19/02/14

A "comunidade de destino" — de "pendor redistributivo e socializante" — que João Rodrigues nos promete através do "espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social"

João Rodrigues consegue a proeza de, em dois parágrafos, condensar todos os principais sofismas intelectuais e metas políticas catastróficas que caracterizam o nacionalismo económico a que, para usarmos o seu vocabulário, poderemos chamar de "pendor redistributivo e socializante".

Começa por dar-nos a notícia de que Vítor Gaspar é adepto de uma UE de modelo hayekiano, tendente a constitucionalizar o exercício do governo da região pelos aparelhos e postos de comando e regulação do poder económico "emancipados". Daí, passa à conclusão de que a alternativa a esse modelo hayekiano é a recuperação das soberanis nacionais, dada a impossibilidade de alterar a "vontade política à escala europeia".

Desta impossibilidade decorre a necessidade da alternativa que propõe: "Só o espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social, configurando na reestruturação da dívida, na libertação desta tutela monetária ou no controlo de capitais pode derrotá-lo" —porque "a diferenciação económica, social, política ou cultural entre as unidades estatais obstaculiza acordos supranacionais no campo dos valores de pendor redistributivo e socializante. Estes são mais fáceis onde existe uma noção de comunidade de destino".

Ficamos assim a saber, entre outras, as seguintes coisas:

1. a transformação democrática da "vontade política à escala europeia" através da acção e da iniciativa dos cidadãos europeus é impossível, mas a sua transformação pelo "Estado estratega", uma vez recupeda a sua soberania, é possível, apesar da "diferenciação económica, social, política ou cultural" interna a cada um deles.

2. A "autodeterminação dos povos" equivale à "fusão" da questão social e da questão nacional, garantida pelo "Estado estratega" e pela plenitude dos seus poderes governantes, sendo o Estado o garante e o juiz supremo dos "valores de pendor redistributivo e socializante" da alternativa ao poder dos aparelhos de decisão do poder económico.

3. Para João Rodrigues o papel dos agentes da extensão da esfera pública que, numa perspectiva democrática, caberia ao governo dos cidadãos igualitária e autonomamente organizados, é atribuído a essa instância de síntese, representação e totalização hierárquica que são os agentes e responsáveis pela autoridade do Estado soberano, que, inevitavelmente, governarão reforçando o seu poder e as suas posições dirigentes na divisão do trabalho político, impondo políticamente a divisão que mais os "indispensabilize" e reforce do "outro" trabalho e da organização correspondente da actividade económica. É que, parafraseando uma notável fórmula de Marx, a extensão da esfera pública associada à liberdade e à responsabilidade dos cidadão é inversamente proporcional à sua colonização pelo Estado.

4. Que tudo isto conduza a que a Europa possa tornar-se um "campo de batalha", já não da rivalidade entre duas supeerpotências, mas das múltiplas rivalidades reanimadas das suas "independências nacionais", e que, na antecipação/prevenção dessa eventualidade, a militarização e os traços ditatoriais se acentuem em todas as suas regiões, é um preço menor a cujo pagamento a salvaguarda da "comunidade de destino" da nação autodeterminada não quererá decerto escusar-se.

6 comentários:

Libertário disse...

Quando se comemoram os 150 da Associação Internacional dos Trabalhadores que deu forma ao internacionalismo operário e a uma estratégia anti-capitalista à escala europeia, para não dizer mundial, vem a velha esquerda institucional recuperar o «nacionalismo» já que há muito deixou de lado o internacionalismo desde que se dedicou a criar partidos e sindicatos nacionais.

Hoje que as classes dominantes são ostensivamente «solidárias» (entre si) e «internacionalistas», chega pois a ser caricato, ou trágico, que sejam as classes dominadas a adoptar o «nacionalismo» que as irá derrotar de forma duradoura.

Talvez esteja na hora de olhar para a história e recuperar a memória da luta social nos dois últimos séculos...

Miguel Serras Pereira disse...

Nem mais, camarada Libetário, nem mais…

Abraço

msp

João Valente Aguiar disse...

Assino por baixo o excelente comentário do Libertário. Infelizmente poucos à esquerda mostram a mesma clarividência.

Pedro Viana disse...

A ideia de que as "classes dominantes são ostensivamente «solidárias» (entre si) e «internacionalistas»" está em contradição com a existência de conflitos, que não são poucos, que não têm na sua origem uma luta entre classes. O que se passa actualmente na Ucrânia é a prova mais evidente de tal. A solidariedade intra-classista tem interesse para os integrantes dessa classe, porque reforça a sua força perante outra classes, enquanto há recursos materiais em abundância suficiente para que a sua distribuição deixe satisfeitos todos os que pertencem à classe. Faltando estes…

O recrudescimento do nacionalismo é, no essencial, quer à Direita quer à Esquerda, uma resposta à crescente escassez de recursos, em particular, em quantidade suficiente para alimentarem a espiral "produtiva" Capitalista. Tanto uns como outros apenas pretendem salvar o sistema sócio-económico actual. Vão-se dar mal. Aliás, vamos todos dar-mo-nos muito mal…

Libertário disse...

Num curto comentário há sempre um grau elevado de simplificação, como compreende o Pedro Viana, no entanto reafirmo o que disse. Ao contrário de outras épocas onde predominava a conflitualidade, e a contradição, entre os interesses das diversas classes dominantes, hoje predomina a «solidariedade», ou se quiser, a comunhão de interesses. O que se passa na Ucrânia ou, se quiser, em Portugal de conflitos entre o PS e o PSD/CDS, ou entre o Pingo Doce e o Continente, são da ordem das contradições secundárias...

Ou seja, as classes dominantes e principalmente os seus sectores fundamentais dos EUA à Europa, da China à Rússia e Índia, do Brasil à Indonésia sabem aliar-se e actuar, sempre que necessário de mútuo acordo para preservar a Ordem reinante.
Daqui a umas décadas e principalmente por razões que podem ter a ver com a tal escassez de recursos, a crise ambiental ou uma crise económica descontrolada, pode ser que voltemos a ter uma predominância de conflitos graves dentro das classes dominantes.
Apesar de tudo, a nós, os plebleus, só nos resta o internacionalismo para mudar as sociedades e o mundo...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Libertário,

aprovo plenamente a conclusão.
Mas ressalvaria o seguinte ponto, que talvez mereça a tua concordância: a integração transnacional e/ou supranacional das oligarquias governantes ainda não atingiu o grau da unificação global. O que quer dizer que as oligarquias chinesa, euro-americana, russa, etc. continuam a desenvolver políticas de potência e a formar ou a tentar formar blocos hegemónicos. E isto pode dar origem, sobretudo se não substimarmos a estupidez ou o imediatismo ávido dos campos em presença, a conflitos graves. Mas, como é patente no caso da Ucrânia, só o internacionalismo assumido sem ambiguidades pode abrir uma via alternativa à que leva os "plebeus" que servem de soldados aos dois campos em contenda (o pró-russo e o dos herdeiros dos fascistas da época da Segunda Guerra Mundial e dos anos imediatamente anteriores) ao destno de carne para canhão de fracções oligárquicas rivais.

Abraço

msp