27/10/11

Violências

A minha crónica no í desta quinta-feira



Há já algum tempo, um crítico das políticas de combate à toxicodependência então dominantes dizia que o erro dessas políticas era perfilharem a teoria da escalada. Em que consistia essa teoria? Sabendo que um heroinómano havia começado por consumir drogas mais leves, como o haxixe, e que antes do haxixe havia experimentado tabaco, e que o fizera não sem antes abusar dos refrigerantes, a teoria reivindicava a proibição do consumo de refrigerantes.
O modo como alguns cronistas reagem à associação entre violência e política recorda-me sempre a teoria da escalada. Se alguém atira uma pedra contra uma montra, ainda o vidro não estilhaçou e já um batalhão de cronistas se levanta para nos alertar para o risco de um dia esse alguém se sentar numa cadeira do poder e ordenar a incineração de milhões e milhões de seres humanos.
Este pânico que a violência política hoje suscita é compreensível. Uma das razões do pânico é a nossa memória do século xx, profundamente marcada pelas cenas de violência política que dele fizeram parte. No entanto, o pânico que a violência política suscita não é fruto apenas da memória de um século, mas também de esquecimentos.
Os que em nome dos horrores do século xx condenam a violência política esquecem desde logo que aquela que é por muitos considerada uma das grandes conquistas do século xx, a democracia parlamentar, tem uma história de violência por trás. A violência não trouxe apenas coisas más. Os tanques que saíram à rua no dia 25 de Abril de 1974 não eram tractores prontos a cultivar as hortas urbanas com que o engenheiro Gonçalo Ribeiro Telles já nessa altura sonhava, mas armas prontas a derrubar a ditadura. A história das democracias ocidentais de igual modo seria incompreensível sem olharmos para a violenta guerra – incluindo abomináveis ataques como os de Hiroxima – que os Aliados conseguiram fazer contra a Alemanha de Hitler.
Nos debates que se avizinham, melhor seria reconhecermos, na verdade, que ninguém é contra a violência política propriamente dita. A maior parte dos cronistas que hoje encontramos a condenar a violência é na realidade favorável a um monopólio estatal da violência. Deste monopólio, aliás, os cronistas apresentam-nos não raras vezes uma história cor-de-rosa, segundo a qual sem a centralização da violência teríamos a guerra civil permanente em que todos nos comeríamos a todos. Trata-se aqui de uma história da violência estatal como factor de pacificação que esquece que as democracias em que vivemos usaram da violência não só para derrubar ditaduras nos seus países mas também para impor a ditadura sobre outros países – das democracias colonialistas europeias ao belicismo de uma democracia como a norte-americana. Trata-se, enfim, de uma história cor-de-rosa que esquece que o monopólio da violência permite às forças policiais do Estado agir uma e outra vez à margem da lei – apenas uma história cor-de-rosa da violência estatal nos permite esquecer diariamente o facto de a tortura no interior das prisões sobreviver ao fim dos presos políticos.
Em suma, a questão essencial não é saber quem é a favor ou contra a violência política, mas de que tipo, de que formas, de que modos de violência estamos a falar.
Vêm estas notas a propósito de um certo alvoroço que recentemente se intensificou a propósito da manifestação de 15 de Outubro, na qual muitos manifestantes ocuparam a escadaria da Assembleia da República, sem mortes e feridos a registar, com a excepção, talvez, de um meu amigo que, aproveitando este fim de Outono quente, resolveu insistir no chinelo e acabou ficar com unha encravada porque eu o pisei.
Mas estas notas poderiam igualmente aparecer aqui em resposta ao modo como muitos media tratam o problema da violência. Se há semanas atrás um jornalista se condoía com o sofrimento e a dor dos vidros partidos de uma montra de Londres, ontem um seu colega comprazia-se excitado com o assassinato bárbaro de um homem odioso como Kadhafi. Falemos então de violências e não de violência.

7 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

Podias ter falado do ovo!!!!

http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com/2011/10/que-raio-de-democracia-e-esta-que-treme.html

ó seu abominável das Neves disse...

incluindo abomináveis ataques como os de Hiroxima – que os Aliados conseguiram fazer contra a Alemanha de Hitler.

Ahn?

e ódespois admiram-se que ninguém leya jornales

Hiroxima...Alemanha de Hitler

se é comparar Dresden ou o Slaughterhouse five com o holocausto de radiação

há qualquer coisa que se perde

penso que é o fio à meada

mas se inté o Ribeiro Telles e o Miguel Mota escrevem alarvidades no Púbico Púbico pruque não as haberia de por em pontos nos i's

A violência urbana disse...

Que já foi maior, mas que regrediu em 37 anos de apatocracia é superior à violência do estado

O estado reprime ou tenta reprimir
mas é falho de phoder

Apenas nas sociedades aristocráticas de facto (e não nas aristocracias ditas democráticas) os homens não sentem a necessidade de se unirem para agir, porque são reprimidos em bloco

nas sociedades pseudo-dem's todos os cidadãos são independentes e fracos, não há nenhuma força que os obrigue a concorrerem para o bem comum

só o podem fazer pela sua vontade

e não se educa a vontade em sociedades demo-anarkas

capisce? nyet há gostinhos nyetos?

num fax mali (ou Chade)
de qualqwer modo tão sequinhus

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ó Seu Abominável das Neves,

convém ter em conta a pontuação: e é verdade que da guerra através da qual Hitler foi derrotado faz parte o bombardeamento de Hiroshima - ainda que Hitler já tivesse morrido e que o III Reich já tivesse capitulado.

Saudações cordiais

msp

Zuruspa disse...

Na televisäo finlandesa falava-se de violência, com jovens oriundos de todos (TODOS) os quadrantes políticos.

O "neofascista pouco disfarçado" só berrava que näo só a extrema-direita era violenta, na Inglaterra queimavam lojas, na Grécia queimavam carros, e isto eram exemplos da "violência de extrema-esquerda", e que deviam levar o mesmo tratamento que a "violência de extrema-direita" ocorrida meses antes na Noruega.

A moça da "esquerda moderada" interrompeu (o que um finlandês só faz em último caso) veementemente e com asco replicou que "como é possível comparar destruiçäo de carros com MORTES humanas? Agora a defesa da 'coisas' é equiparável à defesa de PESSOAS?". O facho calou-se, porque até os outros do "lado direito" ficaram perplexos com aquela sua comparaçäo idiota.

Violências. Diferentes, e logo a tratar de forma diferente.

Anónimo disse...

Olá, Vias de Facto. Apenas desejaria felicitar o blogue e os artigos bastante briosos que tive oportunidade de ler. Escreve-se muito bem e sobre coisas que convém escrever. Bem-haja.

Pontuando em pontos fatais disse...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro(,) Ó Seu Abominável das Neves,convém ter em conta a pontuação.

É verdade, que o bombardeamento de Hiroshima faz parte da guerra, através (através)da
em que?(qual) Hitler foi derrotado - ainda que Hitler(,) já tivesse morrido e que o III Reich já tivesse capitulado.

Saudações Virgulares

ósadasneves

a pontuação é um artificialismo cultural