04/05/15

O liberalismo nunca existiu



Ao que vejo, anda tudo num grande alvoroço  porque um esperto chamado Vieira, da Faculdade de Economia de Barcelos[1], procurou demonstrar  – ninguém percebe bem se ironicamente ou não – que o que falta para tornar um campo de concentração eticamente aceitável, é cobrar uma renda aos seus ocupantes. Parece que a possibilidade de chegar a semelhante conclusão partindo dos princípios mais profundamente enraizados do liberal-cretinismo que serve de manto diáfano doutrinário aos nossos governantes, fez cócegas a muita gente. Não percebo bem porquê. Por mim, sendo conhecida a minha pendência para o pragmatismo, não consigo sentir animosidade contra o dedo que carrega numa ferida aberta, nem aliás contra o dono do dedo.  Há pois, digo eu, uma inegável pertinência na brincadeira macabra do contabilista supra-mencionado, que nos remete para as palas que vestimos aquando das revoluções ditas “liberais”, das quais somos hoje tributários tanto à esquerda como à direita. Os consensos implicam sempre a sacralização de palavras, e essa sacralização joga em detrimento da equivocidade das ditas. Assim sucede com a palavra “liberdade”, com resultados por vezes surpreendentes. Num blogue lido por gente culta, julgo poder dispensar-me de lembrar como é que ela pôde estar associada aos campos de concentração nazis…

Cabe pois reflectir um pouco sobre esta matéria difícil, o que significa neste caso reflectir sobre a palavra. E, por seu turno, reflectir implica muitas vezes lembrar o que existia antes, sem cair no saudosismo pateta. Infelizmente, os nossos clérigos de hoje satisfazem-se enchendo a boca com frases ocas de Stuart Mill e julgam ter alcançado o pináculo da sabedoria filosófica quando conseguem exprimir com palavras vagamente técnicas o catecismo simplista e insonso de Uma casa na pradaria. Abrir um livro anterior a 1850 é coisa que não lhes passa pela cabeça. Com alguma razão. Com efeito, se eles procurássem ler os clássicos, não digo os Gregos ou os Latinos, mas os clássicos da melhor prosa portuguesa, poderiam deparar-se com isto (fonte : http://digital.library.wisc.edu/1711.dl/IbrAmerTxt.LealConsel) :

§2 Devem seer amoestados aquelles os quaaes nom cobiiçam o alheo nem o sseu dam por que sejam solicitos pera saberem que a terra cousa he comũu a todollos homẽes, da qual som feitos, e porem da mantiimento a todos geeralmente. §3 E contansse por innocentes por dizerem que o dom de deos comũu he seu proprio, os quaaes, quando aquello que recebem aos pobres nom dam, encorrem em morte dos prouximos e tantas penas merecem quantos pobres morrem per myngua de ssua ajuda. §4 E quando aos pobres ministramos as cousas necessarias, damoslhe o que seu he e nom o que he nosso e estonce pagamos debito de justiça quando a misericordia comprimos per obra. §5 E porem o ssenhor Jesu Cristo, quando enssynava cautellosamente fazer a misericordia, dizia: “Parade mentes que a nossa justiça nom façades ante os homẽes”.§6 Com a qual sentença concorda o ssalmista, dizendo: “ Spargeu e deu aos pobres, e a justiça fica pera todo sempre”. §7 Quando mandou a largueza fazer aos pobres, nom lhe chamou misericordia, mas justiça porque aquello que he dado pello senhor comũu, justo he sem duvyda que aquelles que o recebem comũumente dello husem. §8 E porem diz Sallamom: “Aquel que justo he, seja liberal e dê e nom cesse”. Devem seer amoestados que sollicitamente ajam de sguardar que a figueira nom tenha fruito contra o estreito lavrador. §9 Cristo demandava por que razom occupava a terra. A figueira occupa a terra sem fruyto quando a mente dos tenazes e scassos aquello, que a muytos podia aproveitar, sem proveito guarda. §10 A figueira occupa a terra sem fruyto quando o logar, o qual outro devya teer e occupar per fruito de boas obras, o ssandeu per soombra de priguiça apreme. §11 E sõoe estes aas vegadas dizer: husamos das cousas a nos concedidas; nom buscamos o alheo, e se nom fezemos bem, nom fezemos a nehũu mal. A qual cousa sentem porque a orelha do coraçom çarra as pallavras cellestriaaes. §12 E nom leemos que aquel rico, do qual se lee no avangelho que vestia purpura e visso e comya cada dia sprendidamente, que roubasse o alheo, mas husava das riquezas sem proveito,§13 e despois desta vyda presente foy lançado nas penas do inferno, nom porque algũa cousa fezesse nom licitamente, mas porque com destemperado huso deusse todo aas cousas licitas. §14 Devem seer amoestados os scassos, que ajam de ssaber que esta he a primeira enjuria que fazem a deos, o qual lhe deu todallas cousas, e nom lhe fazem nenhũu sacrificio. §15 E porem diz o ssalmista: “Nom dara a deos sacrificio, nem preço por a rrendiçom de sua alma”. Dar preço da rendiçom he fazermos algũa boa obra per que venha sobre nos a graça de deos. §16 E porem braada Jesu Cristo, dizendo: “Ja a segura he posta aa raiz da arvor; toda arvor que nom faz fruyto boo sera cortada e metida no fogo”. §17 Aquelles ergo que se ham por sem pecado porque o alheo nom tomam avisemsse do golpe da segura que acerca está e percam a preguiça se querem seer seguros;§18 porque quando o fruyto das boas obras nom quisesse fazer desta vyda presente da verdura lhe seram mais cortadas as rayzes.”

