunca irrompeu de uma facção minoritária mas, inversamente ao que muitos pensam, à acção de grandes massas que deixaram de estar subordinadas aos princípios de organização vertical que o capitalismo impõe. Portanto, o que o Carlos chama de acontecimento não é incompatível com a explosão da classe trabalhadora em novas instituições, pelo contrário, como o seu comentário aqui nesta caixa me parece evidenciar.
O caso de Auschwitz não tem nada de acontecimento. Ele foi o corolário da racionalização burocrática e da organização capitalista e que já se tinha expressado num sem-número de outras prévias experiências concentracionárias. O próprio anti-semitismo nazi tem raízes anteriores à própria constituição política do nazismo. Pode-se obstar que o grau de carnificina foi uma novidade histórica. Sim, mas a verdade é que Auschwitz já é o corolário tanto de um plano racionalizado de organização do universo concentracionário, como do racismo irracionalista. Ambos os processos (e de como o racional e o irracional se podem interpenetrar...) são anteriores a Auschwitz.
Caro João,
deixemos a questão da "solução final" - que teve, sem dúvida, condições necessárias, mas as ultrapassou amplamente e surpreendeu pela sua "grandeza" o s próprios nazis a par da sua operação (há um discrso de Himmler revelador a esse respeito) - e que nessse sentido foi uma criação original.
A questão é que a versão do acontecimento que V. apresenta difere em muito daquela que é formulada no post que eu critiquei. Tanto quanto vejo, V. não sustenta que a novidade do acontecimento seja o seu próprio critério ou suspenda a exigência de racionalidade e deliberação. Se ler com atenção o meu comentário anterior, creio que compreenderá o que lhe digo.
Um reparo final: não gostaria - e creio que o João também não - de reduzir a questão da democracia à participação ou mobilização de grandes números. Por democracia trata-se de entender aqui a participação igulaitária no governo e nas leis que nos damos, e é por isso que a afirmação da democracia é a negação das distinções hierárquicas e de classe que estruturam as actuais relações de poder (na produção "económica", sem dúvida, mas não só).
Quaanto ao resto, tudo bem.
msp
«não gostaria - e creio que o João também não - de reduzir a questão da democracia à participação ou mobilização de grandes números».
Creio que salientei mais essa dimensão mas não deixei de focar o seguinte: as «grandes massas que deixaram de estar subordinadas aos princípios de organização vertical que o capitalismo impõe». Portanto, o irromper de massas operárias na cena política e social em processos revolucionários não é obviamente uma mera questão numérica, mas inscreve novas relações sociais e novas relações sociais não mais ancoradas na exploração e na opressão. E este é o dado mais relevante.
Creio, por isso, que essa irrupção tem um quê de "irracional" (com aspas) no sentido em que essa espontaneidade inicial não é algo planeado ou de esperado. Por isso equivalo aqui o "irracional" (repito, com aspas) ao espontâneo/inesperado e não no sentido que você tende a querer atribuir (a meu ver, precipitadamente) ao texto do Carlos Vidal: uma concepção da irracionalidade aproximada ao fascismo. Algo que não encontro no texto.
Caro João,
eu não diria "irracional", mas irredutível às condições - ou razões - anterioores. Mas, enfim, adiante.
No entanto, o que não vejo é como o que V. pensa e escreve pode ser compatível com a afirmação do Cv: ""O acontecimento, como realidade abruptamente inédita e inacessível ao discernimento não é, nem pode ser, sufragável. E pede-nos uma de duas coisas: ou a ele aderimos ou o rejeitamos, e nisto a adesão ao indiscernível efectua-se na base de nada".
msp
Mas essa emancipação de importantes segmentos das massas trabalhadoras não irrompe apenas no contexto de revoluções positivas; também as vimos no advento do fascismo italiano e até do nazismo.
