04/02/14
Eurocépticos, Democépticos & Cia
por
Miguel Serras Pereira
Querem "sair do euro", voltar a exigir passaportes nas fronteiras com Espanha e a UE, criar postos de trabalho nas alfândegas e na guarda fiscal, incentivar o contrabando, lucrar nos câmbios dos turistas e reanimar as pequenas indústrias cujos pequenos salários serão compensados pelas hortas dos trabalhadores, reafirmar os valores da portugalidade por meio do isolamento cultural do país, cativar o investimento angolano e reintroduzir a parcimónia e a modéstia na casa portuguesa — é de prever que, para tanto, estejam generosamente dispostos a sacrificar a sua existência partidária num bloco de união nacional, cuja política seja Portugal d'abord, e ponha fim às estéreis divisões ideológicas entre os nacionais. Nada disto é propriamente novo, mas torna-se bastante assustador quando vemos a esquerda soberanista e, no fundo, cada vez mais hegemonizada pelo democepticismo que é timbre do PCP promover, adoptar em boa medida, com a sua aposta na saída do euro, na autarcia económica e num governo de salvação nacional que a assegure, um programa cujos efeitos práticos seriam bastante semelhantes, tendo também por condição uma divisão do trabalho político que só poderia agravar as condições que a actual divisão (política) do trabalho impõe à grande maioria dos cidadãos.
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9 comentários:
O que é que o "euro" tem a ver com as fronteiras????? Os critérios de adesão resultam do tratado de Maastricht, a livre transito entre fronteiras resulta do tratado de Schengen. Até hoje, é possível ir a países com moeda diferente com o Reino Unido sem que sejam a exigidos passaportes. Que grande confusão anda para aí...
O que é que o Euro tem a ver com as fronteiras????? Os critérios de adesão ao Euro foram definidos no tratado de Maastricht, a livre transito entre fronteiras resulta do tratado de Schengen. Até hoje, é possível ir a países com moeda diferente com o Reino Unido sem que sejam a exigidos passaportes. Não se trata de euro-cepticismo mas de cepticismo do centralismo financeiro. Que é uma coisa completamente diferente.
Curiosa ideia a sua: negociar a saída do euro em condições vantajosas, e contando que as actuais instâncias governantes da UE facilitariam a operação sem cobrar juros acrescidos. Mas, enfim, os castelos no ar são grátis, embora não abriguem.
Se, por outro lado, nãõ é na saída negociada que V. pensa, mas numa ruptura hostil e nacionalista com a UE, pensar que esta última não faria sentir ao Estado português o carácter fictício da sua independência, deixando-lhe, na melhor das hipóteses, a alternativa de outras dependências ainda menos controláveis, é um castelo que nem no ar se tem de pé.
msp
De facto é admirável que os defensores da saída do euro achem que bastaria mudar a fechadura e tudo se passaria sem qualquer problema... É que se Portugal iria adoptar medidas proteccionistas, os outros países iriam ficar quietos? Mais de 70% das exportações portuguesas têm como destino países da UE (e a esmagadora maioria para países da zona euro) e as pessoas acham que elas não iriam ser taxadas ou limitadas?
As pessoas acham mesmo que a instabilidade criada não iria colocar problemas ao nível dos fluxos migratórios ou no receber de fundos europeus? As pessoas que defendem a saída do euro sabem por acaso quantas dezenas de milhares de milhões de euros é que Portugal recebeu e que a beleza da soberania do Estado português e dos seus empresários da mais-valia absoluta impediram de modernizar a economia?
Por outro lado, no dia em que se começasse a discutir a saída de Portugal do euro, a fuga de capitais seria colossal. Ficariam cá os depósitos magros dos trabalhadores e as poupanças de pequenos aforradores. Em suma, com a fuga de capitais tanto o investimento como a poupança seriam ainda menores. Isto sem falar que o sistema bancário iria ao charco. Claro que nos viriam dizer que não haveria problema e que o Estado iria controlar os capitais e que iria nacionalizar a banca. Primeiro, esse argumento é pífio no actual contexto de quase ausência de lutas sociais. E é pífio porque antes de o Estado controlar a fuga de capitais já eles estariam noutros locais há muito tempo. O controlo de capitais só é possível numa base internacional, nunca nacional. Segundo, nacionalizar a banca num contexto que deriva unicamente de um processo de substituição de elites europeístas por elites nacionais significa que o Estado teria de emitir moeda para compensar as perdas das fugas de capitais. Ora, com a baixa produtividade existente na economia portuguesa, o crescimento da massa monetária acima do volume de bens produzidos levaria a que a inflação se tornasse muito difícil de controlar. Ninguém pode garantir que seria mais fácil controlar a inflação do que o contrário.
