08/10/10

Nóbeis para idealistas

Todos os anos é a mesma coisa. Mal é anunciado o nome do vencedor do Nobel da Literatura, lá surgem as carpideiras a lamentar listas quilométricas de grandes escritores que nunca receberam o galardão. Por norma a ideia é desvalorizar o prémio, embora também haja quem use esta lengalenga para desvalorizar Saramago.
Neste ano, o jugular Rui Herbon foi um dos primeiros a pegar em tão gasto testemunho: «Ora, quem recorda hoje os senhores Mommsen, Mistral, Spitteler, Rolland e Sillanpää? (...) E o que dizer da lista dos não agraciados, que inclui nomes como Proust, Conrad, Joyce, Musil, Borges ou Pessoa? A academia sueca parece cometer erros iguais ou semelhantes aos de qualquer júri de província, e não receber o Nobel, sobretudo quando se é um eterno candidato, talvez seja uma honra muito superior.»
Nem vale a pena repisar o óbvio acerca de Pessoa (desconhecido aquando da sua morte). Ou elencar razões já famosas para algumas ausências notórias e tão polémicas: Proust e a homossexualidade, Joyce e algumas passagens muito ousadas para os seus dias, Borges e o apoio à ditadura argentina, Kundera e a sua suposta misoginia, Kafka e a escassa divulgação dos seus romances, etc.
Quanto aos escritores que Herbon nomeia como totais desconhecidos, trata-se mais de um erro de paralaxe, pessoal e intransmissível. Por exemplo, Romain Rolland ainda hoje é lido e editado.
E se escritores como Sillanpää continuarem a ser lidos apenas na sua região? E se outros, como Mommsen, deverem a sua fama a uma só obra, de edição complicada (a monumental História de Roma) mas ainda praticada? E se Frédéric Mistral tiver escrito sobretudo num idioma hoje quase defunto? E se muitos nunca tiverem sido traduzidos para Português? Que prova tudo isto sobre a qualidade das suas obras ou sobre a justiça do tal “esquecimento” que as cobriu? Nada de nada. Talvez alguns venham a ser redescobertos, talvez alguns dos presentes ídolos do Rui conheçam em breve o olvido. Assim corre o tempo. (Isto sem menorizar absurdos patentes como a vitória dos juízes nobélicos Eyvind Johnson e Harry Martinson, num ano em que Nabokov era favorito.)
Mas falta ainda ressalvar algo que todas estas “análises” esquecem: o Nobel da Literatura não serve para premiar as melhores obras literárias. O testamento de Alfred Nobel fala sim no «mais saliente trabalho de tendência idealista».
Idealista; estão a ver? Esta condicionante política/programática está na raiz do prémio. E talvez explique muita coisa, de Pearl S. Buck a Winston Churchill.

5 comentários:

Justiniano disse...

Rainha, está bem e correcto, sim senhor! Mas não gosto de concordar contigo, por isso este comentário é só para excepcionar aqueles que discordo, com gosto (ainda não sei inserir aquelas carantonhas sorridentes)!! Venha daí um daqueles mesmo, mesmo suculentos e mortinhos por contradição!!

CMF disse...

E explica Knut Hamsun?

Luis Rainha disse...

Esse jogava em casa. E só deu em nazi bem depois do prémio...

CMF disse...

Não sei. O "En el pais de los cuentos" (li em castelhano, não sei qual o título em português, ou se foi traduzido) é de 1903, muito antes do Nobel, e está lá, claro como a água, o anti-semitismo do homem. Há passagens que até custam a tragar, e estamos a falar de um simples "livro de viagens". Mas também é verdade que, na época, o anti-semitismo era visto com outros olhos, e ainda faltava muito para 1933.

Miguel Madeira disse...

Eu não conheço a obra de Hamson, mas o anti-semitismo (como qualquer "ismo") também é uma forma de idealismo, logo está dentro das exigências...

Poderemos é questionar Borges e Junger não terem ganho o prémio (e a sorte do Solzhenitsyn foi ter ganho o prémio antes de se se saber as suas ideias), mas isso é mais resultado dum "double standard" geral no pensamento ocidental dos últimos 60 anos do que propriamente do Prémio Nobel em particular.