10/02/14

Sinais de Peste

A extrema-direita nacionalsita suíça vence um referendo contra a liberdade de circulação de estrangeiros, e o Front National aplaude e exosta os franceses a fazerem o mesmo, reafirmando a sua soberania, a sua economia, a sua identidade — a "preferência nacional", em suma. Para piorar estas perspectivas de peste, fome e guerra, não faltam vozes que se reivindicam de esquerda, ou reivindicam direitos de propriedade sobre essa marca, que recomendam o reforço da soberania e das prerrogativas do Estado-nação, bem como a recusa do aprofundamento federalista da UE, como via privilegiada do combate à austeridade económica e política crescentes que assolam a Europa. As suas recomendações e argumentos — mais ênfase na "identidade", menos ênfase nela — não se distinguem demasiado claramente das que Marine Le Pen, também ela animada de preocupações sociais, reiterou ao saudar os resultados do referendo suíço e ao convidar os franceses  a que "sigam o exemplo dos suíços em defesa 'da liberdade, da soberania, da economia, do sistema de proteção social e da identidade'". Quem tenha dúvidas pode conferir, na caixa de comentários de um artigo do Passa Palavra que o João Valente Aguiar aqui lembrou há dias, as posições do teórico marxista Jacques Sapir, ao qual toda uma série de adeptos portugueses da saída do euro e do nacionalismo económico sob a égide daquilo a que um deles chamava o "Estado estratega" tem por costume dispensar calorosas aclamações.

13 comentários:

Paulo Marques disse...

Onde é que eu já vi este filme... deviam ser processados por plágio.
Tudo tão previsível e evitável, mas, obviamente, tudo vai piorar muito antes de melhorar.
Rais parta que a humanidade é estúpida.

Anónimo disse...

O texto contem um erro: O Jacques Sapir nao e' nem nunca pretendeu ser marxista.
JF

Sergio Pinto disse...

Miguel Serras Pereira,

Se alguem caracterizar as suas tomadas de posicao, no debate acerca da saida do Euro, como estando lado a lado com 'as de Passos Coelho e Paulo Portas (porque todos defendem a permanencia na zona euro), talvez voce ache que tal forma de "debate" e' profundamente desonesta.

Por razoes que nao consigo compreender, e' exactamente este o tipo de "argumentacao" que voce e o JVA sistematicamente usam (agora contra o Joao Rodrigues e o Nuno Teles, obviamente dois aliados do fascismo). Enfim, e' evidente que quem recorre ao vosso tipo tactica nao esta' 'a procura de qualquer especie de discussao seria.

joão viegas disse...

Ola,

Concordância total, mais uma vez.

Falta no entanto sublinhar uma coisa importante : o povo cai na miragem das soluções milagreiras do social-fascismo e do deixa-ca-bater-no-preto-para-aliviar PORQUE ja não consegue distinguir entre as soluções verdadeiramente democraticas e a demagogia do capitalismo liberal.

Portanto esta realidade, precisamente porque é preocupante e porque não devemos brincar com o fogo, remete-nos para o dever de identificar outras soluções e de saber convencer, com pedagogia, que a esquerda não desapareceu completamente do mapa e que, o unico problema verdadeiro por detras disso tudo, é, como sempre foi, um problema de repartição...

Abraços democraticos

Miguel Serras Pereira disse...

Sérgio Pinto,
não creio que o João Rodrigues e o Nuno Teles sejam "aliados do fascismo". O que digo é que as vias políticas que apontam tendem a agravar o mal em vez de o remediar. É, de resto, espantoso como depois de ter passado bastante tempo a argumentar que a UE necessitava de mais integração orçamental e fiscal para que, digamos assim, a moeda única o fosse de facto, e sem nunca contestar que uma tal integração seria, na sua perspectiva, uma via eficaz contra a crise, o João Rodrigues, a pretexto de que, sabe-se lá porquê, é possível uma transformação política em Portugal, ao passo que na Europa a declara, como Sapir, impossível, tenha agora decidido apostar na urgência da saída do euro. Isto, numa época em que a transnacionalização da economia exige mais do que nunca que a sua democratização — e a democratização toput court — descubra vias internacionalistas e federais.

Caro JF
Obrigado pelo seu reparo — trata-se de um lapso meu. Tencionava escrever "teórico institucionalista"… Aqui fica a emenda.
Saudações democráticas.

msp

João Valente Aguiar disse...

