03/01/12

Uma "proposta prática" do João Bernardo: Contra os canhões, marchar, marchar!

Acabo de receber, na minha caixa de correio electrónico, a seguinte "proposta prática", como ele lhe chama, do João Bernardo, entretanto divulgada já pelo Passa Palavra. "Trata-se de pedir", no dizer do seu autor, "que seja economizado 2,1% do PIB, e esta reivindicação colocaria também na ordem do dia um dos factores principais de democratização da sociedade". Segue-se o texto na íntegra. Acrescento apenas que, relativamente à questão das formas alternativas de defesa e segurança pública implicadas pela democratização da sociedade, tenho tentado indicar alguns pontos de partida — por exemplo, nesta minha intervenção, aqui no Vias, de Maio de 2010.

A necessidade urgente de reduzir as despesas do Estado tem servido de justificação para tudo, mesmo para cortes além do que foi exigido pela troika formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. E como não existem na economia compartimentos estanques, o aumento das jornadas de trabalho e a redução das remunerações no sector estatal repercute-se no agravamento da exploração também no sector privado. Mas se, de imediato, os capitalistas parece terem obtido assim uma enorme vitória sobre a classe trabalhadora, a muito curto prazo as contradições económicas agravar-se-ão. Com efeito, nenhum economista — nem sequer os que fazem parte das equipas que estudam aqueles cortes e os impõem — ignora que essa dimunuição drástica das despesas do Estado equivale a um desincentivo da economia, provocando uma recessão; e que a recessão, constituindo uma redução da actividade económica, dos lucros e dos salários, provocará uma redução do volume total que o Estado conseguirá cobrar em impostos; e que esta redução do volume total dos impostos agravará o défice do Estado, o que o há-de levar a novos cortes nas despesas; e que estes novos cortes nas despesas agravarão mais ainda a recessão e assim por diante. Trata-se, não no sentido metafórico mas em sentido literal, de um círculo vicioso.
No entanto, há um tipo de despesas que o Estado poderia suprimir praticamente sem prejuízos e com enormes vantagens — as despesas com as forças armadas.
Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, baseados nos critérios definidos pela NATO, as despesas militares em Portugal corresponderam a 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, tendo correspondido a 2,0% em 2006. Para termos uma noção do que isto representa, convém saber que a França, um país que possui armas atómicas, gastou com as forças armadas 2,3% do PIB em 2010 (2,4% em 2006). Mesmo um país de dimensões médias como a Itália dedicou às despesas militares só 1,8% do PIB em 2010 (1,8% em 2006) e a Polónia, um país que na escala europeia pode ser considerado de grandes dimensões e que se encontra numa situação geopolítica difícil, gastou com os seus militares 1,9% do PIB em 2010 (1,9% em 2006). Ou, se estabelecermos comparações no âmbito mundial, a China, um novo imperialismo emergente que faz sentir a sua presença em vários continentes e defronta situações potencialmente explosivas em Taiwan e na Coreia do Norte, consagrou às despesas militares 2,0% do PIB em 2010 (2,1% em 2006). E outro colosso geográfico, o Brasil, que tem fronteiras com todos os países sul-americanos excepto dois, despendeu com as forças armadas 1,6% do PIB em 2010 (1,5% em 2006).
