Gostaria que, apesar de tudo, a exigência prioritária de combate pela racionalidade democrática — que fez com que ficasse em suspenso a discussão dos argumentos pró e contra a proibição da corrida aqui apresentados pelo Luis Rainha, o João Tunes, o Miguel Madeira e eu próprio, postos de lado durante a luta que o Luis e eu temos vindo a travar contra um arauto neo-fascista do despotismo obscurantista e da restauração antidemocrática do culto do sangue e da sacralização da violência —, gostaria, dizia eu, que essa exigência prioritária não impedisse que fosse aqui retomada, se nela houver quem esteja ainda interessado, a discussão sobre o acerto ou desacerto democráticos de uma medida como a que aboliu a fiesta na Catalunha.
Assim, adapto aqui, enunciando os pontos que me parecem mais relevantes do problema, os breves parágrafos que lhe dediquei na caixa de comentários de um post do Paulo Jorge Vieira, publicado no 5dias. As referências à linguagem que conviria a um debate público sobre a matéria tauromáquica explicam-se pelo facto de o Paulo ter escito no seu post, qualquer coisa como: "E sei que me pede o Miguel, e imagino que outros leitores, uma elaborada discussão teórica (com muitas citações em mais do que duas línguas)". Embora suponha que o Paulo estará de acordo comigo para considerar o mal-entendido superado, pareceu-me útil deixá-las a título de enquadramento. Como se segue:
Quanto aos aspectos que eu gostaria de ver simplesmente discutidos – na linguagem de todos os dias que convém ao exercício e extensão da democracia por cidadãos que discutem os seus usos, leis e costumes, preparando-se para decidirem sobre eles – são para já os três seguintes:
1. Os animais podem ser sujeitos portadores de direitos? Note-se que não digo que não possamos fixar-nos, nós, deveres em relação a eles, nem que não devam ser (legalmente, se necessário) protegidos. Creio que reclamar “direitos” que não tendam, pelo menos, a afirmar o exercício pelos seus portadores do poder de os tutelar e garantir serve essencialmente para reforçar um poder exterior e superior, que, acima dos cidadãos e em vez deles, se apodera da liberdade activa que é apenas a da instância que decide e impõe. Esses “direitos defensivos” correspondem a uma ordem institucional que, nas esferas mais relevantes, nos despoja de actividade política, de capacidade de deliberação e decisão, e nos compensa com “protecções” e “garantias” de natureza particular, que tenderemos a opor uns aos outros, reforçando sempre a instância que decide e arbitra dos interesses ou “direitos” que tutela.
2. Será a proibição das touradas uma medida prioritária de combate à crueldade exercida sobre os animais? A sua (deles) criação laboratorial para fins alimentares não será bem mais desnecessariamente cruel? Parafraseando um poema de Sophia, não seria mais justo começar por fazer com que as pessoas cuja sensibilidade as não impede de comer galinhas não recalcassem a violência que isso implica, etc. etc.?
3. Que dizer da tourada em termos de reactualização que comemora e recorda (volta a trazer ao “coração”, a lembrar à sensibilidade) o processo de civilização, sem negar a violência ineliminável que lhe subjaz e celebrando o combate iniciático e fundador que toda a humanização implica? Não haverá na corrida a reiteração de uma auto-superação da dimensão “animal”, que ao mesmo tempo que a transforma, mantém e repete a nossa participação nela?
Enfim, tudo isto pode e deve ser discutido, sem necessidade de erudição, nos termos não-profissionais que convêm a essa actividade que institui como iguais, independentemente das suas diferenças e competências particulares, os que nela participam, e a que chamamos deliberação política democrática – ou filosofia não-profissional (nem teórico-científica nem disciplinarmente especializada) da democracia.
02/08/10
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8 comentários:
1- parece-me que esses "direitos defensivos"poderão assentar de forma excelente aos animais, que não sairão diminuídos pela imposição dessa tutela que atribui direitos.
2- Não; há casos bem mais urgentes, pelas condições de vida e de morte e pelos números envolvidos.
3- Julgo que a tourada reitera e celebra a nossa inserção nessa dimensão "animal"; o que só por si não me parece coisa grave de, mais – a todos fica bem lembrar as suas origens. Mas bem que poderíamos tratar disto sem encenar o processo como se fora um show de variedades manhoso, a musicar com pasodobles e a exportar para turistas basbaques.
Luis,
perfeitamente de acordo com 1 e 2. E é evidente que a interpretação, mais ou menos "freudo-durkheimiana", da corrida que eu sugiro não a legitima por si só. Embora seja verdade que permite - no mundo de hoje - libertar a energia criadora dos mitos do terror e clausura do próprio mito e de qualquer organização/consagração religiosa da ordem do mundo, é evidente que esta via de legitimação é curta. O que me parece é que as da deslegitimação legislativa o são também.
O único aspecto que não tocas e me parece importante consta do ponto 2. Muito resumidamente, a minha posição é a seguinte: salvaguardadas ss devidas proporções, e falando normativamente, passa-se com o consumo alimentar de carne animal, o mesmo que com a pena de morte. Se assumimos que queremos esta última (e eu não a quero no direito penal), teremos de assumir que podemos ser chamados a executar a sentença. Se assumimos que o abate de animais para nos alimentarmos se justifica, não devemos fazer de conta que não é assim nem maquilhar, tornando-os obscenos, os matadouros e os talhos (apesar de não ser necessário nem desejável torná-los espectáculos), como tendemos já a maquilhar, e por isso a tornar obscena a morte, mentindo sobre ela às crianças, à semelhança do que os nossos avós faziam com o sexo. Suponho que será mais fácil evitar a sobre-violência, a violência obscena e tóxica, se soubermos assumir e tomar conhecimento da violência necessária ou ineliminável que, de uma forma ou de outra, nos impõe que aprendamos a falar e a ter maneiras. Etc., etc.
