11/10/11

Às Ruas, Cidadãos (2) - Querem lá ver, camaradas, que desta vez o Zizek não anda longe de acertar?



Parafraseando o Ricardo Noronha, nem o fascínio lacaniano nem certas formualções ambíguas sobre a experiência do "socialismo real" de Zizek são inspirações que me assistam. No entanto, parece-me que, neste seu discurso aos ocupantes de Wall Street, não anda longe de acertar em cheio e que seria bom que as suas propostas fossem ouvidas, debatidas e adoptadas como linhas de orientação do movimento. 
A única grande reserva que me ocorre pôr às suas teses de Nova York reporta-se à sua recomendação aos acampados, quando os aconselha a interrogarem-se sobre o tipo de líderes que se devem dar: como se a liderança ou direcção que convém à luta pela democracia não tivesse de ser a todo o momento, e desde o início, reivindicada para a cidadania activa dos participantes e para a sua igual participação responsável nas deliberações e decisões da acção, começando assim por democratizar o regime da luta pela transformação do regime. 
Seja como for, quase tudo o mais que o seu discurso adianta confirma a exigência de uma cidadania governante, que não se fique nem pela indignação — a inversão carnavalesca — nem pela recusa indeterminada da ordem estabelecida. Basta lê-lo com atenção para ver que assim é. Aqui fica, pois, o texto para quem não o tenha lido no esquerda-net ou alhures.

Durante o crash financeiro de 2008, foi destruída mais propriedade privada, ganha com dificuldades, do que se todos nós aqui estivéssemos a destruí-la dia e noite durante semanas. Dizem que somos sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da mesma forma.

Não somos sonhadores. Somos o despertar de um sonho que está a transformar-se num pesadelo. Não estamos a destruir coisa alguma. Estamos apenas a testemunhar como o sistema está a autodestruir-se.

Todos conhecemos a cena clássica do desenho animado: o coiote chega à beira do precipício, e continua a andar, ignorando o facto de que não há nada por baixo dele. Somente quando olha para baixo e toma consciência de que não há nada, cai. É isto o que estamos a fazer aqui.

Estamos a dizer aos gajos de Wall Street: “hey, olhem para baixo!”

Em Abril de 2011, o governo chinês proibiu, na TV, nos filmes e em romances, todas as histórias que falassem em realidade alternativa ou viagens no tempo. É um bom sinal para a China. Significa que as pessoas ainda sonham com alternativas, e por isso é preciso proibir este sonho. Aqui, não pensamos em proibições. Porque o sistema dominante tem oprimido até a nossa capacidade de sonhar.

Vejam os filmes a que assistimos o tempo todo. É fácil imaginar o fim do mundo, um asteróide destruir toda a vida e assim por diante. Mas não se pode imaginar o fim do capitalismo. O que estamos, então, a fazer aqui?

Deixem-me contar uma piada maravilhosa dos velhos tempos comunistas. Um fulano da Alemanha Oriental foi mandado para trabalhar na Sibéria. Ele sabia que o seu correio seria lido pelos censores, por isso disse aos amigos: “Vamos estabelecer um código. Se receberem uma carta minha escrita em tinta azul, será verdade o que estiver escrito; se estiver escrita em tinta vermelha, será falso”. Passado um mês, os amigos recebem uma primeira carta toda escrita em tinta azul. Dizia: “Tudo é maravilhoso aqui, as lojas estão cheias de boa comida, os cinemas exibem bons filmes do ocidente, os apartamentos são grandes e luxuosos, a única coisa que não se consegue comprar é tinta vermelha.”

É assim que vivemos – temos todas as liberdades que queremos, mas falta-nos a tinta vermelha, a linguagem para articular a nossa ausência de liberdade. A forma como nos ensinam a falar sobre a guerra, a liberdade, o terrorismo e assim por diante, falsifica a liberdade. E é isso que estamos a fazer aqui: a dar tinta vermelha a todos nós.

Existe um perigo. Não nos apaixonemos por nós mesmos. É bom estar aqui, mas lembrem-se, os carnavais são baratos. O que importa é o dia seguinte, quando voltamos à vida normal. Haverá então novas oportunidades? Não quero que se lembrem destes dias assim: “Meu deus, como éramos jovens e foi lindo”.

