05/02/14

A EXCELÊNCIA DA AUSTERIDADE. SOBRE O DESENVOLVIMENTO E A CRISE DA INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA EM PORTUGAL


A excelência da austeridade
Sobre o desenvolvimento e a crise da investigação científica em Portugal

por José Neves 

Artigo publicado no Le monde diplomatiqueedição portuguesa, número de janeiro de 2014


Em 1974 doutoraram-se 87 indivíduos em Portugal e em 2012 doutoraram-se 2209, números que indicam o amplo processo de desenvolvimento do sistema científico português ao longo das últimas décadas. Mas os números são apenas uma parte da história. Foram igualmente alimentados por uma narrativa, a qual, por sua vez, deles também se foi nutrindo. E, se bem que plural e até contraditória, tal narrativa conferiu legitimidade político-social àquele processo de desenvolvimento, nomeadamente associando-o a dois desígnios maiores de que a ciência se fez parte: a consolidação de um regime democrático e o desenvolvimento da economia.


A Ciência da Democracia e do Desenvolvimento

Desde 1974, na senda do papel atribuído à ciência pela cultura política antifascista portuguesa – mas podíamos também dizer pela tradição iluminista em geral –, a ciência foi entendida como condição de democracia, inimiga de um obscurantismo de cujo passado teriam sido testemunha as elevadas taxas de analfabetismo da população e sua subordinação ao pastoreio clerical. Mais tarde, assistiríamos à indexação da ciência ao desenvolvimento da economia nacional. O rasto desta valorização económica da ciência pode ser encontrado, ele também, desde a tradição antifascista, ou mesmo a partir do interior do Estado Novo, mas foi a partir dos anos de 1990 que ela se intensificou.

Uma análise dirigida ao tempo longo e que parta de uma escala global sugere-nos que esta intensificação reflectiu o desenvolvimento em Portugal – no quadro da vaga liberal europeísta e pós-soviética e em resposta à resistência operária à disciplina fabril – daquilo que alguns autores têm chamado de “capitalismo cognitivo” ou, mais latamente, de “pós-fordismo”. Por sua vez, a partir de um olhar atento ao curto prazo, e também mais localizado, podemos dizer que a valorização económica da ciência igualmente deve a um desvio no curso da ideia de um Portugal europeu: com efeito, em inícios dos anos de 1990, ao Portugal cavaquista do alcatrão e betão contrapor-se-ia o lema guterrista da “paixão pela educação”, no seio da qual a ciência – à imagem da comunicação, com as futuras “auto-estradas do conhecimento” – viria a assumir um lugar importante.

À escala portuguesa, a tese que recomendava uma tal mobilização económica da ciência era relativamente simples: perdidas as colónias, e à falta de recursos naturais próprios, o país deveria enveredar por uma política de “qualificação da população”, tanto mais que os baixos salários dos operários e operárias do Vale do Ave ficariam sempre a dever à penúria que acompanhava o surto industrial de países como a China. Na senda global do desenvolvimento, a Portugal restava a via do famigerado “capital humano”.

Em suma, a educação em geral e a ciência em particular foram objecto de investimento por um regime democrático cioso de si, mas também constituíram uma aposta estratégica a nível da chamada economia nacional.


Excelência e Utilidade da Austeridade

Hoje, porém, está em curso uma mudança. E é já da crise do sistema – não do seu desenvolvimento – que estamos a falar. O prenúncio de cortes significativos nas bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento de 2013 e o reduzido número de contratos de Investigador FCT até agora outorgados pelo novo governo indiciam-no. Contudo, importa compreender que em jogo não está apenas um corte orçamental determinado num contexto de austeridade geral. E, tal como o aumento de financiamento ao longo das últimas décadas foi participado por uma dada narrativa, à crise de hoje assiste um discurso que se alimenta e nutre da austeridade. Os dois pilares fundamentais desse discurso são a “excelência” e a “utilidade”.

Este jargão da “excelência” e da “utilidade” não é inédito, mas agora parece tornar-se a pedra-de-toque do discurso de quem governa a ciência, no plano ministerial como a nível das próprias faculdades, bem convivendo com as políticas de subfinanciamento. O critério da excelência – que, sublinhe-se, exclui do sistema científico aqueles que o próprio sistema classifica com “muito bom” – legitima o aumento do desemprego científico. O critério da utilidade, por sua vez, permite ainda uma outra exclusão, a dos que se dedicam ao que se considera como “investigação fundamental”.

