24/06/12

Contributo menor para o futuro da esquerda

(o meu artigo no i da última quinta-feira) 


De há uns tempos a esta parte, os debates sobre o futuro da esquerda em Portugal têm sido alimentados por alguns contributos que afirmam ter chegado o tempo da unidade. Estes contributos vão de rigorosos exercícios de cálculo eleitoral a comoventes desabafos de alma, mas eu queria colocar aqui três entraves à famigerada unidade.
O primeiro entrave tem que ver com uma divisão entre, de um lado, quem coloca mais empenho na reivindicação da democracia do que na crítica do capitalismo e, do outro, quem mais se dedica a combater o capitalismo e menos preza a luta pela democracia. Esta divergência entre quem acha que a esquerda é sobretudo nome de uma luta pela liberdade política e a quem acha que a esquerda é sobretudo uma luta pela igualdade económica não se resolve através da busca de um mínimo denominador comum, como alguns pretendem, mas maximizando: precisamos de uma esquerda que assuma que a sua luta deve ser simultaneamente uma luta radical pela igualdade económica e um combate sem tréguas pela liberdade política. Precisamos de uma esquerda ciente de que não há combate ao capitalismo que não seja luta pela democracia e vice-versa. Um exemplo, entre outros possíveis, de uma tal esquerda estaria numa política que travasse os combates pela liberdade de expressão não apenas como uma luta por direitos políticos ou pela liberdade de imprensa, mas também como uma luta pelo direito de todos os trabalhadores a não passarem a maior parte do dia e dos dias a fazerem o que não querem e sob o comando de outrem.
O segundo entrave à unidade tem que ver com as formas de poder que as esquerdas preconizam e praticam. Aqui há também uma divergência fundamental. No actual mundo das palavras, à direita como à esquerda, um dos casos de maior sucesso é provavelmente o da chamada elite, termo que circula com o maior à vontade por entre peças jornalísticas e discursos parlamentares, saltando de livros de História para o verbo de politólogos. Colada à boca de quase todos, a palavra não é, porém, usada de um modo sempre idêntico. Há quem a utilize de maneira elogiosa e quem dela faça uso com intenções críticas. E entre estes últimos cava-se uma distância que não é menor entre, por um lado, os críticos da elite que a depreciam porque entendem que é necessário apurarmos uma nova elite que substitua a velha elite e, por outro, os que a rejeitam porque simplesmente acreditam que um compromisso radical com a democracia deve simplesmente riscar a palavra do seu dicionário. Há uma bifurcação, sem ponto de convergência à vista, entre quem entende que a esquerda deverá ser sobretudo nome de um projecto que visa derrubar governos de direita e substituí-los por governos de esquerda e quem julga que a esquerda é antes de mais o nome de um projecto de combate à elitização da política, isto é, um projecto de crítica democrática da democracia representativa. Eu estou com estes últimos – nenhum combate político à esquerda pode continuar a ser travado com recurso às velhas fórmulas hierarquizantes em que uns dirigem e outros são dirigidos, uns planeiam e outros são planeados, uns pensam e outros são pensados; dirigentes revolucionários ao leme da vanguarda partidária e economistas reformistas que analisam a sociedade do alto do Estado devem ser atirados para o caixote de lixo da história.
Finalmente, o terceiro entrave é a obsessão com as frases claras e o estilo categórico, que podem parecer úteis para combatermos a direita, mas que a médio prazo pagaremos caro. Isto é, não pesemos excessivamente as nossas preocupações e as nossas propostas, o que naturalmente abrange as que fazem parte deste meu contributo... Não percamos muito tempo a demarcar o que está dentro e o que está fora dos nossos territórios. E isto não é só válido para os partidos ou para os partidos que são apodados de ortodoxos. Aplica-se seguramente ao manifestante anti-autoritário que ao atirar ovos à sede de um partido de esquerda se limitou a erguer as paredes do seu próprio partido e a fazer-se capataz do que deveria ser indomável, o anarquismo. E aplica-se também aos que em nome da unidade dos partidos de esquerda decidem simplesmente tecer armas contra todos os sectarismos de todos os partidos de esquerda, como se a sua resposta à fragmentação partidária da esquerda fosse simplesmente criarem mais um fragmento que, por lhe chamarem unidade, é suposto não tomarmos como mais um fragmento. Infelizmente, fazer bandeira da heterodoxia é caminho rápido para chegar a ortodoxo.

2 comentários:

Libertário disse...

José Neves encarna ainda o espírito de uma «esquerda» idealista do século XIX, anterior ás trágicas experiências da social-democracia, convertida em gestores corruptos do capitalismo, e dos «comunistas» transformados numa nova classe que não deixou pedra sobre pedra das esperanças numa nova sociedade...

Escrever pois: «...manifestante anti-autoritário que ao atirar ovos à sede de um partido de esquerda se limitou a erguer as paredes do seu próprio partido e a fazer-se capataz do que deveria ser indomável, o anarquismo» é esquecer que todos os que partilham da legitimação deste Sistema, ou que são candidatos a criar novas formas de submissão, são inimigos dos que desejam, e lutam, pelo fim do capitalismo.

joão viegas disse...

Ola,

O primeiro ponto assenta na crença de que existe incompatbilidade substancial entre democracia e igualdade efectivas. Discordo. O aprofundamento da democracia real é também o do respeito da igualdade efectiva na repartição dos bens. De forma correlativa, os "devios" da esquerda em relação às regras democraticas saldaram-se sempre, historicamente, por graves atropelos ao principio da igualdade efectiva. Não vejo porque teriamos de sacrificar um ou outro, quando estamos a falar de duas fases da mesma moeda : nem as regras da democracia (que saibamos, as menos mas até hoje são as da democracia representativa, mas admitir isso não significa que não possamos aperfeiçoa-las), nem o principio da igualdade têm qualquer sentido, ou consistência, quando não passam do papel.

O segundo paragrafo parece-me apontar uma dificuldade consecutiva da anterior : a fantasmagoria, que nasce de uma falta de realismo, ou de um realismo que não consegue ser consequente, nem eficaz. As elites são criticaveis porque nos deixamos. Pura falta de vigilância de todos nos. A elite é o espelho da sociedade. Nada menos. Nada mais. Queixamo-nos das nossas elites ? So pode ser porque nos é que estamos mal !

O terceiro suscita-me a mesma reflexão e parece-me pôr ainda mais em evidência a contradição. O que tem sucesso é o que apresenta resultados. A demagogia so tem resultados à falta de melhor, e não serve de nada estarmos a lamentar o facto se não tivermos melhor para oferecer. Devemos é concentrar-nos na preparação de uma alternativa que funcione. O resto é folclore.

Boas