Toda a discussão política se torna no mínimo aborrecida
quando esbarra numa doutrina. Alguns dos trejeitos presentes na discussão em
torno da presença da extrema-direita na Ucrânia (que já abordei parcialmente
aqui) não constituem nenhuma novidade e apenas têm de surpreendente a
recorrência intemporal a uma fórmula gasta. Mas não deixa por isso de ser um
bom motivo para revisitar certas formas de fazer e discutir política. Até
porque, atrevo-me a dizer, podemos esperar debates semelhantes a propósito do
que se poderá passar aqui no nosso quintal nos próximos anos (mesmo que seja inevitável reconhecer que tal não implica assumir os contornos ou a intensidade do que se vive na Ucrânia, obviamente).
Os sinais da ameaça autoritária são bens reais e
recordam-nos constantemente que esta está mais perto de nós do que desejamos. “Extrema-direita”
é, aliás, um termo que apenas dá parcialmente conta das formas dessa ameaça,
como atesta o que acontece em países como Portugal. Além disso, alguns dos
sinais desse autoritarismo sentam-se à mesa connosco e reclamam o nosso lado da
barricada. Não que não estivessem lá antes, mas os tempos são outros e estamos
em tempo de redefinição de posições num tabuleiro agitado. Uma das formas de nos
começarmos a situar nele pode passar por perceber quem se nega ao debate e
procura assumir, a todo o custo, o papel de guia daqueles que se movem em seu
redor.
Por isso, antes de olhar mais concretamente para a Ucrânia e
para o que sobre ela se tem dito, sublinhe-se o seguinte: não está em causa
quem tem razão ou qual é a verdade no assunto em causa, mas a negação do
próprio debate por um dos seus lados. Com a agravante de que esse enclausuramento do debate se dá em
nome duma agenda política fechada e pré-determinada, cingida aos interesses
particulares dum grupo político específico aparentemente saudoso da bipolaridade
da guerra-fria. Acontece que nem o mundo é, hoje, tão bipolar quanto era no
passado, nem as suas “rotinas” estão já definidas, permanecendo imprevisível e
aberto, com diferentes sujeitos políticos a despontar a cada momento e em
diferentes lugares, sem cessar. Há, em especial, uma crise (e, por isso, uma
transformação) das formas de acção e intervenção política que não tem paralelo
com nada do que sucedeu nesse período histórico. Mas já lá vamos.
Regressemos à Ucrânia. É conhecida a receita milenar de
encaixar a realidade na teoria à martelada se esta se revela
incapaz de descrevê-la ou de explicá-la com rigor. É sempre a realidade que
está errada. Especialmente quando é contraditória e cheia de bifurcações. Sobre
quem se atreve a questionar a uniformidade do que acontece no território
banhado pelo Mar Negro, recaem, já sem pudor, todo o tipo de acusações que há
muito ultrapassaram os suaves selos de “ingenuidade”, “fantasia”, “romantismo”:
simpatia pelo nacionalismo; cegueira por recusar ver a presença e o peso da
extrema-direita na Ucrânia; legitimação de crimes contra a humanidade
(homicídios, intuitos genocidas, etc.), entre outros. O epíteto de “anti-comunista”, que por vezes é arremessado a esses detractores, esclarece ainda melhor uma
parte do que temos pela frente. Para além do papel profético que tem implícito (ou
explícito, pois já vi escrito, várias vezes e aparentemente sem consciência do
ridículo, que ainda vamos todos gritar para que “eles” nos venham salvar quando
“virmos que têm razão”), voltamos ao problema de restringir a acção e o
pensamento políticos a uma doutrina - como se ser comunista implicasse a sujeição inevitável a uma só posição e não deixasse espaço para a divergência...
A política presa a um programa e guiada por uma só verdade
(ou um conjunto de verdades combinadas e imutáveis) não dista muito do
comportamento do fã de futebol fanático. Tanto num caso como noutro, a camisola
que se veste facilmente passa a colete de forças quando nos deixamos ofuscar
pelas suas cores e, então, o que começou como uma afinidade transforma-se
rapidamente em devoção incondicional. Para este tipo de sujeito, não há tecnologia
que o convença dum fora-de-jogo contra a própria equipa, da falta de um dos
seus ou daquele golo do adversário que teve o azar de transpor a linha da
baliza “apenas” em 50 cm. A verdade passa a ter uma só cor, a da nossa “equipa”,
e aquilo que devemos defender é invariavelmente o que o nosso partido/ equipa/ grupo/
ideologia representa (seja isso feito em nome da unidade, da verdade, da pureza
estratégica ou ideológica…). Basicamente, não somos nós que damos forma à camisola,
mas sim a camisola que nos dá forma a nós – e é aí que se transforma em colete
de forças. Não há como negar que é tudo
mais fácil e confortável quando temos uma “verdade”, uma “doutrina”, um “líder”
ou um “colectivo” (seja ele um partido, o clube de futebol ou a associação do
bairro) a guiar-nos e a tomar as decisões por nós. Num mundo caótico, tem um fim
terapêutico.
