25/02/14

A Ucrânia e as certezas absolutas num tempo de incertezas (volume 2)

Toda a discussão política se torna no mínimo aborrecida quando esbarra numa doutrina. Alguns dos trejeitos presentes na discussão em torno da presença da extrema-direita na Ucrânia (que já abordei parcialmente aqui) não constituem nenhuma novidade e apenas têm de surpreendente a recorrência intemporal a uma fórmula gasta. Mas não deixa por isso de ser um bom motivo para revisitar certas formas de fazer e discutir política. Até porque, atrevo-me a dizer, podemos esperar debates semelhantes a propósito do que se poderá passar aqui no nosso quintal nos próximos anos (mesmo que seja inevitável reconhecer que tal não implica assumir os contornos ou a intensidade do que se vive na Ucrânia, obviamente).

Os sinais da ameaça autoritária são bens reais e recordam-nos constantemente que esta está mais perto de nós do que desejamos. “Extrema-direita” é, aliás, um termo que apenas dá parcialmente conta das formas dessa ameaça, como atesta o que acontece em países como Portugal. Além disso, alguns dos sinais desse autoritarismo sentam-se à mesa connosco e reclamam o nosso lado da barricada. Não que não estivessem lá antes, mas os tempos são outros e estamos em tempo de redefinição de posições num tabuleiro agitado. Uma das formas de nos começarmos a situar nele pode passar por perceber quem se nega ao debate e procura assumir, a todo o custo, o papel de guia daqueles que se movem em seu redor.

Por isso, antes de olhar mais concretamente para a Ucrânia e para o que sobre ela se tem dito, sublinhe-se o seguinte: não está em causa quem tem razão ou qual é a verdade no assunto em causa, mas a negação do próprio debate por um dos seus lados. Com a agravante de que esse enclausuramento do debate se dá em nome duma agenda política fechada e pré-determinada, cingida aos interesses particulares dum grupo político específico aparentemente saudoso da bipolaridade da guerra-fria. Acontece que nem o mundo é, hoje, tão bipolar quanto era no passado, nem as suas “rotinas” estão já definidas, permanecendo imprevisível e aberto, com diferentes sujeitos políticos a despontar a cada momento e em diferentes lugares, sem cessar. Há, em especial, uma crise (e, por isso, uma transformação) das formas de acção e intervenção política que não tem paralelo com nada do que sucedeu nesse período histórico. Mas já lá vamos.


Regressemos à Ucrânia. É conhecida a receita milenar de encaixar a realidade na teoria à martelada se esta se revela incapaz de descrevê-la ou de explicá-la com rigor. É sempre a realidade que está errada. Especialmente quando é contraditória e cheia de bifurcações. Sobre quem se atreve a questionar a uniformidade do que acontece no território banhado pelo Mar Negro, recaem, já sem pudor, todo o tipo de acusações que há muito ultrapassaram os suaves selos de “ingenuidade”, “fantasia”, “romantismo”: simpatia pelo nacionalismo; cegueira por recusar ver a presença e o peso da extrema-direita na Ucrânia; legitimação de crimes contra a humanidade (homicídios, intuitos genocidas, etc.), entre outros. O epíteto de “anti-comunista”, que por vezes é arremessado a esses detractores, esclarece ainda melhor uma parte do que temos pela frente. Para além do papel profético que tem implícito (ou explícito, pois já vi escrito, várias vezes e aparentemente sem consciência do ridículo, que ainda vamos todos gritar para que “eles” nos venham salvar quando “virmos que têm razão”), voltamos ao problema de restringir a acção e o pensamento políticos a uma doutrina - como se ser comunista implicasse a sujeição inevitável a uma só posição e não deixasse espaço para a divergência...

A política presa a um programa e guiada por uma só verdade (ou um conjunto de verdades combinadas e imutáveis) não dista muito do comportamento do fã de futebol fanático. Tanto num caso como noutro, a camisola que se veste facilmente passa a colete de forças quando nos deixamos ofuscar pelas suas cores e, então, o que começou como uma afinidade transforma-se rapidamente em devoção incondicional. Para este tipo de sujeito, não há tecnologia que o convença dum fora-de-jogo contra a própria equipa, da falta de um dos seus ou daquele golo do adversário que teve o azar de transpor a linha da baliza “apenas” em 50 cm. A verdade passa a ter uma só cor, a da nossa “equipa”, e aquilo que devemos defender é invariavelmente o que o nosso partido/ equipa/ grupo/ ideologia representa (seja isso feito em nome da unidade, da verdade, da pureza estratégica ou ideológica…). Basicamente, não somos nós que damos forma à camisola, mas sim a camisola que nos dá forma a nós – e é aí que se transforma em colete de forças. Não há como negar que é tudo mais fácil e confortável quando temos uma “verdade”, uma “doutrina”, um “líder” ou um “colectivo” (seja ele um partido, o clube de futebol ou a associação do bairro) a guiar-nos e a tomar as decisões por nós. Num mundo caótico, tem um fim terapêutico.