Lembrem-se que a nossa mensagem principal é: temos de pensar em alternativas. A regra quebrou-se. Não vivemos no melhor mundo possível, mas há um longo caminho pela frente – estamos confrontados com questões realmente difíceis. Sabemos o que não queremos. Mas o que queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes queremos?

Lembrem-se, o problema não é a corrupção ou a ganância, o problema é o sistema. Tenham cuidado, não só com os inimigos, mas também com os falsos amigos que já estão a trabalhar para diluir este processo, do mesmo modo que quando se toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, gelado sem gordura.

Vão tentar transformar isto num protesto moral sem coração, um processo descafeinado. Mas o motivo de estarmos aqui é que já estamos fartos de um mundo onde se reciclam latas de coca-cola ou se toma um cappuccino italiano no Starbucks, para depois dar 1% às crianças que passam fome e fazer-nos sentir bem com isso. Depois de fazer outsourcing ao trabalho e à tortura, depois de as agências matrimoniais fazerem outsourcing da nossa vida amorosa, permitimos que até o nosso envolvimento político seja alvo de outsourcing. Queremo-lo de volta.

Não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje os comunistas são os capitalistas mais eficientes e implacáveis. Na China de hoje, temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico do que o vosso capitalismo americano. Mas ele não precisa de democracia. O que significa que, quando criticarem o capitalismo, não se deixem chantagear pelos que vos acusam de ser contra a democracia. O casamento entre a democracia e o capitalismo acabou.

A mudança é possível. O que é que consideramos possível hoje? Basta seguir os média. Por um lado, na tecnologia e na sexualidade tudo parece ser possível. É possível viajar para a lua, tornar-se imortal através da biogenética. Pode-se ter sexo com animais ou qualquer outra coisa. Mas olhem para os terrenos da sociedade e da economia. Nestes, quase tudo é considerado impossível. Querem aumentar um pouco os impostos aos ricos? Eles dizem que é impossível. Perdemos competitividade. Querem mais dinheiro para a saúde? Eles dizem que é impossível, isso significaria um Estado totalitário. Algo tem de estar errado num mundo onde vos prometem ser imortais, mas em que não se pode gastar um pouco mais com cuidados de saúde.

Talvez devêssemos definir as nossas prioridades nesta questão. Não queremos um padrão de vida mais alto – queremos um melhor padrão de vida. O único sentido em que somos comunistas é que nos preocupamos com os bens comuns. Os bens comuns da natureza, os bens comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual, os bens comuns da biogenética. Por isto e só por isto devemos lutar.

O comunismo falhou totalmente, mas o problema dos bens comuns permanece. Eles dizem-nos que não somos americanos, mas temos de lembrar uma coisa aos fundamentalistas conservadores, que afirmam que eles é que são realmente americanos. O que é o cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes que estão ligados pelo amor um pelo outro, e que só têm a sua própria liberdade e responsabilidade para este amor. Neste sentido, o Espírito Santo está aqui, agora, e lá em Wall Street estão os pagãos que adoram ídolos blasfemos.

Por isso, do que precisamos é de paciência. A única coisa que eu temo é que algum dia vamos todos voltar para casa, e vamos voltar a encontrar-nos uma vez por ano, para beber cerveja e recordar nostalgicamente como foi bom o tempo que passámos aqui. Prometam que não vai ser assim. Sabem que muitas vezes as pessoas desejam uma coisa, mas realmente não a querem. Não tenham medo de realmente querer o que desejam. Muito obrigado.

10 comentários:

Ricardo Noronha disse...

Mas olhas que faltam aí coisas, camarada Miguel. Está aqui a versão integral em inglês: http://www.versobooks.com/blogs/736

Miguel Serras Pereira disse...