Para mais, nas condições da guerra moderna Portugal é um país indefensável nas suas fronteiras. Os canhões, os barcos e os aviões, para não falar nos generais, nos almirantes e nos comandantes, simplesmente não servem para nada. É curioso que entre os feriados suprimidos pelo governo — uma medida que se soma a muitas outras destinadas a agravar a exploração dos trabalhadores — se conta o Primeiro de Dezembro, uma serôdia festividade nacionalista que comemorava a expulsão dos Felipes da coroa de Portugal e a colocação dos Braganças no trono. Mas pelos vistos o goveno continua a ter medo dos castelhanos porque, em percentagem do PIB, dedica às forças armadas o dobro do que a Espanha, que se limitou a 1,1% em 2010 (1,2% em 2006). Ora, outros pequenos países europeus também com fronteiras militarmente indefensáveis canalizam para as forças armadas percentagens do PIB muito inferiores à portuguesa, como sucede com a Suíça (0,9% em 2010, 0,9% em 2006), a Áustria (0,9% em 2010, 0,8% em 2006), a Hungria (1,0% em 2010, 1,3% em 2006), a Letónia (1,1% em 2010, 1,8% em 2006), a República Eslovaca (1,1% em 2010, 1,6% em 2006) ou a Bélgica (1,1% em 2010, 1,1% em 2006). Para não abusar da paciência do leitor nem da minha, bastará dizer que, entre os pequenos países membros da União Europeia, só a Grécia gasta com os militares uma percentagem do PIB superior à portuguesa (3,1% em 2010, 2,9% em 2006). Que coincidência!
Como não existe em Portugal qualquer complexo militar-industrial significativo que leve as despesas com as forças armadas a repercutirem-se num aumento das encomendas à indústria militar nacional, com o correspondente aumento do emprego, todas aquelas despesas se devem classificar economicamente como improdutivas. Segundo o Ministério da Defesa, em 1989 a indústria militar empregava apenas entre 3.000 e 4.000 pessoas, e em seguida reduziu-se verdadeiramente à insignificância, porque a empresa pública Indústrias Nacionais de Defesa, votada sobretudo ao fabrico de vários tipos de munições e que desde a modernização e reorganização empreendidas em 1997 passara a ser uma empresa exportadora, foi gradualmente dissolvida em 2001-2004.
Figueiredo Lopes, que de 1983 a 1985 foi secretário de Estado da Defesa Nacional, considerou em A Cooperação Europeia nas Indústrias de Defesa: «Depois da descolonização e com o fim da guerra, a indústria militar defronta-se com uma crise estrutural, tomando-se urgente a sua reorientação; se se quer manter de pé esta indústria é preciso urgentemente assegurar mercados estabilizados para os produtos militares portugueses, visto que as necessidades das Forças Armadas portuguesas são limitadas. Esses mercados têm de ser encontrados preferentemente no interior da Aliança Atlântica. A renovação tecnológica da indústria de defesa portuguesa poderia resultar duma política de compras aplicada à escala da Aliança Atlântica […]». Mas estas previsões, ou aspirações, não se realizaram e mesmo sob o ponto de vista do comércio externo as despesas militares são nocivas para a economia portuguesa, porque neste sector o volume das importações tem sido muito superior ao das exportações.
Publicado pelo Ministério da Defesa Nacional, o Relatório Anual de Importações e Exportações de Bens e Tecnologias Militares referente a 2008, o último disponível, indica que em 2003 a exportação de artigos militares e a prestação de serviços de carácter militar ao estrangeiro rendeu 25,0 milhões de euros, enquanto as importações do mesmo sector totalizaram 39,8 milhões de euros. Em 2004 os números equivalentes foram de 12,6 e de 42,5 milhões de euros. Em 2005, de 7,0 e 159,2 milhões de euros. Em 2006, de 9,0 e 312,4 milhões de euros. Em 2007, de 10,1 e 386,1 milhões de euros. Finalmente, em 2008 as exportações limitaram-se a 8,2 milhões de euros enquanto as importações subiram a 63,0 milhões de euros. Se dividirmos o volume das importações pelo das exportações obtemos um máximo de 38,2 em 2007 e um mínimo de 1,6 em 2003. Entre estes dois limites ficam assinaladas as perdas que o sector militar provoca à economia portuguesa no comércio externo.
Quando se pôs fim ao fascismo e as antigas colónias adquiriram a independência política, Portugal perdeu a grande oportunidade de ter dispensado as forças armadas e se ter somado aos países que, como a Costa Rica ou a Islândia, não têm despesas militares.