À secundarização desta, de há muito – talvez mesmo desde sempre – que subjaz uma política de controlo que faz imperar como factor de selecção do conhecimento a sua eventual utilidade para as práticas de governo e administração estatal da sociedade (por exemplo, uma investigação no domínio das ciências sociais e das humanidades deve promover a “coesão social”). Mas hoje, não apenas este critério de utilidade é reforçado, como ganha maior relevo uma ideia de utilidade de índole mais económica: com a hegemonia de ideologias liberais em que é o potencial de comercialização de uma actividade que assume a prioridade na condução da economia, o campo científico passa a ser valorizado, antes de mais, por poder permitir que uma mercadoria – incorporando ela mesma, ou o seu processo de produção, determinadas inovações científicas – resulte mais competitiva no espaço de comércio global.


Que fazer?

A resposta pode apenas surgir do aprofundamento de um debate colectivo que, em Portugal, os investigadores só agora começam a travar. Nesse debate há, porém, um risco que deverá ser evitado: santificar a história do desenvolvimento do sistema científico português. Bem sei que não é difícil projectar na figura de Mariano Gago todas as virtudes que não se encontram em Nuno Crato; afinal, o primeiro é o ministro do tempo do desenvolvimento do sistema científico e o segundo é o ministro da crise. A antinomia torna-se menos operacional, porém, se nos detemos mais demoradamente em torno de alguns dos problemas referidos anteriormente.

Em primeiro lugar, cabe perguntar até que ponto a identificação entre democracia e ciência, a que começámos por nos referir, já conteria o princípio de elitização em que hoje se funda o discurso da excelência. Com efeito, tal identificação não apenas tende a ignorar uma história de utilização da ciência pelos regimes ditatoriais, como a reduzir a política e a democracia ao universo de grupos sociais e de práticas culturais particulares. Precisamos, como tal, de afirmar que a educação ou a ciência não são, em si mesmo, favoráveis ou inconvenientes a uma ideia genérica de democracia.     

Em segundo lugar, cabe perguntar até que ponto a valorização económica da ciência, que a partir dos anos de 1990 levou a uma enfatização da aposta estratégica na formação de capital humano, conteria já a celebração da lei da comercialização que hoje justamente se critica. É que o desenvolvimento do sistema científico português assentou numa política de exploração laboral que tem sido por demasiadas vezes ignorada. Ainda não se criticava a subordinação da investigação científica aos interesses do mercado, como hoje bem se faz, e já os investigadores que se formava eram submetidos a relações de compra e venda – sem exclusão de mecanismos de vassalagem – da sua força de trabalho. O capital humano não é apenas a humanização do capital, é também a capitalização do humano; e uma história em que Mariano Gago pontue como o responsável pelo desenvolvimento do sistema científico português deverá também identificá-lo como um dos ministros que mais incrementou a precariedade e a perda de direitos fundamentais, como por exemplo o subsídio de desemprego.    

No debate que nós, investigadores, travaremos por estes dias, há, pois, dois vícios que deverão ser evitados: o elitismo de quem reivindica o “avanço” da ciência pressupondo como “atrasado” quem está voluntária ou involuntariamente excluído da ciência; e o utilitarismo de quem legitime o investimento na ciência secundarizando a utilidade ou a inutilidade de outras actividades. Se evitarmos estes vícios, nós, investigadores, podemos ser uma parte importante de um processo mais amplo de transformação do presente, sem o qual, aliás, não se vislumbra futuro para uma actividade científica compaginável com uma cultura económica democrática.



2 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Excelente reflexão, Zé. E que seria interessante prolongar com uma crítica radical das pretensões da "ciência política" (uma ciência da política no sentido forte) ou de qualquer forma de "política científica" (uma política cientificamente dcidida) que só poderá ser, porque a pressupõe, uma deslegitimação ideológica da ideia de democracia. Dessa crítica radical, nem o grande Marx sairia ileso, o que não é razão, todavia, para a não fazermos.

Abraço

miguel(sp)

Zé Neves disse...

miguel, não reveles a agenda escondida do artigo... grande abraço.

ps: este segundo semestre estou menos carregado e vamos visitar-te não tarda.