Para regressar às acusações que têm crescido nos últimos dias,
e para começar por uma suposta simpatia pelo nacionalismo de quem se recusa a
entrar na gritaria, a minha preguiça, que não se dá bem com o absurdo, diz para
não dar muita atenção. Não quero crer, só pela gratuitidade da acusação, que esta
seja fruto da desonestidade ou da manipulação consciente. Parece derivar antes
de certos hábitos mais coincidentes com rituais de interpretação cerimoniosos e
rígidos do que com uma certa abertura de espírito carnavalesco (duas formas bem
antagónicas de lidar com a política). Ainda por cima, a acusação de “simpatia
nacionalista”, para além do maniqueísmo em que assenta, tem a curiosidade paradoxal
de vir de um campo político que defende, com cada vez mais vigor, o regresso à
soberania nacional como receita para superar a catástrofe em curso.
Quanto à acusação de incapacidade de ver a presença e o peso
da extrema-direita, apesar de se poder assumir que corresponde ao mesmo tipo de
hábito, põe-nos perante algo eventualmente mais complexo. Desde logo, porque é
uma acusação que se recusa a ver que não está em causa a presença da
extrema-direita na Praça da Independência ou, mais amplamente, no cenário
político ucraniano. Essa presença é evidente para qualquer pessoa. E essa
evidência já tem alguns anos (ao ponto de andarem a circular pelo facebook,
nestes últimos dias, fotos com meses ou até anos de vida com a indicação de
terem sido tiradas hoje ou anteontem). São igualmente evidentes os riscos dessa
presença para qualquer ser com o mínimo de juízo. O que está em causa não é, portanto, a negação da presença da
extrema-direita no país – e até da sua ameaça – mas sim afirmação de uma forma
de pensar e fazer política. Neste caso, a de uma forma de pensar e fazer política
que recusa definir-se somente em função duma ameaça, ou seja, que recusa constituir-se
a partir duma função reactiva. É claro que as ameaças não devem ser
menosprezadas, mas há diversas formas de lhes responder. No caso da Ucrânia,
quer se queira quer não, com tantos interesses e vontades em jogo, essas
múltiplas respostas possíveis são ainda mais visíveis (e imprevisíveis). Mas,
neste caso, podemos cingir-nos a duas possíveis respostas formuladas em termos
abstractos: a que reage defensivamente, fazendo soar o alarme da catástrofe e
levantando uma poeira imensa (certeira ou não) que nos impede de ver qualquer
plano que procure ir para lá dum presente imediato; e a que recusa o fatalismo
a que alguns se apressam a condenar a história, procurando construir algo sobre
os escombros e, dessa forma, procurando abrir o seu próprio caminho. Ambas as
respostas têm riscos, nomeadamente o de se tornarem reféns de interesses e
condições exteriores. Mas os riscos são diferentes consoante as respostas e a
política é, muitas vezes, a escolha dos riscos que queremos enfrentar. Dito de
outra forma, os riscos que escolhemos costumam dizer muito sobre o que pretendemos
e sobre o que somos. E quanto mais apressadamente renegamos uns riscos em
função de outros, mais reveladora se torna essa escolha.
Olhando para a Ucrânia, vemos diversos níveis em jogo, nunca
totalmente dissociáveis entre si: partindo dum plano internacional, a questão geopolítica,
onde podemos assumir (tal não é a escala e os actores envolvidos) que se
disputa um episódio determinante duma ordem global em curso; num plano nacional,
as batalhas pelo poder dos actores políticos institucionais “convencionais” e
pela forma que o regime assumirá, sem esquecer as consequências para a
definição territorial do país que essas movimentações podem ter (sem que seja
sequer preciso chegar à guerra civil); finalmente, a um nível popular, em certa
medida alheado desses factores de ordem maior e sem uma agenda própria ou
claramente definida, há, então, uma imensa multidão – multidão essa onde habita
a ameaça da extrema-direita que, além das ruas, procura cavalgar, claro está, a
própria (des)ordem institucional para nela se fixar. É esta multidão que nos
interessa, ou que pelo menos me interessa a mim – o que não implica ignorar
tudo o resto, parece escusado dizer. Interessa-me não só por eu me ver como
parte dessa multidão e por encontrar nela as possibilidades políticas que me
atraem, mas, também, porque nada do que eu possa fazer terá grande efeito sobre
os interesses obscursos das potências que chocam lá em cima, noutro plano a que
não consigo chegar sozinho.