Como pode suceder que a leitura do trecho acima seja algo ingrata para alguns leitores menos familiarizados com o Português do século XV, talvez mereça a pena reduzir as suas ideias principais a uma expressão modernizada, despida de consoantes mudas e de alguns adornos teológicos perfeitamente dispensáveis (quanto a mim). Vamos então a isso :

-          A propriedade[2] não é um fim e nunca, mas nunca mesmo, dispensa ninguém da obrigação de dar aos pobres aquilo de que eles necessitam e que lhes é devido por direito.
-          A liberalidade, que não é a prodigalidade, traduz um imperativo de justiça, implica o cumprimento de uma verdadeira obrigação e, correlativamente, a satisfação de um autêntico direito.
-          Estes princípios não são realidades celestiais, nem derivam apenas da Misericórdia. Assentam na realidade económica : com efeito, quando não é regada, a figueira não dá frutos. Dito noutros termos, a riqueza redistribuída para a satisfação de necessidades sociais cria mais riqueza, o que compensa mais do que justamente[3].
-          Por falar nisso, não confundamos justiça com justeza. Não se ganha rigorosamente nada com ser-se parco, nem em liberdade, nem em riqueza. Antes se comete um erro com consequências incalculáveis, do ponto de vista económico, do ponto de vista ético, do ponto de vista político. Ao contrário do que julgam os módicos, não é a propriedade que nasce do trabalho, mas a riqueza. A propriedade é apenas um meio. Pode e deve estar na origem do trabalho, nunca no fim…

Os mais entendidos terão decerto reconhecido a primeira parte do capítulo 90 do Leal Conselheiro de dom Duarte (1438), que versa sobre a virtude da liberaleza. Como se vê, esta difere substancialmente da liberalice que anda hoje na moda.  Digo “primeira parte”, porque o capítulo tem duas, dedicadas a criticar duas doutrinas que diríamos hoje de política económica. A primeira crítica dirige-se à doutrina da direita, ou seja daqueles que “nom desejam cousa alhea nem dam as suas”. É a que está transcrita acima. A segunda dirige-se à doutrina da esquerda, ou seja daqueles que “o que teem dam de boa mente e nom leixarom por ello de tomar o alheo”. Esta, terá de ficar para outra vez…


[1] Dizem-me que não, que em Barcelos não há universidade, e que se trata antes da Universidade do Porto, que é a melhor do país e que trepou dez ou quinze galhos na mais recente edição da insuspeita classificação de Banzai. Seja…
[2] Sim, caro Ricardo Noronha, essa mesma, por vezes qualificada pleonasticamente de “privada”.
[3] O João Valente Aguiar que corrija aqui possíveis impropriedades terminológicas.

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