Sérgio Pinto,

o problema não são as pessoas mas as ideias. E as ideias são nacionalistas, o que não quer dizer que sejam iguais às da extrema-direita. Os nacionalismos à direita têm uma componente distinta (alguns deles chegam a descambar para o racismo e são ostensivamente construídas numa base mais biologista). Mas os princípios de base que unificam os nacionalismos distintos estão lá:

a) supremacia do Estado nacional sobre todas as restantes variáveis políticas. Aliás, o reforço da nação não é mais do que o reforço do aparelho de Estado. Mas não foi a esquerda, e com razão, que lembrou sempre que o Estado era um instrumento classista de repressão e de hegemonia ideológica da classe dominante sobre os trabalhadores? Ou quando a esquerda governa, os princípios de funcionamento do Estado já não se aplicariam? Em que ficamos?;

b) supremacia da comunidade nacional - uma entidade política e ideológica - sobre as dinâmicas sociais. Se forem nacionais a explorarem outros nacionais já não há problema?;

c) a criação de um nós nacional não existe sem uma diferenciação relativamente ao exterior. Nesse sentido, o nacionalismo baseia-se num universalismo particularista no espaço nacional (a tal comunidade nacional, que encobre as clivagens classistas) e num particularismo universalista para o exterior (onde a consagração da diferenciação entre nações cava fossos entre trabalhadores, ao mesmo tempo que a classe dominante se unifica no espaço nacional e internacional). O nacionalismo não tem de se auto-considerar como militarista para que seja exclusivista. A defesa de um nacionalismo implica sempre o reforço das fronteiras políticas. O mesmo é dizer que reforça a fragmentação dos trabalhadores e que reforça divisões políticas. Aliás, surpreende-me que a esquerda patriótica ache que o reforço das soberanias nacionais não traria problemas. Em tese, cada país viveria na sua e sem chatear o vizinho. Na prática, não se percebe porque se omitem as guerras e os recorrentes conflitos entre países socialistas no século XX. Tanta irmandade e afinal fosse entre a China e a URSS, entre a China e o Vietname, entre o Vietname e o Cambodja, entre os soviéticos e a Europa de Leste, o internacionalismo das nações socialistas e soberanas do século XX teve mais conflitos e mais problemas em 60 anos do que a Europa ocidental do pós-guerra. Mas o nacionalismo "bom" da esquerda vai prevenir mais problemas certo?

d) a soberania nacional parte do pressuposto de que cada povo, cada comunidade nacional deve ser responsável e decisora sobre o que se passa no seu território. Mas isso é mera conversa para encher verbo porque nenhum trabalhador, nenhum cidadão comum tem qualquer poder de decisão relevante no que toca às decisões fundamentais que regem as políticas de uma sociedade no capitalismo. E quanto mais se fala em temas nacionais e geopolíticos, menos se fala nas dinâmicas sociais e económicas do capitalismo. Dinâmicas essas que afectam trabalhadores de todas as nacionalidades.
(cont.)

João Valente Aguiar disse...

Em suma, o nacionalismo, seja ele o patriotismo pretensamente delicodoce de alguma esquerda, seja ele o extremismo mais violento de alguma direita, pertence a um campo com princípios comuns e que pesca em todas as águas. O nacionalismo não é uma corrente política como o comunismo, o liberalismo, o anarquismo,etc. O nacionalismo é um substrato ideológico muito mais vasto.

