18/10/11

Aproveitar o momento

Mantenho o que escrevi, e que o Miguel Serras Pereira aqui reproduz. Uma greve geral clássica não conseguirá atingir qualquer um dos objectivos que a animam. A não ser que seja marcada para coincidir com o dia da votação na generalidade do Orçamento do Estado para 2012, permitindo a presença daqueles que ainda possuem um emprego na acção de protesto convocada pela plataforma organizadora do 15 de Outubro para defronte da Assembleia da República (AR). É preciso tornar bem claro que a maioria dos que ali se sentam mentiu para lá chegar, perdendo no processo qualquer legitimidade para se reclamarem nossos representantes. Obviamente, a maior vitória que se poderia conseguir nesse dia seria a não aprovação da proposta de Orçamento do Estado para 2012. No entanto, já seria simbolicamente muito importante se os deputados dos partidos de Esquerda com assento na AR, depois das intervenções finais e antes da votação propriamente dita, se levantassem e saíssem da AR, juntando-se aos manifestantes no exterior na denúncia da farsa em que se tornou o nosso sistema político. Infelizmente, não tenho grande esperança em tal desfecho. A acontecer, não tenham dúvidas que assustaria seriamente a oligarquia no poder. Pois esta precisa da válvula de escape que constitui a presença desses partidos na AR. Em particular, seria um óptima ocasião para o BE se distinguir do PCP, o que lhe permitiria tornar-se num dos pólos aglutinadores do descontentamento transversal a toda sociedade para com o actual sistema político. E o BE bem precisa de rapidamente encontrar uma bandeira mobilizadora antes que, de derrota em derrota, se torne irrelevante.

Apesar da grande mobilização no dia 15 de Outubro, uma alteração substancial do sistema político, em particular na direcção duma democracia mais participativa, requer um consenso social mais amplo. Ora, a grande maioria da população é intrinsecamente conservadora, e nunca apoiará uma mudança radical do sistema político sem antes rejeitar visceralmente o actual. Realço o visceralmente. Na ausência de prova evidente que tal mudança os beneficiará, o que se aufigura difícil dada a incerteza inerente a um processo cujo desfecho não se quer pré-formatado mas sim resultado dum processo profundamente democrático, as pessoas só tomarão partido pela mudança se emocionalmente lhes fôr impossível continuar a apoiar o actual sistema político. Portanto, é imprescindível que como parte duma estratégia para a mudança radical, o actual sistema político seja denunciado, e, por arrastamento, descredibilizado. Tal tem de ser feito através duma narrativa que seja entendida pela maioria da população, e com capacidade para se impôr transversalmente na sociedade, apelando a sentimentos como a indignação perante a mentira, a exploração ou a crueldade inerentes aos sistemas político e sócio-económico vigentes. Discordo portanto do que o Miguel Madeira aqui defendeu. O conceito de indignado permite criar um movimento social abrangente, incluindo pessoas que pelas mais diversas razões não se envolveriam caso tal movimento se definisse politicamente de forma explícita, deixando que lhe colassem o rótulo de extrema-esquerda. Tendo em conta o que acabei de defender, acho que seria muito importante aproveitar o actual momento político para desgastar ainda mais a credibilidade do actual primeiro-ministro, e indirectamente o sistema politico vigente, relembrando constantemente que Pedro Passos Coelho mentiu inúmeras vezes antes e durante a campanha eleitoral, tendo por isso perdido qualquer legitimidade política para governar. A estratégia é simples, mas precisaria de coordenação a nível nacional: sempre que o actual primeiro-ministro aparecesse publicamente, teria à sua espera manifestantes com uma única palavra de ordem - mentiroso! Esta estratégia desgastaria profundamente a base social de apoio do actual governo, como se pode constatar pelas declarações de pessoas que se assumem como simpatizantes dos partidos actualmente no governo. Um exemplo é Pedro Marques Lopes. Aliás, se puderem ouçam a edição do programa Bloco Central que foi para o ar na TSF no sábado passado, onde Pedro Marques Lopes e Pedro Adão e Silva comentaram a declaração que Pedro Passos Coelho fez na última quinta-feira. Poucas vezes ouvi um ataque tão violento a alguém por parte de comentadores politicos, ainda para mais vindo de pessoas que se situam no espaço político do PSD e PS.

3 comentários:

Paulo Marques disse...