Portugal poderia ter feito isso se não tivessem sido precisamente as forças armadas a executar o golpe militar que derrubou o fascismo e, depois disso, a participar activamente no processo revolucionário de 1974 e 1975. Não só o papel institucional das forças armadas se fortaleceu como, pior ainda, as raízes do militarismo se consolidaram em todos os sectores da esquerda e da extrema-esquerda, porque não havia então nenhum partido civil que não tivesse entre os militares uma base de apoio, quando não mesmo a principal base de apoio. Desde a direita conservadora até aos vários matizes da extrema-esquerda maoísta e mesmo luxemburguista, todos dispunham de regimentos e batalhões. Foi a época dos «soldados, sempre, sempre, ao lado do povo». Alguns desses partidos tinham mesmo mais soldados do que povo. E se isto facilitou muito cada um dos confrontos sociais particularmente considerado — qual seria o patrão que resistiria à comissão de trabalhadores quando ela chamava em seu apoio as metralhadoras e os blindados? — constituiu um enorme prejuízo no âmbito da luta social globalmente considerada.
Naquela época eu colaborava num jornal chamado Combate, que se publicou desde Junho de 1974 até Fevereiro 1978, e um dos pontos do nosso Manifesto, distribuído juntamente com o primeiro número, apelava à destruição das estruturas militares e do militarismo e ao desencadeamento de um processo que resultasse no povo armado. Nada de original, mas praticamente ninguém mais o repetia no Portugal de então, em que «o povo está, com o MFA», o «MFA, sentinela do povo» [*]. Se recordo isto, porém, é apenas para contar que numa época em que se dizia e se escrevia o que se queria, o único ponto que a censura militar não deixou reproduzir nos jornais diários que publicaram o nosso Manifesto foi o respeitante ao militarismo. Em vez dele ficaram reticências. Também sucedeu, pelo menos duas vezes, que alguns companheiros que colavam o Manifesto pelas paredes de Lisboa fossem interpelados por patrulhas militares e levados a quartéis, por causa da tal questão do antimilitarismo. Nada de mal lhes aconteceu, os tempos eram de revolução, e tudo o que tiveram foi de sustentar conversas com o tenente ou capitão ou lá quem fosse acerca dos inconvenientes, para nós, e das vantagens, para eles, das forças armadas. Mas o exército podia ter deixado divulgar aquele ponto do Manifesto à vontade porque ninguém nos ouvia. Toda a esquerda e a extrema-esquerda estava entusiasmada com a novidade de contar com os «soldados sempre, sempre, ao lado do povo».
E o pior é que os soldados ficaram «sempre, sempre», mesmo agora, quando convém desembaraçarmo-nos deles.
Note-se que ao sugerir a conveniência de nos desembaraçarmos das forças militares não me refiro aos programas eleitorais apresentados pela esquerda, que abordam o tema com a ambiguidade e a dose de vaselina característica deste tipo de documentos. Refiro-me à gente comum, às conversas de todos os dias, às pessoas como nós, aos indignados e aos precários que de tão flexibilizados ficaram inflexíveis, aos que acamparam e aos que têm a tenda preparada, ou seja, a todos os que pagam a factura.
Trata-se de exigir que seja economizado 2,1% do PIB. E a generalização desta reivindicação traria ainda um enorme benefício social, porque colocaria na ordem do dia um factor de democratização da sociedade. As forças armadas são uma das principais estruturas autoritárias, tendo a cadeia de comando como eixo fundamental, e constituem o pneu sobresselente do capitalismo, o aparelho de Estado alternativo, para o caso de o aparelho civil fracassar. Um capitalismo sem exército é, a prazo, um capitalismo socialmente mais débil.
Então, contra os canhões, marchar, marchar.

