A excelência da austeridade
Sobre o desenvolvimento e a crise da investigação científica em Portugal
por José Neves
Artigo publicado no
Le monde diplomatique – edição portuguesa, número de janeiro de 2014
Em 1974
doutoraram-se 87 indivíduos em Portugal e em 2012 doutoraram-se 2209, números
que indicam o amplo processo de desenvolvimento do sistema científico português
ao longo das últimas décadas. Mas os números são apenas uma parte da história. Foram igualmente alimentados
por uma narrativa, a qual, por sua vez, deles também se foi nutrindo. E, se bem
que plural e até contraditória, tal narrativa conferiu legitimidade
político-social àquele processo de desenvolvimento, nomeadamente associando-o a
dois desígnios maiores de que a ciência se fez parte: a consolidação de um
regime democrático e o desenvolvimento da economia.
A Ciência da Democracia e do
Desenvolvimento
Desde 1974, na
senda do papel atribuído à ciência pela cultura política antifascista
portuguesa – mas podíamos também dizer pela tradição iluminista em geral –, a
ciência foi entendida como condição de democracia, inimiga de um obscurantismo
de cujo passado teriam sido testemunha as elevadas taxas de analfabetismo da
população e sua subordinação ao pastoreio clerical. Mais tarde, assistiríamos à
indexação da ciência ao desenvolvimento da economia nacional. O rasto desta
valorização económica da ciência pode ser encontrado, ele também, desde a tradição
antifascista, ou mesmo a partir do interior do Estado Novo, mas foi a partir
dos anos de 1990 que ela se intensificou.
Uma análise
dirigida ao tempo longo e que parta de uma escala global sugere-nos que esta
intensificação reflectiu o desenvolvimento em Portugal – no quadro da vaga liberal
europeísta e pós-soviética e em resposta à resistência operária à disciplina
fabril – daquilo que alguns autores têm chamado de “capitalismo cognitivo” ou,
mais latamente, de “pós-fordismo”. Por
sua vez, a partir de um olhar atento ao curto prazo, e também mais localizado,
podemos dizer que a valorização económica da ciência igualmente deve a um desvio
no curso da ideia de um Portugal europeu: com efeito, em inícios dos anos de
1990, ao Portugal cavaquista do alcatrão e betão contrapor-se-ia o lema
guterrista da “paixão pela educação”, no seio da qual a ciência – à imagem da
comunicação, com as futuras “auto-estradas do conhecimento” – viria a assumir
um lugar importante.
À escala
portuguesa, a tese que recomendava uma tal mobilização económica da ciência era
relativamente simples: perdidas as colónias, e à falta de recursos naturais
próprios, o país deveria enveredar por uma política de “qualificação da
população”, tanto mais que os baixos salários dos operários e operárias do Vale
do Ave ficariam sempre a dever à penúria que acompanhava o surto industrial de
países como a China. Na senda global do desenvolvimento, a Portugal restava a
via do famigerado “capital humano”.
Em suma, a educação
em geral e a ciência em particular foram objecto de investimento por um regime
democrático cioso de si, mas também constituíram uma aposta estratégica a nível
da chamada economia nacional.
Excelência e Utilidade da
Austeridade
Hoje, porém, está
em curso uma mudança. E é já da crise do sistema – não do seu desenvolvimento –
que estamos a falar. O prenúncio de cortes significativos nas bolsas de
doutoramento e de pós-doutoramento de 2013 e o reduzido número de contratos de
Investigador FCT até agora outorgados pelo novo governo indiciam-no. Contudo,
importa compreender que em jogo não está apenas um corte orçamental determinado
num contexto de austeridade geral. E, tal como o aumento de financiamento ao
longo das últimas décadas foi participado por uma dada narrativa, à crise de
hoje assiste um discurso que se alimenta e nutre da austeridade. Os dois
pilares fundamentais desse discurso são a “excelência” e a “utilidade”.
Este jargão da
“excelência” e da “utilidade” não é inédito, mas agora parece tornar-se a
pedra-de-toque do discurso de quem governa a ciência, no plano ministerial como
a nível das próprias faculdades, bem convivendo com as políticas de subfinanciamento.
O critério da excelência – que, sublinhe-se, exclui do sistema científico aqueles
que o próprio sistema classifica com “muito bom” – legitima o aumento do
desemprego científico. O critério da utilidade, por sua vez, permite ainda uma
outra exclusão, a dos que se dedicam ao que se considera como “investigação
fundamental”.
