10/06/11

Dona Rosa

O Renato Teixeira acha que eu abusei da memória da Rosa Luxemburgo, porque a mobilizei na minha crítica aos que, como ele, parecem entender ser menos importante o modo como se fazem as coisas e ser mais relevante o objectivo visado quando se fazem essas mesmas coisas. Ufa. E traduzindo: eu, como o Renato, aspiro a uma terra sem amos, mas, ao contrário do Renato, acho que tal só é possível se os movimentos que por tal lutarem dispensarem eles mesmo os seus próprios amos. Posto isto, não custa aceitar ao Renato que não me interesse muito saber o grau de pureza da minha fidelidade à Dona Rosa Luxemburgo. E acho que o Renato também não deveria perder muito tempo com este tipo de questões. Caso contrário ainda nos acontece o mesmo que àquela jovem viúva. Quando o esposo foi à vida, prometeu nunca mais dormir com quem quer que fosse. Meses depois da jura, poucos meses, na verdade, acabou na cama com o primeiro macaco que lhe apareceu à frente. O António José Saraiva dizia, aliás, que o máximo de coerência a que almejava era acreditar no que dizia no momento em que o dizia, de modo a que não lhe pedissem contas pelo dia de ontem ou pelo dia de amanhã; e a mim, embora não subscrevendo a frase do Saraiva, pouco me interessa saber se estou a ser ou não fiel a fulano, beltrana ou sicrano. Ainda assim, não vá eu ir para o inferno por trair a Dona Rosa, devo dizer que, consoante as traduções disponíveis, a sua frase a que eu fazia referência em post anterior era esta: “os erros do movimento de massas são mais importantes para a classe operária que a infalibilidade do maior comitê central”; ou “Os erros cometidos por um verdadeiro movimento revolucionário são, historicamente, de uma fecundidade e de um valor incomparavelmente maiores que a infalibilidade do melhor dos Comités Centrais”. Para avançar na conversa, todavia, concentro-me, apenas, por ora, em duas frases que o Renato cita contrapondo: “Tudo se encontra no movimento, tudo está no objectivo final”; “Tudo reside no objectivo final, nada se encontra no movimento”. O Renato é adepto da segunda frase. Eu acho que são ambas coxas e que se complementam por mais que se oponham. Temo que um dos problemas de muitos dos que deixaram de considerar a hipótese revolucionária depois da queda do Muro de Berlim é justamente entenderem que não pode haver qualquer diferença entre o objectivo final e os meios utilizados para atingir tal objectivo. Mas também acho que um dos problemas da esquerda que continuou a ser revolucionária depois da queda do Muro de Berlim é entender que é aceitável que os meios podem contradizer os fins. A minha posição é antes esta: encontrar uma linha política em que os fins não se reduzam simplesmente aos meios; e ao mesmo tempo recusar a hipótese de uma relação contraditória entre meios e fins.





(publicado também aqui)

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Sim, Zé, sacralizar um autor, uma interpretação autorizada das suas palavras, etc. é a melhor maneira de corrompermos completamente o que no seu pensamento possa existir de mais vivo e ainda vindouro.
De qualquer maneira, dizer que não se pode usar o pensamento de Rosa - seja o que for que se pense dos juízos emitidos - para criticar o leninismo e, sobretudo, a prática do Partido Bolchevique - ainda antes da Guerra Civil - é incorrer na falsificação e na mistificação mais declaradas.

Só dois excertos de "A Revolução Russa", entre muitos outros possíveis:

1. "A prática do socialismo exige uma transformação completa no espírito das massas, degradado por séculos de dominação da burguesia (…) Ninguém o sabe melhor, ninguém o descreve melhor, nem o repete com mais obstinação do que Lenine. Mas erra totalmente no emprego dos meios: decretos, poder ditatorial dos inspectores das fábricas, sanções drásticas não são senão paliativos. A única via (…) é a aprendizagem da vida pública, a democracia mais ampla sem a menor limitação da opinião pública. O terror é exactamente o que desmoraliza. (…) se se sufoca a vida política no país (…), sem uma liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem uma luta de opinião livre, a vida estiola em todas as instituições públicas (…) e a burocracia permanece como o único elemento activo (…): algumas dezenas de chefes do partido (…) dirigem e governam; o poder real encontra-se nas mãos de uma dúzia de chefes, superiormente inteligentes - e a classe operáreia é de vez em quando convidada a (…) aplaudir os discursos dos dirigentes e a votar por unanimidade as resoluções propostas; [temos assim] uma ditadura, certamente que não a ditadura do proletariado, mas sim a ditadura de um punhado de políticos, quer dizeer, uma ditadura no sentido burguês (…) tal estado de coisas leva necessariamente a um recrudescimento da selvajaria na vida pública, a atentados, à execução de reféns, etc."

2. "(…) a tarefa histórica do proletariado quando toma o poder é a substituição da democracia burguesa pela democracia socialista e não a supressão de toda a democracia. A democracia socialista não começa só na Terra Prometida, quando já está criada a infraestrutura da economia socialista; não é um presente de Natal que se oferece ao bom povo que, entretanto, se dispôs a obedecer a um punhado de ditadores socialistas. (…) [A ditadura do proletariado é a democracia socialista], ditadura [que] reside no modo de aplicação da democracia, e não na sua supressão (…) esta ditadura deve ser obra da classe, e não de uma minoria que governa em seu nome", etc.

Abraço

miguel (sp)

Anónimo disse...

É curioso como ainda hoje, mais de um século passado, o marxismo - ou melhor os marxistas - mantém uma lógica teológica, debatendo os «textos sagrados» e a vida dos santos...
Aquilo que imaginaram de forma arrogante, contra todos os outros revolucionários e socialistas, apelidados de utópicos, ser «o socialismo científico» não passou de uma religião, monoteísta diga-se!

Wegie disse...

Bizâncio 1453