1. Neste texto de Manuel Gusmão, descubro vários argumentos — que me parecem uns melhores, outros menos felizes — sobre a existência de qualquer coisa como o "quadro nacional", ou o Estado-nação, que faz parte das circunstâncias, não livremente escolhidas, ou das condições herdadas que a luta por aquilo a que poderíamos chamar a "democratização socialista" das instituições, e contra as relações de poder que são as relações de produção capitalistas, não poderá ignorar, ou terá de assumir. Mas não vejo um único argumento que justifique que a luta no quadro nacional, ou a constituição de um bloco histórico de forças de mudança que passe por esse quadro, deva investir como objectivo a representação da soberania nacional ou valorizar o patriotismo.
2. O capital é uma relação social e a sua dominação não deixa de se exercer quando desaparece a figura individual de um patrão ou pequena família deles como seu agente principal. Assim, a luta contra o capitalismo deve poder ser investida e conduzida contra um regime geral de relações sociais e de organização do poder identificável para além da empresa ou local de trabalho concreto de cada trabalhador. Caso contrário, bastaria ao capitalismo esconder o rosto e exercer-se, digamos, anonimamente, de acordo aliás com a sua dinâmica histórica profunda, para se tornar imbatível. Na luta pela afirmação e extensão de relações de poder igualitárias dentro e fora da esfera da produção, nas condições sempre concretas em que se trava, os rostos, de resto, não faltarão, mas é de muito mais do que da sua substituição por outros rostos (de dirigentes, de responsáveis superiormente autorizados, de gestores ou capatazes) que se trata. Parece-me uma ideia algo extravagante defender o Estado-nação e a independência nacional para devolver este ou aquele rosto sensível ao regime de relações políticas e sociais de poder (às relações de produção, etc.) que se pretende combater.
3. Perante o "federalismo europeu" — financeiro, oligárquico, burocrático, tudo o que se queira — que se propõe como regime de reciclagem das relações de poder hierárquicas e capitalistas, a resposta da "democratização socialista" e da extensão dos direitos e liberdades e da participação igualitária tendencialmente governante dos trabalhadores e do conjunto dos cidadãos não passa por certo pelo programa de ressurreição e de reinvestimento da "independência nacional" e da soberania dos vários Estados-nação, mas pela democratização da dimensão federativa só possível através do seu aprofundamento e radicalização internacionalistas.
4. Manuel Gusmão demarca-se da vontade de construir "um mito nacional ou de substancializar um povo". Mas objectiva e substancializa o motivo de uma "classe revolucionária" objectivamente determinada ou dada como tal "em si". Ora, não é pelo facto de esta leitura poder encontrar pontos de apoio em parte do que Marx escreveu e pensou que a devemos tomar como boa. E hoje estamos em condições de ver melhor do que Marx que o "sujeito" de uma transformação radical das relações de poder capitalistas não preexiste à sua auto-constituição ou autodeterminação como tal. Esse sujeito ou agente colectivo só pode ser resultar da auto-organização da vontade democrática de autonomia e autogoverno igualitários daqueles que, a partir da sua experiência da dominação hierárquica, lhe opõem novas formas de acção e concepção instituintes.
5. Como já tive ocasião de dizer nos últimos dias e repeti hoje mesmo na caixa de comentários de um exigente post do Pedro Viana sobre o tema que aqui nos ocupa, continuo a manifestar "a minha surpresa pelo facto de o Manuel Gusmão não ter procurado (…) justificar uma versão mais aceitável de "patriotismo": valorizando a língua e o imaginário histórico, o vocabulário dos usos e costumes, etc.,sempre particulares em que a "vontade revolucionária" de democracia se apoia [e que toma como ponto de partida], ao mesmo tempo que as reformula e transforma".
Nesse plano, seria possível afirmar, por exemplo, que "não há antagonismo, antes complementaridade, entre a defesa da língua portuguesa ou outra e o trabalho de universalização requerido pela autonomia democrática". E assim por diante. Creio que seria a única maneira de dissociar uma certa afirmação de "patriotismo" do investimento funesto do mito da "independência nacional" . Ressalvando, todavia, que, também em termos de identidade cultural, "a 'identidade' conferida pela afirmação igualitária da 'cidadania' deve prevalecer sobre quaisquer outros traços identitários ou 'especificidades culturais', ao mesmo tempo que os garante e reformula no quadro geral da extensão do autogoverno e da autonomia". E, em última análise, é por isso que, pessoalmente, me recuso a definir a minha posição nestas matérias como "patriotismo" (ainda quando o façam outros de quem me sinto muito próximo): "para não me confundir nem promover que me confundam com um partidário da 'independência nacional', das virtudes do 'Estado-nação', e por aí fora. Ou, por outras palavras, para manter sem equívocos a minha oposição ao nacionalismo - reverso do internacionalismo e da aposta na mundialização da prioridade da democracia".
19/01/11
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