Por outro lado, se se estudar a sério a origem do fascismo encontram-se lá alguns tristes contributos da esquerda. E não apenas da direita, apesar desta ser naturalmente a sua principal matriz. Desde o sindicalismo revolucionário do Sorel, do nacionalismo dos leninistas que depois armaram a Reichswehr (e por inerência os corpos francos) na década de 20, do nacional-bolchevismo nascido em 1919/20 com Wolffheim e Laufenberg (comunistas de conselhos de Hamburgo), etc. Aliás, boa parte do sucesso do fascismo no seu tempo deveu-se precisamente à capacidade para bater a esquerda nacionalista no seu terreno próprio: o da nação. E de ter sido capaz de fundir o social e o nacional que alguma esquerda queria protagonizar.
Hoje, anda tudo com vontade de fazer algo parecido quando parte da esquerda em vez de colocar as questões no plano social prefere colocá-las no plano geopolítico. Depois surge o Sapir assumir que uma aliança com a extrema-direita era uma boa e nós é que não queremos discussões sérias? Como é que descalçam essa bota quando um dos autores predilectos e que usam como abono para defender a saída do euro defende uma aliança com a Frente Nacional? Onde começa o nacionalismo "bom" e acaba o nacionalismo "mau"? Quando estas conexões práticas, e já não meramente intelectuais e teóricas, se estabelecem quem é que garante que de hoje para amanhã não haja uma nova transferência maciça de militantes, simpatizantes e votantes da esquerda para a extrema-direita? Aliás, parte importante da Frente Nacional vem da transferências de zonas votantes operárias no PCF. Quando se passou a bater sempre na tecla da nação, da pátria, do socialismo à francesa, é evidente que as pessoas acabaram por preferir o original à cópia... Isso não quer dizer que seja tudo a mesma coisa, e, de facto, não o é. Nem ninguém diz que a origem da extrema-direita seja apenas proveniente da esquerda. Mas quando existem alguns pontos de contacto relevantes entre si, então parece-me óbvio que ou se começa a reflectir nos perigos que alguns temas e processos comportam, ou então, de facto, mais vale fechar os olhinhos e deixar-se levar pela onda.
(cont.)

João Valente Aguiar disse...

Para terminar, em ano de europeias seria bom que as pessoas reflectissem em mais dois aspectos.

1) Enquanto a integração europeia dos tecnocratas vai avançando aos poucos e de modo relativamente silencioso, a esquerda ainda continua a alimentar a ilusão de que o euro vai recuar... É espantoso verificar os capitalistas a prepararem a próxima fase e a esquerda a lutar como se quisesse voltar duas etapas atrás... É com uma visão e do passado que a esquerda pensa combater os problemas e os desafios que estão a ser colocados?

2) A saída do euro faria explodir o número de casos como o recente referendo suíço que limita a circulação de pessoas com a UE. Se na Suíça, que tem um desemprego baixíssimo, houve quem achasse que os estrangeiros e os imigrantes estariam a tirar empregos, como seria possível a sucessivos países em bancarrota e numa crise económica muito superior à actual, os vários países europeus não actuarem unilateralmente com proteccionismos e com restrições à mobilidade das pessoas? Um recente artigo (http://passapalavra.info/2014/01/90675) aborda isso numa perspectiva simétrica, mostrando que a mobilidade internacional de pessoas na UE sempre foi favorecendo algum tipo de internacionalismo. Quanto mais não seja porque ajudou a superar provincianismos e preconceitos relativamente a estrangeiros. Ora, com a saída do euro qualquer laivo de mínima cordialidade entre pessoas de diferentes países poderia estar em causa. Quem garante que as implicações das políticas proteccionistas e unilaterais de alguma esquerda não desaguem num mesmo campo de restrição dos fluxos migratórios?

joão viegas disse...

Caro Sérgio Pinto,

OK. Que a adjectivação não venha obscurecer o debate à esquerda. Nenhuma alternativa deve ser excluida por principio e tudo pode, e deve, ser debatido.

Mas o que diz o JVA tem um certo sentido : o radicalismo facil com que se vem hoje pôr em causa o caminho escolhido democraticamente com o beneplacito de uma grande parte da esquerda, esta na pratica a impedir-nos de construir o que interessa, ou seja uma verdadeira alternativa europeia de esquerda.

Ora, por muitas duvidas ou reservas que tenhamos, deviamos estar todos empenhados nesta tarefa, quanto mais não seja em nome daquilo que quase todos nos defendemos ontem...

De forma paradoxal, a reacção "nacionalista" de alguma esquerda alimenta-se daquilo que ela afirma por pôr em causa, ou seja do discurso simplista, e profundamente errado, do "não ha alternativa".

Ha alternativas, claro que ha. So não as ha se não as quisermos construir ! Mas sair unilateralmente do Euro não se me afigura ser a mais realista, tenho pena...

Quanto ao resto, podemos e devemos debater de tudo. Os povos da Europa vão estar mais bem protegidos com a separação das suas organizações em compartimentos nacionais e com o regresso em força das fronteiras politicas ? E' isso ? Por favor, que nos expliquem porquê...