Para regressar às acusações que têm crescido nos últimos dias, e para começar por uma suposta simpatia pelo nacionalismo de quem se recusa a entrar na gritaria, a minha preguiça, que não se dá bem com o absurdo, diz para não dar muita atenção. Não quero crer, só pela gratuitidade da acusação, que esta seja fruto da desonestidade ou da manipulação consciente. Parece derivar antes de certos hábitos mais coincidentes com rituais de interpretação cerimoniosos e rígidos do que com uma certa abertura de espírito carnavalesco (duas formas bem antagónicas de lidar com a política). Ainda por cima, a acusação de “simpatia nacionalista”, para além do maniqueísmo em que assenta, tem a curiosidade paradoxal de vir de um campo político que defende, com cada vez mais vigor, o regresso à soberania nacional como receita para superar a catástrofe em curso.

Quanto à acusação de incapacidade de ver a presença e o peso da extrema-direita, apesar de se poder assumir que corresponde ao mesmo tipo de hábito, põe-nos perante algo eventualmente mais complexo. Desde logo, porque é uma acusação que se recusa a ver que não está em causa a presença da extrema-direita na Praça da Independência ou, mais amplamente, no cenário político ucraniano. Essa presença é evidente para qualquer pessoa. E essa evidência já tem alguns anos (ao ponto de andarem a circular pelo facebook, nestes últimos dias, fotos com meses ou até anos de vida com a indicação de terem sido tiradas hoje ou anteontem). São igualmente evidentes os riscos dessa presença para qualquer ser com o mínimo de juízo. O que está em causa não é, portanto, a negação da presença da extrema-direita no país – e até da sua ameaça – mas sim afirmação de uma forma de pensar e fazer política. Neste caso, a de uma forma de pensar e fazer política que recusa definir-se somente em função duma ameaça, ou seja, que recusa constituir-se a partir duma função reactiva. É claro que as ameaças não devem ser menosprezadas, mas há diversas formas de lhes responder. No caso da Ucrânia, quer se queira quer não, com tantos interesses e vontades em jogo, essas múltiplas respostas possíveis são ainda mais visíveis (e imprevisíveis). Mas, neste caso, podemos cingir-nos a duas possíveis respostas formuladas em termos abstractos: a que reage defensivamente, fazendo soar o alarme da catástrofe e levantando uma poeira imensa (certeira ou não) que nos impede de ver qualquer plano que procure ir para lá dum presente imediato; e a que recusa o fatalismo a que alguns se apressam a condenar a história, procurando construir algo sobre os escombros e, dessa forma, procurando abrir o seu próprio caminho. Ambas as respostas têm riscos, nomeadamente o de se tornarem reféns de interesses e condições exteriores. Mas os riscos são diferentes consoante as respostas e a política é, muitas vezes, a escolha dos riscos que queremos enfrentar. Dito de outra forma, os riscos que escolhemos costumam dizer muito sobre o que pretendemos e sobre o que somos. E quanto mais apressadamente renegamos uns riscos em função de outros, mais reveladora se torna essa escolha.

Olhando para a Ucrânia, vemos diversos níveis em jogo, nunca totalmente dissociáveis entre si: partindo dum plano internacional, a questão geopolítica, onde podemos assumir (tal não é a escala e os actores envolvidos) que se disputa um episódio determinante duma ordem global em curso; num plano nacional, as batalhas pelo poder dos actores políticos institucionais “convencionais” e pela forma que o regime assumirá, sem esquecer as consequências para a definição territorial do país que essas movimentações podem ter (sem que seja sequer preciso chegar à guerra civil); finalmente, a um nível popular, em certa medida alheado desses factores de ordem maior e sem uma agenda própria ou claramente definida, há, então, uma imensa multidão – multidão essa onde habita a ameaça da extrema-direita que, além das ruas, procura cavalgar, claro está, a própria (des)ordem institucional para nela se fixar. É esta multidão que nos interessa, ou que pelo menos me interessa a mim – o que não implica ignorar tudo o resto, parece escusado dizer. Interessa-me não só por eu me ver como parte dessa multidão e por encontrar nela as possibilidades políticas que me atraem, mas, também, porque nada do que eu possa fazer terá grande efeito sobre os interesses obscursos das potências que chocam lá em cima, noutro plano a que não consigo chegar sozinho.

