publicado no jornal i, esta quinta-feira
Há pouco menos de dez anos, após a manifestação global contra a Guerra do Iraque, o “New York Times” afirmava, no rescaldo desse dia de protesto mundial, que uma nova superpotência global acabara de nascer. A manifestação de 15 de Fevereiro de 2003, que se estendera da Austrália à Escandinávia, demonstrara que a globalização não era apenas o nome de um processo mercantil. Não sei se nos demos bem conta do facto, mas recuperámos por esses dias a hipótese de construir a partir de baixo um futuro movimento político global, sem a pompa e circunstância das cimeiras que reúnem organismos internacionais e governos nacionais e com a força e a criatividade de uma multidão que não olhe à nacionalidade com que os estados a classificam.
Se o internacionalismo foi uma das principais virtudes do ciclo de lutas que se afirmou entre finais dos anos 90 e aquele início de 2003 – um ciclo a que não foi igualmente estranho o levantamento zapatista de 1994 e que não deixou de se repercutir nos sucessos eleitorais da esquerda na América do Sul –, porém não foi a única virtude. Uma outra grande virtude foi a capacidade mostrada pelos movimentos de reporem a incerteza da história depois do anúncio do homem liberal como representando o último dos homens. Reagindo a um final de século indelevelmente marcado pelo elogio desenfreado das virtudes individualistas do liberalismo, e pela multiplicação de acusações de totalitarismo dirigidas a toda e qualquer política de transformação social, os novos movimentos que então emergiram romperam com o legado político do estatismo soviético sem que se encantassem com novos liberalismos. Sob o signo de fórmulas como “movimento dos movimentos”, exprimiu-se a possibilidade de emergência de um novo sujeito histórico colectivo, um corpo político que, sem necessidade de se subordinar a uma só palavra de ordem, instituía um tempo comum de acção contestatária.
Agora, em 2011, alguns meses passados sobre o início de uma onda de revoltas e protestos de natureza muito variada, que tem atravessado continentes, países e cidades – chegou a vez de Wall Street –, é de perguntar se não estamos perante um novo ciclo de lutas. Contra o protagonismo das elites políticas e económicas no quadro da resposta à crise financeira mundial, parece retomado o mais elementar princípio democrático: a política não é um monopólio dos políticos.
De Tunis a Wall Street passando por Madrid, muitos são os que nestes últimos meses não ficaram à espera que uma alternativa lhes fosse servida numa bandeja pelo partido X ou pelo líder Y. Estes muitos que por estes dias se inquietam não serão indiferentes ao rumo do mundo nos próximos anos. Às guerras de alecrim e manjerona, opondo quem defende que nos cortem a perna à altura do joelho e quem assegura que a justa medida da austeridade antes impõe que sejamos decepados dois centímetros mais abaixo, uma terceira margem acrescenta-se.
Em Portugal, os movimentos desta terceira margem, da geração à rasca de 12 de Março aos acampados do Rossio, passando pelos anarquistas que se manifestaram na Avenida da Liberdade contra a NATO, têm sido classificados como elementos perigosos, prontos a desferir um ataque ao coração da classe política, o que tem suscitado respostas contundentes da parte desta última, dizendo que os ataques de que tem sido alvo representam sobretudo uma ameaça à política propriamente dita. É um argumento que não colhe. Se é verdade que a crítica à classe política foi não raras vezes um cavalo de Tróia no interior do qual fez caminho a crítica à política, hoje é a classe política que, antes de tudo e todos, assegura já nada haver de político, cabendo apenas a um governo fazer cumprir um programa técnico supostamente livre de qualquer carga ideológica. Ou seja, a classe política matou a política. E pode bem dar-se o caso, neste contexto, de a crítica à classe política ser aquilo que de mais político se tem feito ouvir na sociedade actual. Na realidade, que gesto pode ser mais político que o de quebrar a divisão da espécie humana entre quem pertence e quem não pertence à classe política?
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