Abraços

rui cs disse...


JVA e MSP,

Eu, que não me considero de forma alguma nacionalista, bem pelo contrário, definir-me-ei como internacionalista a ter de algum modo que o fazer nestes termos, considero contudo que na crítica ao nacionalismo não vos vejo diferentes contextos em que este ainda hoje se põe. Assim, quando na América Latina, principalmente nas últimas década e meia, quando diversos países reivindicaram a recuperação (por via da nacionalização) dos seus recursos naturais, vocês vêm nesses actos fenómenos nacionalistas similares ao discurso nacionalista na Catalunha ou no País Basco? Dando um outro exemplo. Porto Rico é um território não integrado dos EUA, institucionalmente denominado um Estado Livre Associado dos EUA. Aqui, praticamente todos os movimentos de esquerda que conheço são independentistas e acreditando ou não na viabilidade económica de uma pequena ilha poder ser sustentável economicamente caso pudesse unilateralmente declarar a sua independência face aos EUA, contudo creio que o princípio da auto-determinação (e da possibilidade de decidir sobre o seu próprio estatuto político de forma autónoma, sem precisar de uma autorização do Congresso ou Senado norte-americanos) não é posto em causa por nenhum destes movimentos. Portanto, o princípio de auto-determinação é por estes discernível da auto-definição que cada um destes movimentos políticos faz de si mesmo como nacionalista ou internacionalista. Perante estas diferentes situações (América Latina e seus recursos naturais, Catalunha ou País Basco, Porto Rico ou territórios sob dominação colonial) gostava de saber de que forma pensam a relação entre direito à auto-determinação e nacionalismo.
Cumprimentos,
Rui Santos

Miguel Serras Pereira disse...

Rui Santos,

só posso responder por mim, e bastante apressadamente.
Em primeiro lugar, as situações referidas ão muito diferentes umas das outras, e também das que existem em Portugal.
Em segundo lugar, o que me importa é a autodeterminação dos cidadãos e a conquista por estes da liberdade e da igualdade de participação no exercício do poder que os governa (e hoje esse poder faz-se a coberto da "independência sistémica" da economia). É este critério que devemos ter presente ao ajuizar da justeza e da justiça das reivindicações "nacionais".
Por fim, o que se passa é que, embora tanto Sapir como João Rodrigues, por exemplo, reconheçam que uma integração orçamental e fiscal, só possível através de uma integração política mais avançada, poderia permitir uma resposta satisfatória à crise e à questão europeia, declaram, por um lado, que esta é impossível, e, por outro, que a via soberanista da saída do euro é a solução, dada essa impossibilidade. Ora, por mim, não vejo porque é que, embora com dificuldades enormes a vencer, uma viragem política, uma transformação das relações de força, seria impossível à escala da UE, passando a ser possível no plano nacional: se os governos alemão, francês, etc. são reaccionários e favoráveis às políticas oligárquicas mais austeritárias, o governo português não o é menos; se o panorama político no conjunto da Europa é deprimemnte, não me parece que o português seja mais exaltante. É por isso que, tendo sempre em conta que as condições de dependência que impedem a autodeterminação dos cidadãos comuns da região portuguesa tem raízes e forçass que excedem largamente as suas fronteiras, considero absurdo apontar como alternativa à situação e às relações de força vigentes na UE a mítica recuperação da soberania nacional. Equivale, tanto quanto vejo, à tese seguinte: uma vez que a integração federal não tem condições favoráveis na UE, a desintegração e o nacionalismo, o reforço das froneiras e o isolamento, são a via que devemos escolher.

Espero ter respondido, ainda que só em termos demasiado gerais, à sua pergunta.

Saudações democráticas

msp

João Valente Aguiar disse...

Rui Santos,

acho que o Miguel resumiu bem a questão: «o que me importa é a autodeterminação dos cidadãos e a conquista por estes da liberdade e da igualdade de participação no exercício do poder que os governa (e hoje esse poder faz-se a coberto da "independência sistémica" da economia). É este critério que devemos ter presente ao ajuizar da justeza e da justiça das reivindicações "nacionais"».

Cumps

rui cs disse...


Miguel Serras Pereira e João Valente Aguiar,

Obrigado pelas vossas respostas. Cumprimentos,
Rui Santos