21/06/12

Resposta de João Bernardo ao post anterior: "Ponto Final: Excepcional breve ensaio-manifesto do João Bernardo no Passa Palavra"

O João Bernardo enviou a seguinte resposta ao meu post sobre o seu Ponto Final, que, excedendo os limites da caixa de comentários, aqui publico à parte.


Caro Miguel Serras Pereira,

Muito obrigado por te teres interessado por aquele manifesto. É minha intenção que ele seja realmente um ponto final, e não estou desejoso de entrar em debate a respeito de questões que foram por demais debatidas, mas já que formulas perguntas...

1) Até agora, quando ataco a ecologia e os ecologistas não tem havido confusão acerca de quem viso, aquilo que tu chamas a «ecologia profunda» (mas a que literalmente deveríamos chamar superficial).
Tu invocas «a finitude dos recursos naturais», mas a sociedade industrial não se limita a usar elementos, ela combina-os de formas diferentes daquelas que existem na natureza, e deste modo amplia a natureza, cria outra natureza, que já não é natureza, é indústria.

Também mencionas as «devastações paisagísticas», mas muito do que hoje, em Junho de 2012, consideramos paisagem, perante a qual ficamos de boca aberta e exclamamos «Que lindo!», resulta de devastações paisagísticas operadas por sociedades de outras eras, noutros modos de produção. Os desbravamentos, que constituíram um dos elementos estruturantes do regime senhorial, devastaram as florestas europeias e criaram aquela paisagem que nos serve de padrão quando dizemos que a indútria tal e tal devasta a paisagem em redor. Mesmo eu, que sou urbano e pouco dado a apreciar paisagens que não sejam formadas por muros e ruas, fico deslumbrado com o vale do Douro, mas o que é aquilo senão uma paisagem secularmente devastada pela indústra vinícola, que transformou em socalcos as encostas de ambas as margens do rio? E o que são os jardins, tanto à francesa como à inglesa, senão paisagens devastadas, ou seja, substituídas por paisagens construídas? E então os lisboetas vão ao domingo para Sintra e extasiam-se perante o que julgam que é natureza e nada mais é do que um artificioso jardim romântico, devastação da narureza anterior. Todos os jardins constituem o triunfo da indústria sobre a natureza, tanto assim que só existem jardins em sociedades urbanizadas. Será esta a «dimensão subjectiva» da natureza que tu referes, a sua concepção como um «acontecimento paisagístico»?

Consideras também que eu «não aplic[o] [...] à ideologia da "abundância" as considerações críticas que [...] estão implícitas na parte "estética" do [...] ensaio e na denúncia da degradação dos lazeres». Já no Passa Palavra Leo Vinícius disse o mesmo num dos seus comentários, embora em sentido inverso. Mas não creio que exista ali uma contradição. A minha apologia do capitalismo da abundância só se entende como uma crítica ao socialismo da miséria. Os trabalhadores querem ganhar mais para aumentar o número de Big Macs que depejam pelas goelas abaixo? E querem trabalhar menos para aumentar o tempo dedicado a ver televisão? Pois que o façam, porque assim lutam contra a extorsão da mais-valia, e que o façam duplamente, porque assim erguem maiores dificuldades ao socialismo da miséria. Mas trata-se neste âmbito de uma questão de quantidade. Quando eu procedo à crítica estética dos lazeres — ou daquilo que são considerados lazeres — trata-se de uma questão de qualidade. No manifesto citei a Bauhaus e os Vkhutemas como prova de que pode haver uma produção artística industrial e de massas e, não obstante, de alta qualidade. Mas como talvez alguns leitores situem aquelas duas instituições na high art e não na low art, vou dar outro exemplo. Em 1967, numa época em que já existia plenamente o mercado juvenil de massas, o disco mais vendido na Grã-Bretanha foi A Whiter Shade of Pale, dos Procol Harum, uma obra prima, tanto pela música e pela nterpretação como pelo poema. Quando um comentador que citei acima, Leo Vinícius, me criticou no Passa Palavra dizendo que «os trabalhadores assim como querem consumir e ter abundância, querem todas essas artes denominadas vulgares e ruins», este argumento não me espanta da parte de quem, noutra polémica, defendeu que «a arte é inimiga do povo». Ele falará por si. Mas trata-se de uma questão de contexto histórico e do grau de politização desse contexto. Na década de 1960, no mercado de massas da juventude, o Bob Dylan, a Joan Baez, os Procol Harum e tantos outros e outras eram celebridades de massas sem serem «vulgares e ruins» e eram eles, e não Elvis Presley, os ídolos da juventude insubmissa, enquanto hoje eu posso duvidar da solidez de rebeldias que se revêem em Michael Jackson ou na Lady não sei o quê.
2) Quanto à segunda questão que levantas, é menos questão do que parece e acho que estamos a dizer o mesmo, embora cada um dentro de sistemas de referências teóricas distintos. Se eu defendo que devemos «entender a reestruturação da classe trabalhadora operada pelo sistema de produção toyotista, pela terceirização da mão-de-obra e pela transnacionalização do capital», em vez de a resumir «ao fabrico industrial de artigos materiais», estou a propor uma noção muito ampla e plástica da classe trabalhadora contemporânea. Não creio que o sujeito empírico daqui resultante seja diferente «da grande maioria dos homens e mulheres que somos», como tu escreves.

