07/10/10

"Bateau en Carton" no DocLisboa

O filme de José Vieira, « Le bateau de carton », sobre os Roms de Paris vai ser projectado no Festival DocLisboa (de 17 a 25 outubro). Está programado, salvo erro, para os dias 20 e 21 de Outubro.E é um filme que deve ser visto.

José Vieira é um homem do contra, tem mau carácter e nem sequer acredita na possibilidade de moralizar o capitalismo. Imagine-se !

Em 2005, ele escreveu um texto destinado a apresentar uma série de pequenos filmes sobre a sua própria memória de criança e as memórias de Portugueses que fugiram para França nos anos 60 (Gens du salto/ Gente do salto).

Dizia ele,

« Eramos perto de 1 000 pessoas a partilhar o mesmo endereço : 16 route de Chilly em Massy. Um condomínio estranho, que crescera num terreno desocupado e pantanoso, debaixo das linhas de alta tensão. Em certos Invernos o fogo devorava algumas barracas. A violência de uma vida precária, feita de zaragatas e de burlas, coexistia com o calor das tabernas e dos bailes, com a entreajuda ou os jogos das crianças. […] Aquecíamo-la com um fogão a lenha e a luz provinha de um candeeiro a petróleo. […] As nossas barracas davam para o chamado Grand Ensemble de Massy, com os seus milhares de alojamentos e o maior centro comercial da Europa. A abundância provocava-nos. »

Foi assim que o José Vieira começou a mexer num capítulo da memória oculta de uma sociedade que persiste a desinfectar o passado. Em França, o trabalho sério e sem concessões de José Vieira é respeitado e ganhou alguma notoriedade. Contra ventos e marés, ele continua a fazer arqueologia das memórias, das vidas partidas, pisadas, da emigração ; das vidas revoltadas também, onde reaparecem os valores emancipadores, do regresso impossível a um país que só já existe em mito, das experiências do povo, o salazarismo, a guerra colonial, a emigração. Em Portugal os seus filmes são ignorados, quase considerados como acções de desestabilização da harmonia modernista. O seu último filme sobre o assunto, Les émigrés (2009), não encontrou distribuidor. Na verdade o José Vieira levanta questões que chateiam. Como por exemplo : os estragos humanos provocados pela emigração não terão sido superiores às vantagens económicas obtidas ? E obtidas ao benefício de quem ?

Porque ele construiu a sua humanidade nesta experiência violenta da emigração, José Vieira coloca a saga da emigração portuguesa numa perspectiva universal, parte do constante movimento de trabalhadores à procura de mercado para vender a sua força de trabalho ao melhor preço. Histórias de mulheres, homens e crianças de saco às costas que fazem parte da história do capitalismo contemporâneo. Foi assim que, inevitavelmente, o José Vieira descobriu a convergência da sua história com a dos Roms. Que são apenas uns primos afastados, com percursos e culturas diferentes, que vivem en condições diferentes cenários semelhantes.

Ele conta,

« Foi ao passar na autoestrada que descobri este estranho campo de refugiados habitado por Roms da Roménia. Ali estava um bairro da lata, no meio das arvores, entalado entre os accessos da autoestrada. Durante um momento pensei ver um flash-back. Mas não, era apenas a actualidade de uma história que nunca acaba : a história das pessoas que são obrigadas de abandonar tudo para fugir à miséria. Eu queria compreender que êxodo era este, de onde vinham as pessoas que ali viviam, quem eram estes « estranhos estrangeiros », como o tinham sido antes os Portugueses e os Argelinos vivendo nas barracas nos arredores de Paris. »

José Vieira mostra a continuidade da pobreza e da injustiça social. Mostra também que o esquecimento da pobreza do passado permite ignorar a pobreza de hoje, ajuda justamente à sua perpetuação. O Portugal do desenvolvimento a crédito pensou esquecer estas páginas da sua história contemporânea para se dedicar ao consumo e glorificar o presente. Só que hoje é a pobreza que está de volta e promete ter futuro. Os filmes de José Vieira não são didácticos, não são divertidos nem tristes ; são animados por uma visão crítica do mundo que respeita a inteligência de quem os vê.

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