Bem sei que este argumento não permite deduzir ou fundamentar uma posição sobre a corrida. Mas leva pelo menos a que nos interroguemos sobre a sensibilidade colectiva, ou as tendências dessa sensibilidade, que vemos em acção em certos, talvez não todos, meios proibicionistas.
Acabo, afastando-me do tema, mas conduzido apesar de tudo pela vontade de o ir aprendendo a formular mais claramente, com este poema de Sophia (em Ilhas):
Elsinore
No palácio dos Átridas como em Elsinore
Tudo era cavernoso – as paredes
Eram grossas o espaço excessivo e sonoro
Roucas as vozes da maldição antiga
Porém em Micenas o sangue era exposto
E corria vermelho como num grande talho
Sujando apenas as mãos dos assassinos
E a água da banheira –
Lá fora o rio a luz
Continuavam limpos e transparentes
O crime era um corpo estranho e circunscrito
Não pertencia à natureza das coisas
Em Elsinore ao contrário o mal era um veneno
Subtil
Invadia o ar e a luz – penetrava
Os ouvidos as narinas o próprio pensamento –
O amor era impossível e ninguém podia
Libertar-se:
O inferno vomitava a sua pestilência invadia
As veias e os rios:
No entanto o mal não se via: era apenas
Um leve sabor a podre que fazia parte
Da natureza das coisas.
Abraço
miguel sp
Miguel,
Falas em «maquilhar,tornando-os obscenos, os matadouros e os talhos». Ora isto, desde logo, parecem-me dois assuntos díspares: os talhos lá continuam como sempre, de carcaças e carne bem à mostra. Já os locais de morte da bicharada devem ser alterados sim para que o sofrimento infligido seja minimizado; isto não é maquilhar.
Adiante: não sou contra o boxe, por exemplo, tendo em vista que ali se encena um combate entre iguais e entre voluntários. Já a corrida de touros me parece escusada para manter essa "reserva natural", por assim dizer, de «violência necessária».
Luis,
eu sei que os talhos ainda subsistem, mas vai-se afirmando a tendência é substituí-los por "boutiques" de carne. E, quanto ao sofrimento dos animais, sim, deve ser minimizado, mas não só no instante do abate, como também, e sobretudo, na sua criação.
Abraço
miguel sp
Isso das "boutiques" de carne é coisa de burguês. Eu continuo a frequentar aqueles tugúrios com fitas à porta e sangue por todo o lado :-)
Caríssimo MSP,
Para evitar o absurdo conceptual de direitos não direitos a questão tem sido considerada no ambito dos interesses difusos, cujo desenvolvimento tem vindo a, nesse tocante das condições de criação, utilização, transporte e abate de animais, oferecer tutela suficiente e eficaz (estou em crer que por vezes elevada a um absurdo de rigor positivo que em muito ultrapassa o conhecido bom tento - alguns destes exageros são personificados pela mui reputada asae). Temos de considerar também a inevitável questão da racionalidade económica de onde resulta que quanto mais recursos forem empregues, na salvaguarda de interesses difusos concernantes a essas actividades, maiores serão os recursos a aplicar na aquisição de tais proveitos (incluo aqui as proteinas e gorduras dos animais que consumimos)
- Quanto ao 2 de acordo consigo e com o Rainha!!
- Quanto ao 3...posso concordar!! Mas discordo do Rainha (ah! AH!)!! O traje... a música...!!! Não vejo mal nenhum naquele universo!!
Luis,
também eu - mas seremos mais do que sobreviventes (falando em termos de - pelo meos até ver - mainstream)?
Caro e atentíssimo Justiniano,
nada tenho a objectar às suas considerações. Só um reparo: há em volta, não só da corrida, mas de toda a temática que evoquei, escolhas de civilização ou de valor que não podemos reduzir à racionalidade económica nos termos em que actualmente é posta. Sem dúvida que a promoção de outra relação connosco próprios (como sociedade e de cada um consigo) e com os elementos não-humanos da paisagem histórica que somos - fazendo-a e por ela sendo feitos - implica uma outra economia, uma reincrustação da economia numa ordem de prioridades institucionais diferentes. Ou, mais classicamente, implica a recondução do "económico" à condição de meio, de actividade que, ao contrário de determinar os fins ou se dar como finalidade suprema e inquestionável, não tem o seu fim em si própria, mas recebe da polis os seus fins e sentido.
Grato, como sempre, pela sua interpelação.
msp
Caríssimo MSP,
Compreenda que coloco a inevitabilidade económica em sentido dual - recursos e ethos ou materialidade e racionalidade.
A segunda é perfeitamente instrumentalizável mas a primeira é profundamente determinista (é evidente que a resiliencia da razão pode sempre surpreender!!! - Durkheim apostou, como eu estava agora apostado, nesse quase determinismo e seria mais tarde surpreendido do mesmo modo)!!
Será quase intuitivo e corresponderá a um apuradíssimo interesse esclarecido precaver quanto à sustentabilidade dos recursos e isso, em si, será já utilizar a economia como um instrumento, meio, iter!!
Quanto a essa dimensão servil e utilitária da economia, é evidente que somos sempre abertos a leituras!!
Um cordial bem haja
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