Na minha opinião, as lutas sociais reorganizam o modo de produção e, reorganizando uma classe, reorganizam as classes que se lhes opõem, porque uma classe social não é passível de uma definição substantiva e só tem realidade em função das classes sociais opostas. Creio que, no plano empírico, o nosso sujeito revolucionário é o mesmo, embora eu dê mais ênfase às relações de exploração e à luta contra a exploração.

Mas será que dou? Na medida em que diluo o limite entre o económico e o político e em que refiro a soberania das empresas durante o próprio proceso de trabalho, será que procedo a uma politização do económico ou a uma economização do político? Tu dizes que «a haver agente revolucionário identificável este seria o conjunto dos cidadãos comuns empenhados na instituição da sua cidadania como governante». Eu formulo a mesma ideia em termos de controlo sobre o processo de trabalho, em sentido amplo, incluindo os lazeres, o que vai dar ao mesmo. Uns falam chinês outros português, uns usam a linguagem do Marx outros a do Castoriadis, e é necessário não confundir ideias diferentes com maneiras deiferentes de exprimir as mesmas ideias.

Finalmente, esperando que possa pôr ponto final no ponto final, cito uma parte do primeiro dos comentários colocados no Passa Palavra, assinado por Rugai. «Faltou você complementar com um parágrafo sobre o fato de aquela parcela rústica da classe trabalhadora que é ferozmente anticapitalista, nos guetos, nas favelas, nas periferias, viver num mar de ondas sombrias. Num pessimismo catástrófico, vendo cada dia como a guerra nossa de cada dia, como a morte nossa de cada dia….». Era precisamente neles que eu estava a pensar quando escrevi que «não desisto da capacidade da classe trabalhadora para acabar com o existente» e que «uma revolução nos nossos dias só pode significar uma libertação das energias criativas dos trabalhadores nos processos de trabalho». Mas sem dúvida que o Rugai foi mais eloquente.

9 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Bernardo,

começando pelo fim: efectivamente, sobre a segunda questão as nossas posições são, no essencial, coincidentes. Teu leitor que, como sabes, sou de há muito, nunca supus que houvesse propriamente antagonismo irreconciliável sobre nós na matéria. No entanto, felicito-me por te ter interpelado sobre o assunto, uma vez que isso te permitiu precisar e esclarecer aspectos fundamentais.

Quanto à "questão ecológica", o que penso é que, tal como, de certo modo, a sociedade e a subjectividade humanas emergem num dado momento como metamorfose do estado de coisas "natural" anterior e, nesse sentido, são um "acontecimento paisagístico" ou uma "auto-transformação" do "estado natural" anterior, também podemos e devemos conceber a transformação social-histórica da natureza como acção da sociedade e da subjectividade humanas sobre si próprias, como "auto-transformação", auto-(re)criação humana. Assim, onde tu escreves agora: "Todos os jardins constituem o triunfo da indústria sobre a natureza, tanto assim que só existem jardins em sociedades urbanizadas" - eu, em vez de falar de "triunfo da indústria sobre a natureza", diria que essa transformação introduzida pela acção humana (as sociedades urbanizadas) na "natureza" ou "paisagem" é uma transformação da paisagem da sociedade e da subjectividade através da qual elas próprias se transformam. Por fim, digo que nem todas as formas e modos de acção social-histórica que transformam a paisagem (natureza e cultura entretecidas, combinadas) se equivalem - ou, o que é o mesmo, podem e devem ser julgadas da mesma maneira.
O mesmo vale para as combinações de elementos a que a sociedade procede sempre, mesmo antes de ser propriamente "industrial" no sentido estrito: a sociedade combina os elementos naturais entre si, combinando-se com eles. E como é evidente, parece-me, nem todas estas combinações se equivalem, devendo ser objecto de deliberação e decisão políticas. Nem mais nem menos do que as questões de urbanismo - e pelas mesmas razões.
Aqui, por uma vez, talvez eu seja mais jovem-marxista do que tu. Os seres humanos transformam-se e fazem-se transformando a natureza, fazendo a sua paisagem, e esta última, as "escolhas", "decisões" ou "inbestimentos" na paisagem de fora parte, participam da natureza interna da sociedade, da sua (re)composição e (re)criação históricas. As questões ambientais ou paisagísticas são, pois, questões políticas.