Obrigado, leal camarada Ricardo, pela tua achega. Na realidade, os dois textos não coincidem e o que indicas contém, pelo menos, um ponto importante, que não aparece na versão que citei (a qual, em contrapartida, contém passagens que não aparecem no "teu" texto). O que se explica, talves, pelo facto de não serem transcrições integrais de gravações, mas notas que pessoas diferentes tiraram do discurso. Só há a dizer que é pena que, ao contrário do site que linkas, o esquerda.net não tenha esclarecido esse aspecto.
Mas, enfim, aproveito para deixar o trecho importante que não aparece na versão que utilizei.

Abraço para ti

msp

So is the change really possible? Today, the possible and the impossible are distributed in a strange way. In the domains of personal freedoms and scientific technology, the impossible is becoming increasingly possible (or so we are told): “nothing is impossible,” we can enjoy sex in all its perverse versions; entire archives of music, films, and TV series are available for downloading; space travel is available to everyone (with the money...); we can enhance our physical and psychic abilities through interventions into the genome, right up to the techno-gnostic dream of achieving immortality by transforming our identity into a software program. On the other hand, in the domain of social and economic relations, we are bombarded all the time by a You cannot ... engage in collective political acts (which necessarily end in totalitarian terror), or cling to the old Welfare State (it makes you non-competitive and leads to economic crisis), or isolate yourself from the global market, and so on. When austerity measures are imposed, we are repeatedly told that this is simply what has to be done. Maybe, the time has come to turn around these coordinates of what is possible and what is impossible; maybe, we cannot become immortal, but we can have more solidarity and healthcare?

Ana Paula Fitas disse...

Fiz link, Miguel.
Obrigado.

Miguel Serras Pereira disse...

Sou eu quem agradece, Ana Paula.

Saudações factual-viandantes

msp

HORIZONTE XXI disse...

Occupy the sistem!

Anónimo disse...

Zizek tem uma capacidade de recuperação mediática acima da norma.Na Primavera passada, o NY Times dava-o pelas ruas da amargura eotado ao mais negro dos ostracismos, o que vale o que vale...O Marxismo e a Psicanálise não conseguem criar a auto-criatividade das massas,hoje, aqui e agora no Mundo. De qualquer modo, Castoriadis disse-o e explicou-o muitas vezes,e eu não cesso de o proclamar: " No interior desta cultura que se decompõe mais cada dia que passa, na sua ala capitalista como na sua ala " operária ", devemo-nos postar como a negação total- sublinho, negação total- do que está estabelecido como constituindo a expressão das aspirações verdadeiras dos homens. Devemos assinalar uma ruptura radical com a ideologia e os valores da sociedade oficial e, de facto, partilhados com variações mínimas pelas organizações pretendidamente " operárias ".(...) A crise da sociedade e da cultura é total, a revolução será total ou não o será ". Niet

Anónimo disse...

Gralha: gralha na linha três:" e votado ao mais negro"...Niet

fia-te na birge e num corras disse...

que as balas biajam a 1200 metrus por segundo

são umas gaijas rápidas

aqui no bairro é mais zagalotes

Os maoistas são capitalistas? disse...

Valeu bem os 45 milhões de mortos do Grande Salto em frente

o império do meio trouxe prosperidade aos seus...demorou 54 anos mas como dizia nosso Mau Mau

a revolta dos Mau-Mau's triunfará someday

mao é que tinha visão
e Deng Xia-ping à mão
...olha se tivesse ido à vida

pragmatismo...é o futuro

zizekismu é demodé...como os catanguistas em Paris ou na Sorbonne

Gonçalo Marcelo disse...

Cheguei a Nova Iorque há poucos dias para trabalhar uns mesitos em Columbia e tenho acompanhado a movimentação dos manifestos em Wall Street. O meu entusiasmo pelo Zizek também é muito moderado, mas de facto acho que o discurso foi bom. E um dos eventos do momento aqui em Nova Iorque é a anunciada mega conferência do próximo fim-de-semana, onde o Zizek e o Badiou supostamente participariam, mas afinal parece que o Badiou está doente e não poderá vir. Será portanto o Zizek a fazer as honras, precisamente no 15 de Outubro. Aposto que há-de levar os conferencistas a marchar. E pergunto-me como é que as forças de segurança vão reagir. Não me admira se houver repressão. A acompanhar com muita atenção...