Aqui fica a conclusão de um indispensável artigo, publicado pelo João Bernardo no Passa Palavra, sobre os problemas imediatos, mas situados e pensados numa sólida perspectiva histórica, da presente crise da UE e da zona euro. E, também, sobre os riscos de fascização que a esquerda soberanista, ainda que com as boas intenções que enchem boa parte do inferno, corre o risco de alimentar.
As dúvidas são muitas, mas o certo é que não parece possível impor um tratado de harmonização fiscal que não seja acompanhado por uma política monetária expansiva, pela criação de um credor de última instância no âmbito da zona euro e pela instauração de um mecanismo de redistribuição de rendimentos entre países membros. Com efeito, o mercado não mostra satisfazer-se com medidas exclusivamente restritivas. Ora, estes problemas não poderão ser resolvidos sem se fortalecer a soberania comum da União Europeia, com a consequente erosão das soberanias nacionais, ou seja, a conversão dos países em regiões. A perda das soberanias nacionais e a constituição da União Europeia como nação única é a medida económica mais urgente, mas ela é politicamente impossível a curto prazo. Restam, então, paliativos.
E os paliativos destinam-se precisamente a não resolver nada. Para um governo, em quaisquer circunstâncias, financiar programas de longo prazo com créditos baseados em fundos voláteis corresponde a criar todas as condições para que, uma vez que a taxa de crescimento diminua ou se inverta, os fundos voláteis se retraiam ou desapareçam, o custo do crédito aumente e a crise se agrave. Ora, na penosa situação em que agora se encontram, os países da periferia meridional da zona euro têm de recorrer às instituições financeiras privadas internacionais, ou seja, tentam solucionar a crise continuando a fazer exactamente aquilo que a provocou.
A actual crise na periferia meridional da zona euro deve-se a factores de ordem institucional e a sua causa reside, em última instância, no facto de ter sido feita uma união monetária sem uma total união política. O pacto de harmonização fiscal e orçamentária assinado em Janeiro deste ano conduzirá a impasses ainda mais graves se não se prosseguir a unificação política. Só há duas saídas: ou a desagregação da zona euro, com consequências nefastas para a economia tanto europeia como mundial, ou uma considerável redução das soberanias nacionais. É certo que a União Europeia tem alguns elementos de soberania supranacional, mas conjugados com soberanias nacionais, que são em parte reais e em parte fictícias. O aspecto fictício das soberanias nacionais na União Europeia deve-se ao facto de se considerar necessário iludir os sentimentos nacionalistas do eleitorado. Assim, de agora em diante o que estará em causa serão muito menos as soberanias nacionais — que em boa medida se diluíram e obrigatoriamente se diluirão mais ainda — do que a ficção nacionalista. Isto altera bastante os termos do processo e, paradoxalmente, dará um novo relevo à instância ideológica nos próximos tempos. Quanto menos o nacionalismo corresponder a uma base prática, tanto mais procurará afirmar-se no plano ideológico.
Nestas circunstâncias a esquerda corre um grande risco de fascização, porque sempre que o nacionalismo permeia o movimento operário, o fascismo não anda longe, qualquer que seja o nome que se lhe dê.
22/04/12
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
10 comentários:
Acabo de pôr no lixo um "comentário" assinado por "Diogo", que se limitava a um insulto e a uma interrogação ditada em proporções iguais pela ignorância mais crassa e pela malevolência mais presunçosa.
É tudo.
msp
Pois eu acabo de pôr no lixo e no caixote do dislates a afirmação final de João Bernardo, sempre misturando desonestamente «nacionalismo» com patriotismo».