"Ora, a grande maioria da população é intrinsecamente conservadora, e nunca apoiará uma mudança radical do sistema político sem antes rejeitar visceralmente o actual. Realço o visceralmente."
Depois de passar de 2013 a 2015 como a actual Grécia, parece-me que o conservadorismo evaporar-se-à rapidamente...

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

julgo compreender bem a tua preocupação, e, seja como for, pões em evidência um dado fundamental: o regime e o "sistema" só se mantêm graças à adesão - passiva, contraditória, resignada, o que quisermos, mas efectiva - de uma fracção importante da população, ou, o que vem a dar no mesmo, à falta de oposição decidida e activa da grande maioria.
Mas creio que o Miguel Madeira - como o Luís Januário num post que citei há pouco, e alguns outros (o António Guerreiro, num recente encontro organizado pela Unipop, falou no mesmo sentido) - tem razão: a indignação não é uma política, e, acrescento eu, a identidade de "indignados" é mais do que insuficiente para a plena reivindicação da "democracia já".
Um pouco brutalmente, pensando no que se passou na Europa entre as duas guerras mundiais do século passado, poderíamos dizer que "indignados" também os fascistas eram - e eram igualmente contra o "sistema", a "classe política", mais o diabo a sete. Ora, isso não fazia deles democratas, ainda que uma elaboração/mobilização diferente dos motivos da sua "indignação" os tivesse podido conduzir à luta por uma democratização como aquela em que estás a pensar e que corresponderia melhor à defesa dos seus interesses e à sua redefinição racional.
A insistência na "indignação", ao contrário da palavra de ordem "democracia (real) já", é absolutamente insuficiente para contrariar a "participação dependente", a "mobilização hetero-dirigida", a adesão visceralmente entranhada à desigualdade inerente ao princípio hierárquico que afirma a necessidade de haver quem mande, dirija e represente o conjunto dos outros, e assim mantém e recicla os alicerces da dominação de tipo classista.
Em resumo, se o que queremos é, de facto, não melhores pastores, mas deixarmos de ser um rebanho ao serviço da riqueza e do poder dos seus donos, creio que não será a indignação a levar-nos lá. Porque não se trata aqui de mudarmos de governo, mas de sermos nós a governar-nos.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Eu compreendo a tua preocupação, que partilho. Mas a história demonstra que quase sempre o que permite a mudança de regime político é a passividade da maioria perante a minoria que exige e planeia a mudança. Ou seja, muito raramente a maioria duma população escolheu explicitamente um novo regime, tendo antes permitido a queda do anterior regime abstendo-se de o defender (não necessariamente de forma violenta). Isto aconteceu mesmo em países onde uma mudança substancial de sistema se fez por via de eleições parlamentares, como na Venezuela ou Bolívia, pois em nenhum desses países os governos foram eleitos com o apoio explícito da maioria da população (mas apenas dos votantes). É completamenrte verdade que a descredibilização dum dado sistema político abre a porta a mudanças que podem ter um sinal político muito distinto, desde o incremento do autoritarismo (no limite a instauração dum regime fascista) até à democratização radical. E é por isso que ao mesmo tempo que o actual sistema é descredibilizado aos olhos da maioria, é igualmente importante fazer passar a "nossa mensagem", ou seja tornar hegemónica a narrativa que permitirá a aceitação passiva pela maioria da mudança por nós perconizada, imunizando-a perante outras "soluções". Será também essencial que aqueles que perconizam a democratização radical do sistema político se organizem e planeiem a transição de modo a não dar espaço ao surgimento de "soluções" de sinal contrário. É uma estratégia perigosa, eu sei, mas em períodos de grande turbulência social, como o actual, "ganha" quem tomar a iniciativa (inteligente), e não tenho dúvidas que os defensores do reforço do autoritarismo estão prontos para aplicar a sua "receita" no momento que lhes parecer oportuno. Ou seja, é preciso:

1. elaborar uma narrativa com potencial para se tornar hegemónica, a qual ao mesmo tempo que assegura que a maioria deixa de apoiar o actual sistema - através do apelo à indignação socialmente transversal, abra caminho para a democratização radical do sistema - proposta como solução para o recorrente abuso do poder nas mãos dos governantes e injusta distribuição dos custos sociais imposta pelos detentores do poder sócio-económico;
2. unir esforços, tomar a iniciativa inteligente e planear para o momento da transição quando ele chegar.

Um abraço,

Pedro