Libertário disse...

Desde o seu livro «O Inimigo Oculto» que o João Bernardo tem demonstrado não compreender o mais essencial da crítica ecológica à sociedade capitalista-industrial e despreza como utopias rústicas todas as considerações sobre natureza ou as críticas da tecnologia. Mesmo não desconhecendo ele que os socialistas utópicos e os libertários anteciparam muitas dessas críticas ecológicas.
Numa tradição de um certo marxismo João Bernardo é «ortodoxo» no seu hiper-racionalismo e na sua crença sem limites no «Progresso», «desenvolvimento» e na «técnica». Não será por acaso pois que sempre teve em pouca conta as contribuições do anarquismo e dos socialistas utópicos em quase tudo principalmente às suas ideias de descentralização e de pequenas comunidades articuladas em federações e confederações.
No seu mundo teremos as grandes unidades produtivas, as grandes megalópoles, tudo em grande tendo o «domínio» da técnica e da ciência como fundo. Para quem foi, e é, um crítico feroz do capitalismo de estado, que também ficou conhecido por «comunismo», parece-me uma profunda contradição. A industrialização a todo o vapor na URSS, os planos quinquenais e tudo o resto estão bem próximos desse optimismo e dessa crença na técnica e no progresso… A pergunta que faria seria: afinal dá para imaginar uma comunidade real de seres humanos, um comunismo de verdade, dentro desse cenário desenhado por João Bernardo?

Anónimo disse...

O manifesto de João Bernardo peca por defeito- desvalorizando o impacto político maior e efectivo da Ecologia nas sociedades de hoje do Primeiro Mundo- e peca por excesso de misticismo hegeliano extravagante,vulgo " absurdez gótica ", pela forma acrítica como desvaloriza o totalitarismo imanente ao imaginário capitalista, que irá irrigar, por fatalidade e racionalidade, todo o modelo bolchevique num curto espaço de tempo. " O totalitarismo, fenómeno infinitamente pesado e complexo, em relação ao qual se fica a saber muito pouco através da asserção- a revolução produz o totalitarismo( e já constatámos que é empiricamente falsa pelos dois lados: todas as revoluções não geraram totalitarismos, e todos os totalitarismos não estiveram ligados a revoluções). Mas se pensamos nos gérmens da ideia totalitária, impossivel de desvalorizar acima de tudo o totalitarismo imanente ao imaginário capitalista: a expansão ilimitada da maitrise racional e a organização capitalista da produção na fábrica: one best way, disciplina mecanicamente imposta( as fábricas Ford em Detroit em 1920 agenciavam micro-sociedades totalitárias). Por outro lado, de assinalar ainda a lógica do Estado moderno que, se se deixa atingir o seu limite, tende para uma regulação total ", C. Castoriadis,in "O Mundo Fragmentado". Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Niet,
parece-me que leste à pressa o texto do JB e que esqueces tudo o que ele tem escrito exprimindo um juízo que vai no mesmo sentido da citação de Castoriadis que citas. Se há quem entre nós não subestime a ameaça totalitária que a perspectiva de normalização capitalista comporta, o JB faz parte dos poucos.
Sobre a questão ecológica, para lhe chamarmos assim, o meu juízo sobre a sua tse é mais nuanceado. Mas já falei disso no meu comentário ao seu texto e não vou aqui repetir-me.

Boa releitura e vento favorável. Salut!

msp

Anónimo disse...

MSP: Há uma " constipação ideológica ", como dizia o Corneille. Minha e que apimentei... Vou ver se arranjo os livros dele. Perdi os três primeiros do M.P.Comunista. Todos os meus amigos me falam de J.Bernardo com a maior e mais efectiva das admirações. O que é muito raro, como sabes! Salut! Niet

João Valente Aguiar disse...

O livro do modo de produção comunista é, na verdade, um só volume (de 1974) e os três referidos são os volumes do "Marx contra Marx". A análise da Revolução Cultural ou a análise da constituição do modo de produção comunista são dois momentos máximos do "Para uma teoria do modo de produção comunista".

