15/02/15

Mascarar cães com réplicas das barbas do Profeta não é fé na blasfémia, mas legítima defesa da descrença

Perante esta notícia:

Acredita-se que [Lars Vilks, o cartoonista sueco, de 68 anos, que vive sob proteção policial depois de ter desenhado Maomé como um cão] seria o alvo [do atentado de Copenhague]. Desde a exposição do polémico trabalho, em 2007, o artista está na mira da al-Qaeda e tem a cabeça a prémio, refere o El País. Os "fanáticos islâmicos" oferecem 74 mil euros a quem o matar. E se for "sacrificado como um cordeiro", isto é, degolado, o valor sobe para 100 mil euros, segundo o jornal espanhol

— é um triste sinal dos tempos que correm vemos hoje, não só alguns inconsoláveis órfãos, que procuram afogar as saudades dos bigodes de Estaline venerando as barbas de Mafoma, mas também multiculturalistas vários e interculturalistas abrangentes do tipo Boaventura Sousa Santos, ou interpretarem, mais ou menos sotto voce, o atentado como um acto de resistência anti-imperialista, ou proporem como meio de pôr fim a acções semelhantes a repressão da blasfémia, do livre-exame e dos excessos de liberdade de expressão, a criminalização da blasfémia e o combate à "laicidade total".

Já nos finais da década de 1980, por ocasião do caso Rushdie e de Os Versículos Satânicos foi assim, e o "cretinismo político" que, segundo Castoriadis, parece endémico, ainda que com excepções, entre os filósofos de métier, manifestou-se em todo o seu inquietante esplendor: vimos, por exemplo, um pensador por vezes tão sugestivo como Charles Taylor "compreender" com arrepiante generosidade hermenêutica a fatwa e denunciar o romance de Rushdie como atentado à identidade muçulmana e aos seus "suportes existenciais" (ou seja, argumentar que, a partir do momento em que alguém invista suficientemente a sua fé, a ponto de a tornar um "suporte existencial" da sua identidade, teremos de respeitar, não apenas os seus direitos individuais, mas também as suas "ideias"…). Uma pergunta inevitável subsiste, no entanto, sobre o tipo de sociedade e de regime político que opõem, afinal, à ordem oligárquica dominante, não só os anti-imperialistas nostálgicos do "socialismo realmente existente", mas também os multiculturalistas do "respeitinho é que é preciso" e a sua facção "bolivariana" ou mensageira do "socialismo do século XXI", que gosta de se proclamar "interculturalista"? Deveremos respeitar também a originalidade desse traço cultural distintivo que é a divisão do trabalho político, implicando a divisão política do trabalho, do capitalismo ocidental, ou continuar a lutar contra a sua economia e as suas relações de poder, bem como contra as "alternativas" que se propõem reciclar a sua dominação hierárquica, ressacralizando as leis e instituições e entaipando ainda mais o horizonte anti-classista da autonomia democrática ou da cidadania governante? E, no que se refere aos factos noticiados no início deste post, deveremos reforçar os mecanismos de censura, ou organizar cortejos de carnaval com muitos e visíveis cães mascarados com réplicas das barbas do Profeta? Não por fé na blasfémia, como já disse ontem, mas em legítima defesa da descrença, cujos direitos são condição necessária, ainda que não suficiente, da liberdade e de uma cidadania de "iguais". É verdade que mascarar assim os cães ofenderia não só a especificidade cultural dos muçulmanos piedosos, mas também as convicções profundas dos animalistas mais crentes — resta, em todo o caso, que poupar as cajadadas é um preceito de utilidade comprovada que todos os caçadores de coelhos conhecem bem.



11 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel,

100 % de acordo quanto à importância da liberdade de expressão (que inclui a liberdade de blasfémia) e quanto ao facto de ser fundamental mostrar que não vacilamos nem damos sinais de pânico em relação a esta matéria.

