27/04/12

O Poder da Fontinha

O meu artigo no i de quinta-feira



A Escola da Fontinha não é simplesmente nome de um projecto social, cultural ou educativo. Todos estes qualificativos são respeitáveis, sem dúvida alguma, mas temo que falhem o que de substancial se joga na Fontinha. A Escola da Fontinha é antes de mais, de onde eu a vejo, o nome de um projecto de poder (ou de anti-poder, se preferirem) que se caracteriza por assumir uma natureza económica e política radicalmente democrática (ou anarquista, se preferirem). E é isto que a singulariza.

Do ponto de vista económico, a Fontinha não é enquadrável em nenhuma das duas alternativas que tomaram conta do debate económico no espaço mediático dominante. Essas duas alternativas rezam que ou as coisas pertencem à ordem pública regida pelo Estado ou pertencem a uma esfera privada oleada pelos mecanismos de mercado. Este é um esquema que facilmente reconhecemos nos discursos partidários: mais à esquerda, falamos dos riscos da privatização das funções económicas e sociais do Estado; mais à direita, reclama-se que o Estado deixe a sociedade entregue à liberdade individual e mercantil.

O projecto Escola da Fontinha não pertence a este filme. O projecto não é determinado por objectivos mercantilistas, como reza a apologia das privatizações, segundo a qual a economia só pode funcionar se baseada num regime de competição em que todos lutem contra todos. E também não entende que o Estado seja a única alternativa a este regime liberal ou neoliberal. Na verdade, é bom de ver que o projecto da Escola da Fontinha procura antes de mais disputar o controlo de uma propriedade do Estado. Poder-se-ia também dizer, assim sendo, que o projecto da Escola da Fontinha – continue na Fontinha ou dissemine-se por outros pontos do país! – trava um combate contra o monopólio estatal da propriedade pública e contra a ideia de que a única alternativa ao Estado é a mercantilização da sociedade.

Dir-me-ão que este combate por um espaço autónomo tanto do Estado como do mercado não tem no projecto da Escola da Fontinha o seu único testemunho. É verdade. E basta ver que, na mesma semana em que o Estado procurou destruir o projecto da Escola da Fontinha, fez furor mediático a campanha “Zero Desperdício”. Esta campanha pretende que os restos alimentícios dos mais abastados cheguem à mesa dos menos afortunados, montando-se uma cadeia de distribuição de recursos que escapa tanto à esfera do mercado como ao planeamento do Estado. A campanha rege-se pelo seguinte princípio económico, a que deram voz alguns músicos portugueses: “O que eu não aproveito ao almoço e ao jantar, a ti deve dar jeito, temos que nos encontrar”.

Campanhas como esta proliferarão nos próximos tempos à medida que a crise se intensifica. E é também por isso que um projecto como o da Escola da Fontinha é tão importante. Porque se a Escola da Fontinha partilha com campanhas como o “Zero Desperdício” a ideia de que é necessário construir territórios e redes sociais autónomas do Estado e do mercado, distingue-se radicalmente pelo elemento político que a constitui: na Escola da Fontinha não se trata de ajudar a população empobrecida do bairro, mas de construir um projecto que se pretende baseado no exercício de uma democracia que determina o que se faz, como se faz, quem faz, num plano de igualdade entre tudo e todos os que participem no processo, sem hierarquias, sem líderes e sem cantautores que por misericórdia deixam os restos da sua refeição para os pobres. Rita Blanco, uma das poucas vozes do mundo do espectáculo que veio criticar o paternalismo miserável da campanha “Zero Desperdício”, não podia ser mais justa nas suas palavras: «Estamos a voltar ao antigamente, com coisas muito semelhantes. Ninguém pode viver à mercê da boa vontade dos outros. Surpreende-me a capacidade de movimentação para estes movimentos (de dito apoio social e solidário), mas não para discutir as leis e lutar pelos direitos das pessoas. Esta caridadezinha não é liberdade, isso é capitalismo selvagem». 

Em suma, o projecto da Fontinha cria uma oportunidade para uma prática absoluta da democracia, recusando que a nossa sorte seja abandonada quer às mãos do patrão e do Estado quer aos apetites dos mais ricos.   

7 comentários:

HORIZONTE XXI disse...