É um erro crasso achar que se pode resolver problemas que têm origem na débil estrutura produtiva apenas baseando-se na desvalorização cambial. Uma moeda altamente desvalorizada só iria fazer com que os empresários portugueses, habituados que estão a recorrer a mecanismos da mais-valia absoluta, apostassem e insistissem ainda mais na compressão salarial e na exportação de produtos com baixo valor acrescentado. Se no panorama actual, em que o acesso aos mercados internacionais e às tecnologias é muito mais facilitado, grande parte dos empresários nunca aproveitou para modernizar as empresas, porque raio é que iriam mudar o seu comportamento, tendo à mão uma moeda desvalorizada e que lhes permitiria competir apenas nos mercados de produtos com baixo valor acrescentado? Em suma, a saída do euro só iria agravar os problemas da economia portuguesa e o padrão de austeridade.
E já nem falo no facto de que a instabilidade política criada no actual contexto internacional, repito em que praticamente não existem lutas sociais vastas e de base, só favoreceria o desenvolvimento de ódios nacionais.
Entretanto, seria bom voltar a ouvir os nossos "amigos" que há um ano apresentavam o exemplo da Argentina como um sucesso das políticas de desvalorização da moeda.
http://www.abc.es/economia/20140125/abci-economia-argentina-barco-deriva-201401241923.html
http://www.economist.com/news/americas/21595471-latin-americas-weakest-economies-are-reaching-breaking-point-party-over?fb_action_ids=10152147481205768&fb_action_types=og.likes&fb_ref=scn%2Ffb_ec%2Fthe_party_is_over&fb_source=other_multiline&action_object_map=%5B132397950264080%5D&action_type_map=%5B%22og.likes%22%5D&action_ref_map=%5B%22scn%5C%2Ffb_ec%5C%2Fthe_party_is_over%22%5D
Ola,
Bom texto. Como sabes, subscrevo completamente, e também o que diz o João (VA).
Dito isto, penso que devemos também saber ouvir, quanto mais não seja para tentarmos pôr de novo o debate nos trilhos, pelo menos entre pessoas de esquerda. Com efeito, nem todas as reticências expressas em relação à integração europeia o são de ma fé ou causadas apenas por fantasmagorias.
Deve haver - e não vejo nenhuma razão para que não haja - espaço para dizer que a integração implica, também, ter em vista o desenvolivimento harmonioso e equitativo das diversas regiões europeias e das suas populações. Nesse sentido, é legitimo que se façam ouvir criticas à forma como deixamos que as transferências de fundos comunitarios tenham tido menos impacto do que desejavel na modernização do aparelho produtivo português (ainda que também não tenha sido zero, pelo menos que eu saiba, mas adiante).
Ha pois, a meu ver, um espaço legitimo para preocupações "nacionais", ainda que elas sejam normalmente chamadas a perder progressivamente importância. Da mesma forma que, dentro das fronteiras de Portugal, ninguém acha ilegitimo preocupar-se com o desenvolvimento socio-economico de uma região particular, por exemplo as regiões interiores...
O que não devemos aceitar, é que o debate descambe e que essas questões acabem por ser instrumentalzadas, sobretudo quando esta instrumentalização serve objectivamente para travar reformas democraticas.
Mas enfim, nada disso tira um iota à pertinência das tuas observações no post, ou alias aos comentarios do JVA.
Abraços a todos
Caros JVA e JV,
os vossos comentários sublinham bem aspectos que o meu improviso não pôde explicitar.
Só mais uma nota, que não tenho tempo para desenvolver, sobre a "oportunidade" que, conscientemente ou não, no cenário da crise agravada que a ruptura com a moeda única acarretaria, parecem apostar alguns ideólogos do chamado "Estado estratego". Estes, com efeito, fazem parte de uma elite de gestores, quadros dirigentes, especialistas do planeamento, etc. aos quais uma política soberanista e de "salvação nacional" promete recorrer e confiar responsabilidades acrescidas. O que significa que poderemos em parte explicar, senão por um "interesse de classe", por um interesse classista a adesão à aposta na desagregação da UE e na reconquista "patriótica e de esquerda" da "independência nacional" de uma esquerda até há pouco tempo muito distante ou crítica em relação ao PCP, e aparentemente partidária de um aprofundamento da integração europeia em termos orçamentais, fiscais e políticos, da União.
Abraço para ambos
miguel(sp)
Para quem ainda não viu tudo sobre o tema tomo a liberdade de colocar aqui um comentário meu anteriormente publicado no Passa Palavra. Dada a extensão do mesmo deixo o link: http://passapalavra.info/2014/01/90438/comment-page-1#comment-182304
Caro João (VA):
aprecio a tua modéstia, mas penso que este teu comentário, com ou sem duas linhas mais na abertura remetendo para o Passa Palavra, bem poderias publicá-lo também sob a forma de post aqui no Vias. A notícia de jornal a que o meu próprio post se refere dá-lhe ainda mais actualidade e perinência.
Saia o post, pá!
Abraço
miguel(sp)
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