Pessoalmente acho o "Labirintos do fascismo" como o cume da obra do João Bernardo, apesar da obra mais importante seja "A economia dos conflitos sociais". O "Labirintos..." não só aborda estas questões que o Miguel lançou (crítica da ecologia e o lugar das lutas sociais na reorganização do modo de produção) como é uma obra que prima pela interpenetração entre as múltiplas esferas com que o fascismo reorganizou o modo de produção capitalista: desde o papel dos gestores, o nacionalismo, a estética, as redes tecidas entre diversificadas correntes de esquerda e o fascismo, os mecanismos da mais-valia relativa, a auto e a hetero-organização da classe trabalhadora, a ecologia, as modalidades mais contemporâneas do fascismo, etc. Acho que é uma obra que, lida em condições e sem pruridos, não deixa ninguém incólume. Ou se prefere a lucidez (e que este "Ponto final" aqui em debate é uma breve materialização) e a crueza dos fenómenos sociais e políticos, ou, de outro modo, se prefere manter a cabeça enfiada no chão e a enterrar ainda mais.

Paulo em Passa Palavra disse...

Com todo o respeito pelo sr. João Bernardo, não vejo nada em sua indignação do que uma recusa a aceitar que sua ortodoxia marxista escolástica não tem mais eco. Mas isso não é porque surgiu uma “esquerda ecológica” ou “políticamente correta”, mas porque a vida concreta se encarregou de enterrar a ortodoxia que cheira a leninismo mofo. Lenin dizia que socialismo era Soviets mais eletricidade. João Bernardo diz que emancipação e socialismo é sociedade urbana industrial. Que a “esquerda ecológica” tem como referência os “primitivos arcaicos”. E ainda não quer ser chamado de eurocentrico. É sim, eurocentrico, antropocentrico, evolucionista. Para João Bernardo o “homem civilizado” e do “futuro” é o europeu que levou a humanidade a duas grandes guerras mundiais e genocídios de todo tipo em nome da “civilização”. João Bernardo escreve olhando pelo retrovisor e sonhando com “operários” controlando grandes fábricas de bugigangas, se empanturrando de veneno. É a “abundancia” que tanto sonha para a humanidade. A ortodoxia de João Bernardo impede que ele aceite que pela primeira vez na história a esquerda inclui a natureza com parte da vida e não apenas matéria prima para seus consumo irracional. Como Marx não falou em ecologia, João Bernardo não se permite tal heresia.

■Paulo em 21 de junho de 2012 05:45
http://passapalavra.info/?p=60646

JMS disse...

O João Bernardo parece confundir ecologia (uma ciência que descreve a realidade biofísica) com ambientalismo (uma ideologia). Eu diria que atacar a ecologia é tão disparatado como atacar a física ou a matemática. Mas o J. Bernardo parece ter decidido que o ecossistema é irrelevante para a preservação da vida humana na terra, já que, como ele diz, o homem tem o poder de "ampliar a natureza" (em laboratório, como a benemérita Monsanto?). Enfim, o J. Bernardo parece acreditar no milagre da multiplicação dos pães via engenho humano. Está-se a esquecer, porém, de um pequeno pormenor, que tem igualmente escapado às cheerleaders da economia, tanto à esquerda como à direita: que A TECNOLOGIA NÃO É UMA FONTE DE ENERGIA, que sem electricidade os secadores de cabelo mais sofisticados do mundo tornam-se menos eficazes do que pòr a cabeça ao sol, e que sem energia barata não há crescimento económico possível, e que a energia barata está em vias de acabar, e que a única maneira de baixar o custo da energia e a pressão sobre os recursos naturais seria eliminar metade da população mundial ou reduzir 80% dela a uma probreza pré-industrial.
A sua visão do homem como criatura alienada do ecossistema que a suporta é um puro delírio de urbanita, que só pode germinar na cabeça de um mecanicista-histórico que toma o crescimento exponencial dos últimos 200 anos como uma regra e nãoa excepção que de facto é nestes 50 000 anos de aventura humana sobre a terra. E com toda a sua aparente indiferença pelos dos dados biofísicos, não admira que João Bernardo chegue a dar a ideia de que confunde natureza com paisagem...

Anónimo disse...

Todavia, o anti-ecologismo de JB parece-me consistente com a sua teoria económica, ao contrário do discurso contraditório da esquerda ambientalista, que reclama um crescimento económico tendencialmente exponencial como se não existisse um tecto real, natural, de ordem bio-física, a cerceá-lo, e simultaneamente, reclama "sustentabilidade ecológica" tendo em conta esse tecto, mas como se essa sustentabilidade não entravasse necessariamnete o crescimento económico.
Pelos vistos é uma contradição difícil de resolver no plano teórico, tanto que JB só a "resolve" negando em absoluto um dos seus termos.

Mário J. Heleno