Quanto ao resto, não excluindo que o Boaventura Sousa Santos possa ter disparatado (o link remete para um post teu, mas não li o texto do Boaventura), permito-me uma pequena nuance numa matéria, mais uma vez, extremamente delicada. E' que o que tu dizes esta certo até certo ponto, mas também não devemos, quanto a mim, cair na facilidade de confundir "compreender" com "justificar".

E' a velha questão de saber até que ponto "compreender" é compativel com "julgar".

Claro que é "compativel" ! e que deve sê-lo. Eu até iria ao ponto de afirmar que "compreender" não tem sentido util, nem consistência, se não for para julgar, o que implica condenar se necessario.

Mas, correlativamente, a condenação, ou alias a emoção, não nos devem cegar, o que seria outra forma de ceder ao terror. Portanto importa não perder de vista que os problemas se combatem procurando as causas, e não entregando-nos à reacção imediata e irreflectida. Não sei em quem estas a pensar exactamente quando falas nos "multiculturalistas", mas posso imaginar que alguns não façam mais do que chamar a atenção para este aspecto. Ora, posso perfeitamente entender quem diz que, por mais idiotas que sejam os desgraçados que desatam aos tiros (como tantos outros, infelizmente), a resposta NAO passa pela guerra santa, nem pela colocação de um soldado atras de todo o cidadão.

Dito isso, é claro que a resposta também não pode passar por uma cedência diametralmente oposta, (mas nem por isso menos cedência) à chantagem do terror, por exemplo censurando mensagens em nome de uma compreensão doentia e fundamentalmente errada do que possa ser a "susceptibilidade" do religioso, ainda que reconheçamos que ele é também uma vitima...

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Bonjour, très cher.

Inteiramente de acordo com as tuas observações sobre o "compreender" e o "julgar" — e, de resto, eu tinha posto aspas no "compreender". Inteiramente de acordo, também, quando dizes que a solução não pode ser securitária. Justamente, a minha ideia é que devem ser os cidadãos, sobretudo os que estão apostados em sê-lo de facto e plenamente, a responder a estes atentados às suas já limitadas liberdades e às suas "capacidades" potencialmente governantes. Portanto, se há quem queira punir a tiro debates sobre a blasfémia e a incompatibilidade da sharia com os direitos de cidadania, etc. — ou publicação de livros, caricaturas, etc. —, a nossa resposta deve ser retomá-los e multiplicá-los, não por fé na blasfémia como via privilegiada da liberdade de expressão, mas em legítima defesa desta última, condição necessária da extensão democrática de todas as liberdades e direitos. Porque, quando somos atacados assim, penso que só podemos ir à luta e ripostar, não deixando aos governos o monopólio — sempre potencialmente liberticida — de nos proteger e "guardar".

Forte abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola,

Concordo e digo mais : a resposta deve ser isso que dizes, e também redobrar de esforços na luta contra as discriminações, incluindo nestas as discriminações por causa das convicções religiosas, quanto mais não seja para que fique claro : i/ que a sociedade se mobiliza em favor da igualdade, com tudo o que isso supõe de abertura às diferenças e ii/ que esta luta não tem rigorosamente nada a ver com a proibição da "blasfémia", muito pelo contrario.

Abraço

nunocastro disse...

O problema, é que como não vivemos no mundo da fantasia, o medo é muito real. e começa a fazer as suas vítimas...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nuno Castro,

claro que o medo é muito real, mas é necessário combatê-lo. Porque se cedermos ao medo perderemos o pouco de cidadania que nos resta. Responder aos atentados deste tipo, não deixando o assunto apenas às "autoridades competentes", deveria ser uma preocupação de todos os que não desistiram de um projecto de transformação democrática da vida numa polis civilizada. Por mim, foi o que fiz, por ocasião do caso Rushdie, quando aceitei ser co-tradutor de Os Versículos Satânicos, e ainda aqui estou, sem ter perdido o sono por causa disso. Voltaria a fazê-lo agora, embora saiba que uma atitude meramente individual tem pouco alcance e que agir com eficácia e algumas perspectivas de sucesso exige iniciativas de um, dois, muitos colectivos, capazes de configurar um princípio de movimento.
Mas creio que estará de acordo comigo.