Em especial nos últimos dias, esta multidão desapareceu completamente, diluída que foi nesse sujeito inequivocamente ameaçador que é a extrema-direita. Manifestações que surgiram e cresceram sem agendas fechadas, ecoando um enorme descontentamento que não tem fronteiras e percorre o mundo inteiro, têm sido abafadas pelo ruído do monstro. A primeira vitória este já conseguiu: saltar para a ribalta e tornar-se a face mais visível duma multidão inteira. A sua presença é suficiente para que tudo o resto perca importância, reduzindo-o a menos do que nada. Nos média"tradicionais" ou no facebook, há um caos imenso que se afoga na homogeneidade retratada em alguns textos e fotografias. Estes, mesmo quando não têm a pretensão de dar conta de mais do que apenas uma parte do que ali sucede, são rapidamente tomados pelo todo, servindo para alimentar a narrativa em causa.

Rejeitar as diferentes formas políticas presentes desde o início nas manifestações populares é entregar essa multidão ao nazis que tanto se teme. Ser levado a jogar o jogo das potências imperialistas, abandonando aqueles que são sempre os últimos a ter alguma coisa a dizer, tem consequências bem mais fatais. Até porque incorre nesse paradoxo de em nome dos “de baixo” estar apenas a reproduzir o discurso e os interesses dos de cima (ou seja, das elites: os imperialistas, autoritários ou, por essa via e em sintonia com essa interpretação, os fascistas). Em suma, abandonar as ruas é entregá-las de bandeja aos nossos maiores inimigos e não me parece um acaso, como sublinhei, que, nos últimos dias, a categoria mais difusa de “povo” tenha sido ofuscada, quase por completo, pelo protagonismo concedido pelos média à extrema-direita e às batalhas geopolíticas. Num texto recente que descreve a presença da extrema-direita no “Euromaidan”, uma activista refere que “progressive activists have «to fight on two fronts, against a regime that supports harmful police violence … and also against extreme nationalism, which is recognized and legitimate on Maidan»”. Tirar estes ditos “progressive activists” (seja lá o que isso for) do retrato e desviar toda a atenção para a extrema-direita com tanto em aberto e a acontecer, só torna, quem opta por fazê-lo, em algo mais a combater por esses mesmos activistas, condenados que ficam à invisibilidade ou entregues que são à condição de meros peões.

É, portanto, por esta recusa em fazer a política que serve as elites e que renega as pessoas ao papel que sempre lhes é concedido – o de meros espectadores, entregues a um destino que não controlam – que qualquer coisa que destoe do coro alarmista, e que pretenda chamar a atenção para a quantidade de pessoas e acontecimentos que agem nesse terreno efervescente, é acusado de “legitimar crimes e criminosos”, etc. etc. etc.. 

Em síntese, para arrumar mais ou menos algumas coisas ditas:
- não está em causa a presença da extrema-direita, nem o seu carácter ameaçador;
- está sim em causa a necessidade de não recusar um debate, sem dúvida urgente, até para evitar fechar as possibilidades perante um futuro que permanece aberto e imprevisível;
- está em causa, ainda, a necessidade de não incorrer no erro de ignorar (por estratégia, teimosia, arrogância ou miopia) a multiplicidade de situações que ali ocorrem esmagando-a com uma generalização (e com ela todos os seus intervenientes, em particular os que nos devem preocupar: as pessoas anónimas, como eu e como tu);
- também não está em causa a crença em qualquer final feliz (como supõe o final deste texto, de resto interessante), antes pelo contrário, já que qualquer dos finais mais prováveis parece bastante infeliz.

- está em causa, enfim, e para não me estender mais, não abandonar de partida a construção dum projecto político em função de fórmulas gastas e ultrapassadas. Abandonar todos os combates que há a travar a agendas que nos são alheias, é o primeiro passo para assumir a derrota. 

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