Tudo nos argumentos de Manuel Gusmão - que teve o mérito incontornável de levar a sério a questão e de procurar aprofundar o debate em seu torno - a propósito do patriotismo de Esquerda me parece pouco convincente. Não tanto o patriotismo de Esquerda, que é evidentemente possível, desde logo porque ambos os termos remetem para uma mesma origem jacobina. O que fia mais fino é realmente a possibilidade de um comunista ser patriota sem que isso se torne uma contradição de termos.
Gusmão procura resolver o problema conferindo uma dimensão classista ao patriotismo, servindo-se de uma imagem poética (e esta poética, bem entendido, não ocupa um lugar menor no debate político): a de um povo trabalhador, cujo núcleo duro seria a classe operária, oposto à burguesia nacional e internacional.
Esta imagem poética conhece o seu desenvolvimento no terreno da política de alianças. O patriotismo é a plataforma política que a classe operária utiliza para mobilizar e unificar os seus aliados, que vão desde os camponeses a certos industriais de vistas largas, incluindo pelo meio os comerciantes, os médicos e os engenheiros. Até aqui estamos ainda no terreno da repetição, bem entendido, da receita de Dimitrov tal como Álvaro Cunhal a teorizou para o caso português. Desde o I Congresso ilegal do PCP, em 1943, que a linha do partido procura conjugar a dimensão de classe com a dimensão nacional dentro deste quadro programático. Parece até que o Zé Neves já escreveu algumas coisas sobre este assunto e vale a pena, para quem gosta, ler também o livro de Francisco Martins Rodrigues recentemente reeditado.
Enquanto narrativa é tão válida como qualquer outra, ainda que, ao fim de quase 70 anos, talvez se justificasse um debate mais apurado sobre os seus resultados, vantagens e desvantagens, à luz da história do antifascismo, da revolução portuguesa e dos 36 anos de democracia liberal que se lhe seguiram.
Mas a questão parece-me mais séria do que isso e não se resolve apenas em termos de balanço histórico. A própria sociologia proposta por Gusmão - e que parece ser fiel aquela que inspirou o programa do candidato Francisco Lopes - padece de sérios problemas. Aquilo a que ele chama "a pequena burguesia urbana e franjas das camadas médias", ou "empregados dos serviços, quadros intelectuais, técnicos e científicos" parece corresponder sobretudo a uma multidão de trabalhadores assalariados que compõem o proletariado moderno. Aparecem aqui ao lado dos pequenos patrões, que são uma componente subalterna da burguesia portuguesa e assumem - na sua maioria - um comportamento político correspondente.
Este «povo» que autoriza o patriotismo de esquerda funciona aqui por isso como uma forma de esconjurar a «classe», um sujeito colectivo que se forma no contexto da luta contra a exploração e que nela elabora o seu programa político. Nesse sentido, a «pátria» surge aqui como uma outra forma de esconjurar o comunismo, a abolição do trabalhado assalariado e da propriedade privada.
A justificação desse esconjurar costuma ser o contexto histórico, o desenvolvimento insuficiente das forças produtivas e a imaturidade das relações de produção capitalistas. Mas nada no actual contexto histórico autoriza semelhante juízo. As forças produtivas e as relações de produção capitalistas estão de tal forma desenvolvidas e amadurecidas que a hipótese de uma pátria independente e soberana como lugar da emancipação se tornou uma miragem. E uma miragem particularmente perniciosa, na medida em que atrasa, entrava, dificulta, uma das tarefas fundamentais do momento: a coordenação das lutas a uma escala internacional.
A frase que funciona como justificação fundamental da posição de Manuel Gusmão - "No mundo contemporâneo, com a mundialização capitalista, a competição inter-imperialista e a actual crise sistémica do capitalismo, a submissão nacional é um instrumento de exploração e uma arma de opressão de classe." - labora num equívoco. Ela parece apontar uma conclusão evidente: a de que a insubmissão nacional seria um instrumento contra a exploração e uma arma contra a opressão de classe. Mas qualquer juízo crítico apontaria necessariamente uma conclusão oposta - a facilidade com que o quadro nacional foi integrado no e subordinado ao desenvolvimento do capitalismo torna imperiosa a sua ultrapassagem estratégica. Ele é sem dúvida um terreno de luta, mas é um terreno de luta que se revelou favorável à burguesia sempre que a questão se colocou de forma aguda.
Diz-nos Gusmão, em jeito de conclusão, que "o ónus da prova fica com aqueles que parecem não entender o carácter incoativo desta 1º fase da luta, com aqueles que não querem ver no sentido de nacional, assim como no de pátria, ou democracia, um combate entre classes."
Percebe-se bem a vantagem de semelhante formulação, que reivindica o respeito por uma tradição política e coloca quem discorda na posição de quem não quer ver. E contudo, bastaria que Manuel Gusmão se debruçasse de forma um pouco menos instrumental sobre o conteúdo dessa tradição política para que o «ónus da prova» permanecesse do seu lado. Essa mesma tradição, que nos fala de uma terra sem amos e faz questão de sublinhar que ela é internacional.
2 comentários:
Mas há ainda um outro e mais prosaico problema. Ao que sei, todo este debate sobre nacionalismo, patriotismo, comunismo e esquerda surgiu à conta da campanha presidencial. Com que despropósito se invoca o manifesto comunista, «a 1ª fase de luta», Marx e Lenine, para justificar uma campanha eleitoral a esse cargo tão revolucionário, anti-burguês e pró-activo que é o presidente da república? É caso para perguntar: o que pensará Marx de tudo isto?
nf
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