09/12/11

Primeiro são os anarquistas

Os agentes da ordem procuram criar a sua própria necessidade e, por vezes, fazem-no deliberadamente. Parece ser o que procurou fazer a polícia portuguesa, que introduziu agentes provocadores nas manifestações de 15 de Outubro e 24 de Novembro. Disfarçados de manifestantes, os agentes terão procurado criar uma situação de conflito com os polícias que não estavam à paisana, como se já não existissem motivos de sobra para que o conflito ecluda.


Hoje conhecemos este episódio devido à investigação realizada por militantes, activistas e outros transeuntes que participaram nas manifestações. O trabalho deste jornalismo informal constitui um pequeno grão na engrenagem, mas é preciso mais. Porque este não é apenas um episódio casual, mas o reflexo de um certo missionarismo ideológico assumido pelas chefias da polícia nos últimos anos. Na verdade, com maior ou menor consciência, e com ênfase após o 11 de Setembro, a polícia tem assumido, em certas circunstâncias, a pretexto do combate ao terrorismo, desígnios políticos claros: quando um porta-voz da polícia fala de apreensão de propaganda anarquista, é a fronteira entra uma polícia e uma polícia política que esmorece à nossa frente.


Não pretendo agitar velhos fantasmas. E não desvalorizo, por um dia que seja, a diferença entre democracias e fascismos, tão arduamente estabelecida nas lutas políticas do século XX. Mas se há diferenças abruptas entre democracia e fascismo, não existem fronteiras assim tão claras entre Estado democrático e Estado fascista. Importa não ignorar as continuidades entre a força policial de um Estado democrático e a de um Estado ditatorial. Olhamos para a história dos anos 60 e vemos como o Estado francês que matava argelinos em Paris partilhava o seu saber com o Estado Novo português. E hoje olhamos para a acção policial do Estado português e, de escutas ilegais em processos badalados até ataques à paisana contra cidadãos anónimos, somam-se motivos para alarme.


Os partidos políticos podem, é claro, julgar que não há motivos para alarme. Eles beneficiam, na verdade, de um estatuto político (a inefável “classe política”) que lhes é reconhecido na medida em que é negado aos restantes cidadãos. Deste modo, não correm tantos riscos de ver a sua ideologia criminalizada. Mas partidos como o PCP, nomeadamente, sabem bem que, se o anarquista é o primeiro a ser criminalizado, então, muito provavelmente, o segundo será o comunista. Os famigerados “serviços de ordem” do PCP, que têm colaborado com a polícia na identificação de manifestantes tidos como radicais, faziam por isso melhor se doravante se dedicassem a actividades de gosto menos duvidoso.


A criminalização do anarquista, na verdade, é um processo que tem acontecido sob a indiferença generalizada. E, muitas vezes, é incrementada além da própria polícia. Veja-se nomeadamente o caso do antropólogo José Manuel Anes, director do Observatório de Segurança. É bem a imagem do futuro que nos espera se não arrepiarmos caminho. Em reacção à actuação policial no dia da greve, comentou que a polícia deve respeitar a lei, mas também ser eficaz, como se o simples facto de existir uma polícia à margem da lei não configurasse de imediato uma situação de ilegalidade. Este já é o tempo das pequenas ditaduras, do elogio da ilegalidade policial por Anes à defesa de um policiamento da informação por João Duque.


São apenas anarquistas, dir-me-ão, de entre vocês, os menos anarquistas, mas, para quem não encontra motivo para se inquietar com o mal dos outros, recordo pelo menos a lição de Niemöller celebrizada por Brecht: “Quando os nazis levaram os comunistas, não protestei, porque, afinal, eu não era comunista. Quando levaram os social-democratas, não protestei, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando levaram os sindicalistas, não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando me levaram a mim, já não havia ninguém que protestasse.”


o meu artigo desta semana no i

8 comentários:

Libertário disse...

Se uma coisa demonstrou este episódio da provocação policial na recente manifestação é que os manifestantes mais «radicais» o que devem fazer hoje nas manifestações é usar máquina de fotografar ou de filmar contra a polícia e provocadores, em vez de abanar grades infantilmente. Para lá de «apalpar» os provocadores, pois eles não vão desarmados para o serviço...
Com isso desmontam o trabalho de infiltração e provocação que a polícia começa a fazer de forma sistemática entre nós, imitando os restantes países onde esses métodos tem muitas décadas e foram bem mais longe!Tão longe que provocaram mortos.

