15/10/10

As cruzes obrigatórias

Não é fácil que uma força dominante instalada proveitosamente em regimes tirânicos, como foi o caso do catolicismo europeu e latino-americano nos fascismos de cariz do nacionalismo clerical, aceite o fim dos privilégios e predomínios. Sempre que pode, e pode muitas e demasiadas vezes, a Igreja Católica, pelo menos em Espanha e em Portugal, gosta de se comportar como se estivesse sentada sobre “povos católicos” com estes a deverem-lhe obediência decorrente de predomínio e tentando adiar ao máximo todos os avanços e traduções da laicidade, mesmo quando esta está consagrada na lei. E, como últimos redutos, confiam no efeito dos movimentos de inércia social e cultural, entranhados nos usos e costumes, que lhes continuam a permitir, como exemplos, o prolongamento das capelanias católicas (nas prisões, nas forças de segurança, nas forças armadas) e o predomínio nos rituais associados aos acontecimentos sociais, como sejam baptizados, casamentos e funerais.

Um bom exemplo da dificuldade que um não crente tem em contornar os rituais catolicizantes que armam os mecanismos de absolutização do predomínio ideológico clerical, é-nos contado num artigo do jornal espanhol “Público” acerca da saga da cidadã Camélia Casas para enterrar a sua avó comunista e ateia Teresa Morán Tudó, no passado mês em Corunha, sem ter crucifixos a acompanhar-lhe a descida à terra como era sua vontade (a defunta só queria como companhias na descida à última morada, a bandeira do seu partido, o PCE, e uma coroa de flores dos seus camaradas de partido). Pode parecer fácil, numa sociedade oficialmente laica, deixar-se testamentado que se quer um funeral ao modo das suas convicções, sem cruzes católicas nem outros símbolos religiosos. Leia-se este artigo e confirme-se como o sistema catolicista de domínio espiritual está de tal maneira montado hereditariamente de uma forma totalitária e com margem de escape difícil e improvável (a que, no caso, nem a notícia necrológica no insuspeito “El País” escapou, encimada que foi da fatal cruzinha católica).

(publicado também aqui)

5 comentários:

Anónimo disse...

A avó em questão, por mais comunista ou "obrera" que tenha sido, teve necessidade de exprimir últimas vontades acerca do seu funeral - um temor ou pequena ralação comum a quase todos os seres humanos. No fundo não se distingue em quase nada dos católicos, dos judeus ou outros. Quis então apenas a bendeira do PC ou foices e martelos em lugar de crucifixos. Mais valia que nada tivesse dito; ou que simplesmente oferecesse o seu cadáver à medicina e às faculdades médico-cirúrgicas, que deles têm falta. Para um verdadeiro ateu (e existem?...) seria indiferente. Estas ralações e últimas vontades são mais próprias de quem acredita em algo Maior, que não o Kapital ou o Manifesto. Quando existirem capelas sem símbolos e cemitérios desacralizados, então sim estes duros militantes poderão ir para o Céu-dos-comunistas em paz.

BI

João Tunes disse...

Não lhe gabo o mau gosto de comparar e catalogar convicções associadas às últimas vontades de um ser humano e até indicar prioridades, sobretudo quando o faz de forma tão estúpida e de cujo ridículo se quis cobardemente baldar ao assinar "BI". Obviamente que o direito de se ter um funeral laico e enfeitado com símbolos que lhe são afectivamente caros (partido, clube, banda filarmónica, etc) é tão legítima como, sendo-se católico, se querer um funeral católico. O que, mesmo com a laicidade, não está a ser nada fácil.

Anónimo disse...

Os funerais, cerimónias, símbolos, cânticos, emblemas, religiões, ideologias, crenças, bandeiras; tudo isto é para os vivos e só para eles - e para aqueles que sabem que vão morrer em breve, mas que ainda estão vivos (o que é exactamente a mesma coisa). Nunca conheci ninguém que tenha "voltado da morte" para poder dizer o que pensou do que "afinal lhe fizeram", ou de como o deitaram ao lixo. O sagrado está todo nas nossas cabeças. Respeitar os 'últimos desejos da avozinha do PC' é, muitas vezes, sermos bons com ela e ainda mais bonzinhos com nós mesmos ao fazê-lo. E até se chega colectivamente a chorar um desconhecido...
Não se apoquente com a minha cobardia, com os crucifixos ou com a morte; esta trás a corrupção da carne e transforma-nos - a todos - em sulfatos e matéria para despejar. Porque os católicos estão organizados há milénios, é preciso que outras religiões (o PC, o Benfica, os Rotários, os Aventalistas do 33º grau, etc, etc) arranjem as suas próprias capelas: o Galveias, por exemplo, tem tido muita saída.

Cumprimentos

BI

João Tunes disse...

É isso, BI, um cínico dificilmente produz inteligência. E vc abusa. Desande sff.

Anónimo disse...

Eu vou já desandar, meu democrata! Já agora: escreva para si, comentando, e concorde consigo.

BI