No decorrer da discussão de uma nota que aqui publiquei sobre a lapidação e o adultério, a Ana Cristina Leonardo escreveu na respectiva caixa de comentários o seguinte: "Miguel, passo do Steiner ao Levinas. A ética deve pressupor que deus não existe - caso contrário é uma brincadeira. Se acreditamos ou não nele não é para aqui chamado (afinal, o deus judaico é imprevisível e incognoscível, não é? Pois se, além de massacrar o Job até matou o filho do faraó que nem entrava na história...)".
Resolvi aproveitar a deixa para reabrir neste post a discussão da questão religiosa cujo alcance político tende muitas vezes, até aqui na casa, a ser subestimado. Eis, pois, as reflexões que a intervenção da Ana Cristina me suscitaram, levando-me (por elementar dever de justiça e apesar do receio que sinto de causar alguma incomodidade à sua autora, ao que parece empenhada em demarcar-se das minhas tomadas de posição políticas) a evocar de novo, no título que lhes dei, um post de há dias da Joana Lopes, para o qual aqui chamei no devido momento a atenção dos demais tripulantes e dos nossos leitores:
Ana Cristina,
sim, como já foi sugerido por Castoriadis e outros, seria preciso invertermos o célebre "se Deus não existe, tudo é permitido", no seu contrário ou coisa próxima, dizendo que é justamente a ausência da certeza na reparação/redenção final garantida pela divindade que faz com que nem tudo nos devamos permitir e que aquilo que nos permitimos ou não faz - porque irreversível - radicalmente diferença.
Outro aspecto importante, a que talvez voltemos noutra altura, é o da afinidade electiva que existe entre este ateísmo da ética (ainda que não excluindo a crença religiosa, contanto que despojada de autoridade normativa) e a divisa instituinte distintiva dos cidadãos de uma sociedade autónoma ou democrática: nós somos aqueles que têm por lei dar-se — sabendo que o fazem e responsabilizando-se por ela, a sua própria lei — mantendo em aberto a interrogação sobre ela e dessacralizando-a desse modo no próprio momento em que ela os vincula e eles próprios a observam. De resto, a possibilidade de uma ética como a que aqui nos ocupa passa pelo reconhecimento da ordem da cidade como criação humana, fazer instituinte e acção que, ao dar-se conta de si própria, se assume como política. Assim, poderíamos talvez dizer que falamos de uma ética que pressupõe a acção política cujos direito e dever implica. QED.
07/08/10
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3 comentários:
Miguel, surpreendida e agradecida por ver um comentário meu subtraído à clandestinidade da caixa de comentários, pergunto: acha realmente possível discutir deus? ou melhor, acha realmente possível discutir deus com este calor dos infernos?
Ana Cristina,
limitei-me a procurar refrigério - para me recompor de outras lides blogosféricas bem menos interessantes - na sua deixa. Em suma, segui a sua sugestão, senão o seu exemplo. Chega para me absolver?
msp
Chega para me absolver?
Miguel, o perdão a deus pertence... ou quiçá a cândida almeida
(risos)
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