Cordialmente

msp

Anónimo disse...

Parece que estão todos a esquecer-se que o Islão- com as diversas correntes sunnitas e a(s) minoria(s) xiita(s)- já é a segunda religião do Mundo com cerca de 1,3 biliões de crentes, espalhada pelos cinco Continentes...Como sublinhou Castoriadis," O imaginário está lá desde o princípio como elemento primeiro; como o que, à la fois,constitui e estrutura a sociedade, a história e o individuo ". Niet

joão viegas disse...

Caro Nuno Castro,

Para completar o que diz o Miguel, julgo que devemos sempre lembrar-nos que o medo é precisamente a arma de que usam a demagogia e todos os autoritarismos. E ha aqui uma conivência obvia com o terrorismo...

Quem quiser ter medo, pode sempre preocupar-se, por exemplo, com o cartel entre construtores de camiões que durou 14 anos na União Europeia e que foi (ou vai ser) provavelmente responsavel por muito mais mortes do que todos os atentados contra caricaturistas cometidos até hoje. Sobre a questão, houve umas noticias tipo notas de rodapé em Dezembro, vindas essencialmente dos "tecnocratas" da Commissão, e a coisa caiu logo a seguir no esquecimento. Culpa dos tecnoctatas ? Não me parece... E este é apenas um exemplo, o primeiro que me veio à cabeça.

Isto, claro, não tira nada à abjecção dos atentados, nem à firmeza com que devemos condena-los. Mas, apesar de tudo convida à calma. Aqui em França, enquanto brincamos às guerras, o governo de "esquerda" vai passando leis que fazem a Tatcher, ao lado, parecer-se com uma revolucionaria bochevique...

Portanto viva o Charlie, vivam as caricaturas, viva a liberdade de expressão. Mas viva também o segundo de reflexão antes de enveredar o fato de Rambo do choque das civilizações. Ainda que seja carnaval.

Abraços a todos

nunocastro disse...

Caro João Viegas

remeto-o para o meu post e os efeitos do medo sobre os desfiles carnavalescos em cidades alemãs. É real, possa o João escondê-lo sob a retórica que lhe aprouver. Não é uma questão de "quem quiser ter medo", é de "quem tem". Lamento, mas tudo o resto soa-me a bazófia.

joão viegas disse...

Caro Nuno Castro,

Não nego a existência do medo nem menosprezo a histeria em volta desta questão. Mas vejo nisso mais uma razão para não ceder, e creia que não se trata de simples retorica.

Nenhuma sociedade, no seu perfeito juizo, decreta de repente o Estado de sitio porque uns iluminados, em desespero de causa, resolvem desatar aos tiros. Cabe talvez lembrar que o terrorismo não é apanagio dos islamistas radicais, nem é de hoje. Mas, claro esta, quando se trata do Ravachol ou de Bonnie and Clyde, e que vem contado num livro com fotografias sépia, as pessoas acham o maximo e não se sentem directamente ameaçadas...

Diz v. que o meu discurso é "bazofia". Creio que não é. Mas sobretudo, não deve ser artificialmente cortado a meio. A atitude que leva a dizer : "ha uns malucos aos tiros, não nos vamos deixar impressionar e devemos mostrar que não é por ai", não se pode dessolidarizar da que leva a dizer : "ha outras maneiras, mais eficazes, de combater os males que estão na origem do desepero desses tristes desgraçados que, apesar de tudo, são também vitimas, embora nos custe a dizê-lo". As duas, sendo retorica, são talvez também um pouco mais do que isso (e repare que a retorica, que também opera na forma como nos convocam para uma guerra televisiva contra o porco sujo la longe, não merece o desprezo com que a consideram, mas isso ja é outra conversa...).