À secundarização
desta, de há muito – talvez mesmo desde sempre – que subjaz uma política de
controlo que faz imperar como factor de selecção do conhecimento a sua eventual
utilidade para as práticas de governo e administração estatal da sociedade (por
exemplo, uma investigação no domínio das ciências sociais e das humanidades
deve promover a “coesão social”). Mas hoje, não apenas este critério de
utilidade é reforçado, como ganha maior relevo uma ideia de utilidade de índole
mais económica: com a hegemonia de ideologias liberais em que é o potencial de
comercialização de uma actividade que assume a prioridade na condução da economia,
o campo científico passa a ser valorizado, antes de mais, por poder permitir
que uma mercadoria – incorporando ela mesma, ou o seu processo de produção,
determinadas inovações científicas – resulte mais competitiva no espaço de
comércio global.
Que fazer?
A resposta pode
apenas surgir do aprofundamento de um debate colectivo que, em Portugal, os
investigadores só agora começam a travar. Nesse debate há, porém, um risco que deverá
ser evitado: santificar a história do desenvolvimento do sistema científico
português. Bem sei que não é difícil projectar na figura de Mariano Gago todas
as virtudes que não se encontram em Nuno Crato; afinal, o primeiro é o ministro
do tempo do desenvolvimento do sistema científico e o segundo é o ministro da
crise. A antinomia torna-se menos operacional, porém, se nos detemos mais
demoradamente em torno de alguns dos problemas referidos anteriormente.
Em primeiro lugar,
cabe perguntar até que ponto a identificação entre democracia e ciência, a que
começámos por nos referir, já conteria o princípio de elitização em que hoje se
funda o discurso da excelência. Com efeito, tal identificação não apenas tende
a ignorar uma história de utilização da ciência pelos regimes ditatoriais, como
a reduzir a política e a democracia ao universo de grupos sociais e de práticas
culturais particulares. Precisamos, como tal, de afirmar que a educação ou a
ciência não são, em si mesmo, favoráveis ou inconvenientes a uma ideia genérica
de democracia.
Em segundo lugar,
cabe perguntar até que ponto a valorização económica da ciência, que a partir
dos anos de 1990 levou a uma enfatização da aposta estratégica na formação de
capital humano, conteria já a celebração da lei da comercialização que hoje justamente
se critica. É que o desenvolvimento do sistema científico português assentou
numa política de exploração laboral que tem sido por demasiadas vezes ignorada.
Ainda não se criticava a subordinação da investigação científica aos interesses
do mercado, como hoje bem se faz, e já os investigadores que se formava eram
submetidos a relações de compra e venda – sem exclusão de mecanismos de
vassalagem – da sua força de trabalho. O capital humano não é apenas a
humanização do capital, é também a capitalização do humano; e uma história em
que Mariano Gago pontue como o responsável pelo desenvolvimento do sistema
científico português deverá também identificá-lo como um dos ministros que mais
incrementou a precariedade e a perda de direitos fundamentais, como por exemplo
o subsídio de desemprego.
No debate que nós,
investigadores, travaremos por estes dias, há, pois, dois vícios que deverão
ser evitados: o elitismo de quem reivindica o “avanço” da ciência pressupondo
como “atrasado” quem está voluntária ou involuntariamente excluído da ciência;
e o utilitarismo de quem legitime o investimento na ciência secundarizando a
utilidade ou a inutilidade de outras actividades. Se evitarmos estes
vícios, nós, investigadores, podemos ser uma parte importante de um processo
mais amplo de transformação do presente, sem o qual, aliás, não se vislumbra
futuro para uma actividade científica compaginável com uma cultura económica
democrática.
2 comentários:
Excelente reflexão, Zé. E que seria interessante prolongar com uma crítica radical das pretensões da "ciência política" (uma ciência da política no sentido forte) ou de qualquer forma de "política científica" (uma política cientificamente dcidida) que só poderá ser, porque a pressupõe, uma deslegitimação ideológica da ideia de democracia. Dessa crítica radical, nem o grande Marx sairia ileso, o que não é razão, todavia, para a não fazermos.
Abraço
miguel(sp)
miguel, não reveles a agenda escondida do artigo... grande abraço.
ps: este segundo semestre estou menos carregado e vamos visitar-te não tarda.
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