Em especial nos últimos dias, esta multidão desapareceu
completamente, diluída que foi nesse sujeito inequivocamente ameaçador que é a
extrema-direita. Manifestações que surgiram e cresceram sem agendas fechadas,
ecoando um enorme descontentamento que não tem fronteiras e percorre o mundo
inteiro, têm sido abafadas pelo ruído do monstro. A primeira vitória este já
conseguiu: saltar para a ribalta e tornar-se a face mais visível duma multidão
inteira. A sua presença é suficiente para que tudo o resto perca importância,
reduzindo-o a menos do que nada. Nos média"tradicionais" ou no facebook, há um
caos imenso que se afoga na homogeneidade retratada em alguns textos e fotografias.
Estes, mesmo quando não têm a pretensão de dar conta de mais do que apenas uma parte do que
ali sucede, são rapidamente tomados pelo todo, servindo para alimentar a
narrativa em causa.
Rejeitar as diferentes formas políticas presentes desde o
início nas manifestações populares é entregar essa multidão ao nazis que tanto
se teme. Ser levado a jogar o jogo das potências imperialistas, abandonando
aqueles que são sempre os últimos a ter alguma coisa a dizer, tem consequências
bem mais fatais. Até porque incorre nesse paradoxo de em nome dos “de baixo”
estar apenas a reproduzir o discurso e os interesses dos de cima (ou seja, das
elites: os imperialistas, autoritários ou, por essa via e em sintonia com essa
interpretação, os fascistas). Em suma, abandonar as ruas é entregá-las de
bandeja aos nossos maiores inimigos e não me parece um acaso, como sublinhei, que,
nos últimos dias, a categoria mais difusa de “povo” tenha sido ofuscada, quase
por completo, pelo protagonismo concedido pelos média à extrema-direita e às
batalhas geopolíticas. Num texto recente que descreve a presença da extrema-direita no “Euromaidan”, uma
activista refere que “progressive activists have «to fight on two fronts,
against a regime that supports harmful police violence … and also against
extreme nationalism, which is recognized and legitimate on Maidan»”. Tirar
estes ditos “progressive activists” (seja lá o que isso for) do retrato e desviar toda a atenção para a
extrema-direita com tanto em aberto e a acontecer, só torna, quem opta por fazê-lo, em algo
mais a combater por esses mesmos activistas, condenados que ficam à
invisibilidade ou entregues que são à condição de meros peões.
É, portanto, por esta recusa em fazer a política que serve
as elites e que renega as pessoas ao papel que sempre lhes é concedido – o de
meros espectadores, entregues a um destino que não controlam – que qualquer
coisa que destoe do coro alarmista, e que pretenda chamar a atenção para a
quantidade de pessoas e acontecimentos que agem nesse terreno efervescente, é
acusado de “legitimar crimes e criminosos”, etc. etc. etc..
Em síntese, para arrumar mais ou menos algumas coisas ditas:
- não está em causa a presença da extrema-direita, nem o seu
carácter ameaçador;
- está sim em causa a necessidade de não recusar um debate,
sem dúvida urgente, até para evitar fechar as possibilidades perante um futuro que
permanece aberto e imprevisível;
- está em causa, ainda, a necessidade de não incorrer no
erro de ignorar (por estratégia, teimosia, arrogância ou miopia) a
multiplicidade de situações que ali ocorrem esmagando-a com uma generalização
(e com ela todos os seus intervenientes, em particular os que nos devem preocupar:
as pessoas anónimas, como eu e como tu);
- também não está em causa a crença em qualquer final feliz
(como supõe o final deste texto, de resto interessante), antes pelo contrário, já
que qualquer dos finais mais prováveis parece bastante infeliz.
- está em causa, enfim, e para não me estender mais, não abandonar
de partida a construção dum projecto político em função de fórmulas gastas e
ultrapassadas. Abandonar todos os combates que há a travar a agendas que nos são
alheias, é o primeiro passo para assumir a derrota.
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