Bazofia, diz v. Vamos parar dois segundos e reflectir ? Hoje, nos paises europeus, existe realmente um perigo, significativo em termos politicos, de vermos um partido islamista aceder ao poder ? Ou mesmo apenas de vermos as leis sobre a liberdade de expressão limitadas ? A existir, este ultimo vem dos fundamentalistas catolicos (por exemplo na Irlanda) e não dos Bin Laden de pacotilha... Sejamos sérios. (A menos que consideremos a questão dos limites desta liberdade como uma potencial ameaça, mas neste caso entramos ja completamente no campo da demagogia).

Em contrapartida eu acho que é capaz de existir, em muitos paises europeus, uma discriminação sistematica e massiva em detrimùento dos trabalhadores imigrantes, entre os quais ha muitos muçulmanos. E considero que esta discriminação, não so é muito mais preocupante, mas tem voz atravês de movimentos politicos bastante mais organizados que, nalguns casos, estão muito proximos de estar em condições de governar...

Portanto, tenho pena, mas escolher entre os "medos", e sobretudo escolher entre os dominios onde devemos exercer a nossa vigilância em prioridade, numa sociedade mediatica como a nossa, não é "bazofia", nem é impossivel. E também não me parece ser de somenos importância.

Eu diria mesmo que é precisamente nesse ^ponto que começa a responsabilidade politica, responsabilidade que deve ser exigida dos politicos, é certo, mas também do cidadão comum, que o politico pretende representar.

Saudações democraticas.

nunocastro disse...

Caro João

Não podia estar mais de acordo com o que diz. A única coisa em que nos separamos argumentativamente - e que contextualiza o termo "bazófia" - é na questão do medo.
Claro que há trabalhadores imigrantes a serem explorados, e claro que muitos deles são muçulmanos. Mas há também radicais entre essas fileiras e por mais que digam o contrário não me convencem que não são problemáticos. As células existem, e por isso existem os atentados (que já não são assim tão poucos se contarmos com aqueles que têm menor espectacularidade – agressões, pichação (como dizem os brasileiros) de sinagogas, etc). Digo que é bazófia porque pode ser enunciada num contexto onde a expressão de tais incidentes é mínima. A semana passada o ISIS decapitou seis beduínos a norte do Sinai numa pacata aldeia, conta-me um conhecido egípcio. Não se trata do grande satã ocidental, porque isso sim é retórica. As aldeias em derredor vivem em pânico, conta-me novamente esse meu conhecido. (e serve para reflectir que aquilo que conhecemos das atrocidades do ISIS é basicamente contra ocidentais, mas o seu lastro é bem maior]. E por que razão não haveriam de estar? O modus operandi é o mesmo na Europa. Julgo portanto que incitações à multiplicação de iniciativas só podem ser tidas de ânimo leve num contexto como o português (ou outro) onde a expressão muçulmana é inexistente na esfera pública. As reacções que estão na base dos atentados já existiam e seguiam normalmente os canais legais ou tinham expressão no espaço público através do ultraje. Mudaram de forma, passando a manifestar-se através de metralhadoras.
Repare que eu não digo que a reacção não deve ser justamente essa que propõe. Apenas saliento que o medo é real – e não fabricado como o seu texto parece implicar. E como tal dizer que não existe tal coisa parece-me contraproducente.

joão viegas disse...

Ola,

Acho, de facto, que estamos muito perto de dizer a mesma coisa. Repare que, mesmo dando de barato que a ameaça na Europa é séria, a forma mais eficaz de lutar contra ela consistiria em combater as causas, mostrando que a luta contra as discriminações e contra a exploração passa por outro tipo de organização, o que é o mesmo que dizer que os aventureirismos desesperados desses jovens jogam no fundo CONTRA os interesses das pessoas que eles afirmam querer defender. Infelizmente, isso não é obvio para toda a gente.

Finalmente, o que digo diz apenas respeito ao que se passa aqui, na Europa. Como é obvio, a questão coloca-se de maneira totalmente diferente em paises onde o fanatismo muçulmano conseguiu implantar-se politicamente ou militarmente. Ainda que, mesmo nesses paises, a questão de saber em que medida a politica externa das potências ocidentais contribuiu para criar a situação me parece dever ser colocada.

Saudações democraticas.