Cristina disse...

Só uma pequena (eventualmente grande) observação, Zé Neves: isto é o "reflexo de um certo missionarismo ideológico assumido pelas chefias da polícia" há várias DÉCADAS. Será preciso recordar os contornos maquiavelescos do assassinato de Aldo Moro, por exemplo? Ou recuar aos atentados bombistas das forças policiais nos anos 70 e 80? Pensando bem, talvez possamos recuar ainda vários séculos na história. Há que extrair daí algumas lições, parece-me. Quanto ao mais, excelente artigo de opinião, este.

A.Silva disse...

Zé Neves é um MENTIROSO! Mentiu e volta a mentir quando afirma;

"Os famigerados “serviços de ordem” do PCP, que têm colaborado com a polícia na identificação de manifestantes tidos como radicais"

Vá ler a história do PCP e talvez aprenda alguma coisa de como uma força política, que coerentemente luta pela liberdade se relaciona com as forças da repressão!

Aldrabão!

Zé Neves disse...

A. Silva.

Berra com as maiúsculas todas que não é por isso.

Folgo em constatar, antes de mais, que convergimos no essencial: seria inadmissível que uma situação como essas sucedesse.

Agora falta apenas acertarmos pormenores: eu acho que acontece, o meu amigo não.

Deixo-lhe estes links para que não me grite aos ouvidos aldrabão e para que comece a agir em conformidade na crítica interna a que tem direito no seio do partido:


http://spectrum.weblog.com.pt/arquivo/2010/11/venha_o_diabo_e.html

http://unipoppers.blogspot.com/2011/11/o-homem-que-comanda-as-manifs-da-cgtp.html

saudações comunistas anti-estalinistas

vítor dias disse...

Nem desta vez, em que parece suficientemente demonstrado que foram agentes da polícia infiltrados que empurraram as barreiras em S. Bento,José Neves parece reconhecer a necessidade de as manifestações terem «serviços de ordem».

Pelos vistos, assim é que está bem: polícias infiltrados e empenhados na provocação a agirem em rédea solta sem que ninguém se lhes oponha, impeça, remova ou desmascare.

Zé Neves disse...

Caro Vítor Dias,

Ainda bem que também acha que os serviços de ordem das manifestações servem para lidar com a polícia e não com os próprios manifestantes.

de qualquer dos modos, tenho sempre reservas em relação a serviços de ordem, sobretudo em meios que, através da ginástica do objectivo e do subjectivo, se dedicam a classificar qualquer divergência interna como sinal de que o inimigo é interno.

Ricardo Noronha disse...

Mas não é João Torrado que anuncia ao Expresso o seu empenho em colaborar com a PSP? Afinal em que ficamos, a PSP é um interlocutor válido no momento de assegurar que "tudo corre bem" ou age no sentido de reprimir manifestações infiltrando nelas agentes provocadores?
Não está demonstrado - em lado nenhum, repito, em lado nenhum - que tenham sido agentes provocadores a mandar abaixo aquelas barreiras. E está mais do que documentado que, a ter sido esse o caso, dezenas ou centenas de pessoas os acompanharam no acto. Já agora, se o objectivo do serviço de ordem é proteger manifestantes, porque razão se têm empenhado sobretudo em impedir manifestantes de integrar a manifestação?

Niet disse...

Caríssimo J. Neves: No notável texto que publicou, muito sage e humanista,discordo no entanto de uma projecção vertical onde os anarquistas são um pouco desvalorizados e marginalizados quando, ao arrepio da norma libertária mais exigente- que até confundiu Sartre no final da vida... - não podemos nem devemos esquecer-nos também da maravilhosa argúcia de Victor Serge que indicou para a História - " onde até hoje não foram dadas oportunidades ao espirito libertário nas Revoluções..."-que " o comunismo integral só pode ser libertário !".
Já agora não resisto - por vontade e afecto - de lhe remeter este extracto de um artigo maravilhoso de Bakounine, intitulado " Os fautores do sono ", em que ele precisa com visão e persuasão extremas: " Foi em nome da Igualdade que a Burguesia outrora depôs e massacrou a Nobreza. Foi em nome da Igualdade que solicitamos, hoje,quer a morte violenta quer o suicidio da Burguesia, com a diferença, no entanto, que menos sanguinários que o tinham sido os burgueses nós queremos o massacre não dos Homens- mas das suas posições e coisas ". Salut! Niet