Nota
[*] Para os leitores brasileiros, o MFA, Movimento das Forças Armadas, foi a organização militar responsável pelo golpe de 25 de Abril de 1974 e que desde então até ao final de 1975 orientou a vida política portuguesa.

7 comentários:

jpt disse...

Este tipo de argumentação é infantil. Já dei para este peditório, já não tenho 18 anos... Obviamente que as estruturas militares precisam ser redimensionadas e repensadas, agora pensar a "Defesa Nacional" como sendo apenas militares de armas na mão, ignorando todas as outras funções, é de um primitivismo político que eu não gosto de ver associado aos partidos de esquerda. As forças armadas têm como função não só proteger o espaço nacional, o que inclui patrulhamento do território (também marítimo e aéreo) contra agressões não-militares, como a pesca ilegal ou o contrabando de droga, mas também a colaboração com a proteção civil em caso de necessidade (quem vai buscar os pescadores perdidos é a armada, por exemplo, quem patrulha o espaço aéreo é a força aérea, etc), participação em forças de manutenção de paz, etc. Nenhum país do mundo prescindiu, em toda a história da humanidade, de ter forças armadas, e a sua utilidade está muito para além do "fazer a guerra". Todo este texto é, repito, primário, infantil e politicamente inconsequente.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro JPT,
pergunto-me se terá lido com atenção o texto que critica. Com efeito, tem-se a ideia de que está a flar de outras questões, e que o seu interlocutor é qualquer vulgar "pacifista zoológico" e não o João Bernardo que assina este escrito.

Saudações perplexas

msp

Anónimo disse...

A esquerda podia, juntamente com as forças armadas, ser completamente dispensada, que só o capitalismo ficaria a perder.

David da Bernarda disse...

João Bernardo, que já não tem 18 anos, mais uma vez, toca num tabu nacional: a existência das forças armadas em Portugal. Um dos eternos desperdícios em que ninguém, nem a esquerda, quer tocar...
Quanto a outras funções que hoje desempenham, em pequena escala, podem ser desempenhadas por bombeiros, defesa civil ou outros organismos que não tenham o objectivo de fazer a "guerra" ou de nos proteger de inimigos externos imaginários. Tudo o resto que lhes leva o grosso do orçamento é para pagar ao enorme corpo de oficiais superiores, e a participação em exercícios e missões internacionais ao serviço dos EUA/NATO, ou seja das políticas internacionais das superpotências dominantes.

Miguel Madeira disse...

"Nenhum país do mundo prescindiu, em toda a história da humanidade, de ter forças armadas"

Nem o Haiti nem a Costa Rica têm forças armadas; a Bolivia também aboliu as suas FAs após a revolução de 1952 (restauro-as uns anos depois e mal foram restauradas deram um golpe).

Miguel Serras Pereira disse...

Ainda sobre o comentário de JPT:

retomo aqui, com uma ou duas modificações, a questão da "violência necessária" numa sociedade democrática, nos termos do post que cito na apresentação do texto do João Bernardo.
Imaginemos, pois, uma sociedade autónoma e autogovernada: as decisões da cidadania governante terão de ser protegidas pela sua força armada, pela acção de "serviços de ordem" ou "milícias" não-profissionais, rotativamente assegurados. Era o que Orwell, durante a Segunda Guerra Mundial, tinha em vista ao sustentar que, depois do fim da guerra, as armas deviam continuar nas mãos e em casa dos trabalhadores, que, enquanto cidadãos tinham sido chamados a defender o país da ameaça nazi. Orwell não defendia por certo que, uma vez de armas na mão ou em casa, cada trabalhador pudesse usar as armas ou recorrer à violência para fins privados e segundo o seu arbítrio. A existência de restrições – desejavelmente severas – ao uso da violência não significa que a sua legitimidade seja monopólio de um corpo separado e profissional. A afirmação da autonomia democrática, a acção instituinte de uma livre sociedade de iguais, não pode declarar incondicionalmente ilegítimo o recurso à violência. Mas, como já disse noutra ocasião, pode e deve opor-se ao seu culto e à sua profissionalização.

msp

jpt disse...

Miguel:

Numa democracia "o acesso à violência" (não gosto muito do termo, mas continuemos) deve estar controlado democraticamente. Prefiro "o acesso à violência" numa força organizada, do que em qualquer outro grupo não controlado democraticamente. E acrescento que o uso de violência deve estar muitíssimo restrito, seja da parte de quem for.

Concluo que acho que ninguém no seu perfeito juízo votaria num partido com o que está acima escrito incluído no seu programa eleitoral. Há coisas que ficam muito bonitas nas canções do John Lennon, e dão excelentes temas de conversa pra jovens barbudos à volta duma guitarra e dum porro (nada contra nenhuma destas coisas, aliás). A história recente mostrou que, por este caminho, a esquerda não vai a lado nenhum. Isto era um tema recorrente nos anos 70. Não avançámos muito, pelos vistos.