Sim, eles têm medo, medo que as pessoas se organizem, medo que as pessoas se agrupem em comunidades autogeridas, que as pessoas suprimam mutuamente as suas necessidades, medo que se tornem independentes, mais responsáveis, mais exigentes, que deixem de estar dependentes do isco da esmola, que comecem a pensar que podem ser livres, que sonhem, que tornem o sistema dispensável e que com isso eles sejam prescindíveis.
É esse o maior medo, que se tornem prescindíveis!

Anónimo disse...

Felicito calorosamente o Zé Neves por mais este magnífico e desassombrado testemunho.

nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

MARÉ ALTA!

Abrç

miguel(sp)

Libertário disse...

Essa é a questão central que se põe hoje aos que se definem como anti-capitalistas, principalmente aos que se identificam com a tradição libertária: construir fora do Estado e da lógica capitalista projetos de produção, consumo e vida marcados pela liberdade, autonomia e autogestão.

A participação dentro da lógica institucional do Estado: eleições, manifestações enquadradas, greves disciplinadas etc., são o rosto de uma esquerda decadente e rendida ao sistema.

Anónimo disse...

Vamos lá, caro Libertário, deixar um pouco a retórica anarquista mais gasta e inoperante, e passar a um estado superior de luta.Existem na prosa do Libertário resquícios de uma herança marxista-leninista que só faz(fazia) fé nos sortilégios absolutistas de uma pujante "direcção revolucionária ". E uma nova e instituinte prática política implica a própria transformação da linguagem... Acontecimentos que o caso da Escola da Fontinha( no centro do Porto), podem estimular e multiplicar. É a questão do projecto, dos meios e estímulos que têm que ser convocados para o blitz transformador: " Um socialismo realizado para em substituição do proletariado, mesmo pelo partido mais revolucionário, é uma completa aberração. A organização revolucionária não é nem pode ser a direcção da classe. Ela não pode ser senão um-1-um instrumento da luta da classe. A sua tarefa principal será de ajudar, pelas suas palavras e actos, a classe operária a assumir o papel histórico de gestão da sociedade. Qual deve ser o funcionamento interno da organização revolucionária? Segundo as concepções tradicionais, o partido organiza-se e funciona segundo princípios testados de eficácia, pretensamente baseados no " bom senso ", como uma divisão do trabalho entre " dirigentes " e a " base", o controlo daqueles por esta a intervalos pouco frequentes e, regra geral,a posteriori( de forma que o pretenso controlo se torna de facto em ratificação pura e simples), especialização, divisão rígidas das tarefas, etc. Isso pode ser bom senso burguês, mas é pura abjecção do ponto de vista revolucionário. Este tipo de organização é somente eficaz no sentido, justamente, que reproduz com todos os requesitos um estado de coisas burguês, tanto no interior como no exterior do partido.Na sua melhor forma e mais democrática, não constitui senão uma paródia do parlamentarismo burguês. A organização revolucionária deverá aplicar para si própria os princípios que o proletariado desenvolveu ao longo das suas lutas históricas: a Comuna de Paris,os Sovietes e os Conselhos Operários. Deverá instaurar a autonomia dos seus orgãos locais, a um nível tão extenso que seja compatível com a unidade da organização; e também deverá implantar a democracia directa, sempre que ela possa ser materialmente praticada; ao mesmo tempo que deve assegurar a eleição e a revogabilidade instantânea de todos os delegados que participem em estruturas que detenham um poder de decisão ". C. Castoriadis, " O que significa o Socialismo ", 1961. Nos seus textos de 1868, Bakounine advoga dispositivos estratégicos muito semelhantes,no seguimento das derrotas do proletariado francês em 1848 e 1851. Salut! Niet

Libertário disse...

Agradeço humildemente a lição, mesmo dada por quem crítica a retórica...
Já estou pronto para passar «a um estado superior».

Anónimo disse...

Como iremos ocupar o nosso tempo antes que a situação se torne insustentável, social e políticamente, caro Libertário? É isso que me inquieta e emociona. E nesse combate quotidiano todos podem e devem falar/participar/transformar: " Talvez o perigo comum, a vontade comum de vencer e transformar o Mundo, a comunidade de sangue e de aspirações, porque para todos nós- " a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores " -não serão suficientes para reconciliar pela acção e a emulação ao serviço da Revolução- os anarquistas e os marxistas? ",(Victor Serge).Liberté et égalité. Salut! Niet