Ora essa, Vítor Dias. V. terá de se explicar melhor, uma vez que eu não encontro no post qualquer ocorrência da palavra "patriotismo" — excepto no seu comentário. Acresce que "patriotismo" é um termo muito ambíguo e que, na generalidade dos casos, no momento que vivemos, pretende indicar que a defesa da "soberania nacional" é um objectivo prioritário, um "fim" maior a fazer prevalecer. E, de resto, o texto do JB é ao problema da soberania do Estado-nação que se refere (não à defesa da língua e da cultura, à valorização posotiva da culinária de cada região, à salvaguarda de paisagens e monumentos, "lugares de memória", etc., etc.): Por outro lado, se por patrotismo V. entende a defesa da "soberania nacional" contra uma perspectiva, por exemplo, federalista, a oposição - em nome de Portugal - à integração política, orçamental, fiscal, constitucional em suma, ao nível da UE, e assim por diante - então, receio bem que a crítica do nacionalismo feita por JB assente que nem uma luva nesse seu patriotismo.
Seu leitor atento
msp
O João Bernardo tem toda a razão neste assunto. Se nos prendermos a soluções estritamente nacionais - e com isto creio que ninguém nega que as lutas populares ocorrem sempre num território nacional (o que implica sobretudo o objectivo político da sua internacionalização) - como estava a dizer se a esquerda se deixa prender em soluções exclusiva ou primordialmente nacionais, dado o atual caldo fascizante e nacionalista, não tenhamos dúvidas que isso não levará a nenhuma saída anti-capitalista... Estaremos a levar água ao moinho do fascismo...
Todavia, tb importa fazer uma distinção que o Miguel Serras Pereira não faz. Não acho que a solução da federalização da UE seja propriamente melhor do que uma solução estritamente nacional. Até porque a hierarquização de poderes está claramente em torno do grande capital europeu (alemão, francês, etc.)... O reforço da federalização (se é que ainda vai a tempo) não é de todo, na minha modesta opinião, uma qualquer solução viável para a esquerda. Só servirá para reforçar política e institucionalmente o grande capital alemão e os seus propósitos expansionistas e imperialistas.
Sem uma unidade europeia dos trabalhadores e que atravesse as fronteiras, nada feito. Ou para tentar mais preciso, ou as classes trabalhadoras dos vários países europeus ultrapassam preconceitos nacionalistas e, por conseguinte, revigoram o internacionalismo ou temo que o nacionalismo penetre ainda mais fortemente as classes trabalhadoras europeias, com isso reforçando o poder da burguesia europeia que, paradoxalmente (ou não), apostará cada vez mais numa federalização de modo a tentar competir com outros imperialismos.
JVA,
li com atenção e agradável surpresa o seu comentário. No entanto, parece-me que V. também não faz todas as distinções desejáveis quando se refere à federalização.
É evidente que a integração orçamental, fiscal, em termos de sistemas de segurança social, etc., etc., só pode fazer-se através de uma forma ou outra de integração política, a que não vejo razão para não chamarmos "federação". Agora, o que V. me pode dizer é que nem todos os tipos de federação - de constituição da mesma - se equivalem, e que a hipótese que V. sugere de uma espécie de união de estados-vassalos de uma potência central alemã não é alternativa que devamos opor à situação actual. Mas persistência na afirmação e exigência de reforço das soberanias nacionais, também não.
Assim, por mais que eu divirja em pontos fundamentais de certas teses de Zizek, isso não me impede de achar que ele tem uma fórmula feliz e, em termos histórico-políticos, certeira, quando afirma que "mais democracia" é a estrada real para "mais Europa", do mesmo modo que "mais Europa" consolidará "mais democracia". Parece-me difícil contestar esta posição tanto do ponto de vista dos princípios da democracia como em termos "estratégicos" (relações de força no terreno analisadas à luz dos fins - de igualdade e liberdade, cidadania activa, superação da hierarquia classista, etc. - que nos propomos).
Julgo, por fim, que o texto do João Bernardo é claro a este respeito e que é difícil escrever o que V. escreve sobre a "federalização" e aprovar, por exemplo, estas linhas do JB:
" A actual crise na periferia meridional da zona euro deve-se a factores de ordem institucional e a sua causa reside, em última instância, no facto de ter sido feita uma união monetária sem uma total união política. O pacto de harmonização fiscal e orçamentária assinado em Janeiro deste ano conduzirá a impasses ainda mais graves se não se prosseguir a unificação política. Só há duas saídas: ou a desagregação da zona euro, com consequências nefastas para a economia tanto europeia como mundial, ou uma considerável redução das soberanias nacionais".