De qualquer forma, isso do "na base do nada" é uma abstracção — claro que há sempre desínios, promessas, horizontes revelados pelas vanguardas revolucionárias para atrair as massas.
Agora isso do Schoenberg é mesmo exemplo de esteta em torre de marfim, confundindo um plano subjectivo e pessoal com a modificação da vida colectiva. E até o Schoenberg pediu e demandou apoios para o seu sistema composicional, de colegas músicos e do público, claro. Sem esse apoio nunca hoje saberíamos o que é a dodecafonia.
Karlos
Interessante e decisiva talvez seja a incursão no famoso livro de Mehdi B. Kacém," Depois de Badiou ", que encerra uma monumental crítica do " sistema " construído nas últimas quatro décadas pelo antigo aluno de L. Althusser. MBK vai ao ponto de o classificar de extrema-direita metafísica e post-moderna stalino-wagnerista... " La paradoxie éclate dans l´entreprise actuelle de Badiou: traduire La République de Platon dans un langage acessible au public de Colaricocosshow( programa de TV de critica política com bonecos). Car dans ce livre, Platon ne développe pas une Théorie du Sujet mais de l´Etat ( ou, mais c´est le sinthome au sens fort, du Sujet comme Etat); et tout grand philosophe à sa suite aura toujours appelé " politique " une Théorie de l´Etat, de Platon et Aristote à Rousseau et Hegel en passant par Hobbes et Machiavel. Il ya l´exception Marx, bien sûr. C´est de lui que Badiou hérite le motif du dépérissement de l´Etat, como téléologie politique propre à nôtre séquence historiale. En d´autres termes, mais il n´est que aujourd´hui que nous puissions nous en aviser, la spécificité antiphilosophique du politique est précisément " l´aveuglement " de Badiou: quelle soit la seule " procédure générique " à pretendre à la place de la philosophie, tout simplement parce que la philosophie s´est originairement instituée comme prétention légitime à la place de la répartition de toutes les places, c´est-à-dire à la politique absolue, c´est-à-dire à l´Etat absolu. C´est ça que révèle, en plus de son aberration proprement épistémologique et conceptuelle, la pensée de l´Etat chez Badiou: son " communisme " concentrationnaire, sous prétexte d´abolir l État en retraduisant Platon, rêve de l´Etat absolu où tous seraient mis au pas, à la baguette et pour finir à la roue de rééducation ",MB Kacem, in Après Badiou,pág. 369, Éditions Grasset Et Fasquelle. Niet
Miguel, The idea, here, is that a truth's invariance makes it genuinely indiscernible: because a truth is everywhere and always the case, it passes unnoticed unless there is a rupture in the laws of being and appearance, during which the truth in question becomes, but only for a passing moment, discernible. Such a rupture is what Badiou calls an event, according to a theory originally worked out in Being and Event and fleshed out in important ways in Logics of Worlds. The individual who chances to witness such an event, if he is faithful to what he has glimpsed, can then introduce the truth by naming it into worldly situations. For Badiou, it is by positioning oneself to the truth of an event that a human animal becomes a subject; subjectivity is not an inherent human trait. According to a process or procedure that subsequently unfolds only if those who subject themselves to the glimpsed truth continue faithful in the work of announcing the truth in question, genuine knowledge is produced (knowledge often appears in Badiou's work under the title of the "veridical"). While such knowledge is produced in the process of being faithful to a truth event, it should be noted that, for Badiou, knowledge, in the figure of the encyclopedia, always remains fragile, subject to what may yet be produced as faithful subjects of the event produce further knowledge. According to Badiou, truth procedures proceed to infinity, such that faith (fidelity) outstrips knowledge. (Badiou, following both Lacan and Heidegger, distances truth from knowledge.) The dominating ideology of the day, which Badiou terms "democratic materialism," denies the existence of truth and only recognize "bodies" and "languages." Badiou proposes a turn towards "dialectical materialism," which recognizes that there are only bodies and languages, except there are also truths.
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