Cordiais saudações democráticas
msp
Bem Castoriadis sublina que o " Estado-Nação se tornou uma das significações imaginárias nucleares do mundo ocidentalizado moderno", e acentua mesmo: " Bem entendido, trata-se de uma instituição/significação que convém, assenta como uma luva, às novas burocracias e oligarquias ". Bakounine analisou a génese da centralização política e a omnipotência do Estado como causas essenciais do falhanço da Revolução Francesa e da Revolução de 1848. A cena da reprise ideológica das teses federalistas de hoje na União Europeia é tese dos Verdes( franceses e alemães) como estratégia hiper-realista de transformação política e institucional, tendo na base a ideia que o programa ecológico reclama uma destruição estrutural do modo de produção capitalista. Salut! Niet
MSP,
bom, o que eu afirmei é mais o que gostaria que acontecesse. Naturalmente, a história e a dinâmica da luta de classes compadece-se pouco com o que cada um de nós acha que cada situação deveria ou não ser...
Posto isto, creio que essa frase do João Bernardo postula as hipóteses (claramente) mais prováveis que estão em cima da mesa. Ou um reforço do federalismo europeu (que seria, na minha óptica, uma vitória do imperialismo alemão sobre o imperialismo norte-americano) ou um "regresso" nacionalista. Não creio que ambas sejam soluções apeteciveis até porque elas serão decididas de acordo com a mudança do eixo de dominação a nível mundial e não pelos trabalhadores. Por conseguinte, abraçarmos um projecto burguês federalista em detrimento de outro burguês nacionalista, não me parece grande saída. Mas, como disse acima, não quero entrar mto por ai, pois esse é terreno da ideologia e não tanto o campo do realismo político. E se a "solução" nacionalista não é solução, não estou nada convencido que o federalismo (com tudo o que acarretará de militarismo) seja igualmente um caminho a apoiar. Pode-se argumentar que o primeira abrirá mais facilmente a vias fascistas ou fascizantes (por exemplo, se a UE ruir as ladainhas nacionalistas alemães (e europeus nórdicos) vs nacionalistas tugas (e europeus do sul) poderão ser uma realidade tenebrosa. Mas não sei até que ponto o federalismo é alternativa. Até pq o federalismo implicará um reforço político enormíssimo de umas novas instituições "europeias". Reforço político não só ao nível legislativo e orçamental mas tb ao nível militar, securitário, etc.
De acordo, em princípio, João. Mas, do meu ponto de vista, a aposta política (solidária de uma avaliação da situação, mas não dedutível dela) seria avançarmos simultaneamente a federação e a democratização (ou, pelo menos, as condições que lhe sejam mais favoráveis). Acho que, até certo ponto, tanto o Zizek como o Negri se dão bem conta de que quem quer o mais tem de querer o menos e que o recuo soberanista é catastrófico. Não quer dizer que a federação por si só ou em si mesma seja democrática. Mas a reactivação do nacionalismo e a celebração da independência soberana (ideológica) de cada Estado-nação apontam o caminho do fascismo e da balcanização, isto é, de extremos riscos de guerra.
Cordialmente
msp
«a reactivação do nacionalismo e a celebração da independência soberana (ideológica) de cada Estado-nação apontam o caminho do fascismo e da balcanização, isto é, de extremos riscos de guerra».
é precisamente por isso que, entre outros apontamentos, eu acho que o texto do João é valioso
É um texto que vale a pena discutir, e que põe questões que é indispensável pormo-nos, indicando, sem demagogias nem efeitos fáceis, os riscos de fascização e de guerra que a dita crise põe na ordem do dia. Portanto, grosso modo, creio, João, que acabámos por nos pôr de acordo no fundamental - a este respeito. ;Mas teremos outras ocasiões de continuar a discutir. E, de resto, o João Bernardo anuncia que o texto, do qual publiquei excertos, terá continuação. A ver vamos.
Até breve, espero.
msp
Enviar um comentário