13/06/11

Que movimento por que democracia?

Embora concordando com muita coisa dita pelo Pedro Viana na sua reflexão pós-eleitoral, eu não diria que a formação e extensão de um movimento alternativo de democratização do regime de relações de poder que hoje nos governam requer a construção de uma grande narrativa unificadora. Tendo a pensar que a unificação e identificação (para si próprio e para o exterior a que se deverá endereçar) desse tipo de movimento requer, como condição necessária e suficiente, menos uma grande narrativa ou síntese de grandes narrativas, mas uma plataforma mínima de princípios orientadores muito simples ou um projecto não menos simples e claramente formulado de democratização geral. Esta plataforma ou projecto de democratização seria uma espécie de denominador comum dos cidadãos comuns que protagonizariam a acção do movimento.

Para concretizar um pouco melhor esta ideia, recorro agora à citação modificada de uma crónica que o Rui Tavares acaba de publicar. A modificação que introduzi foi só uma: onde o Rui escreveu "esquerda", eu escrevi "democracia", a fim de acentuar não a defesa ou afirmação destes ou daqueles interesses ou necessidades particulares, mas a exigência de igualdade de poder que é condição de um governo livre. A passagem da crónica, depois de intervencionada, diz o seguinte:

Mais do que uma doutrina ou uma ideologia, a democracia [esquerda] é a aliança daqueles que não são ricos nem poderosos. A democracia [esquerda] é uma aliança de pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade.

Sendo os ricos e poderosos naturalmente poucos, a democracia [esquerda] terá de ser, para ter força, a união dos muitos. E esses muitos são - como é evidente - muito diferentes uns dos outros. Não são, não podem ser, todos da mesma seita. Não têm, e não podem ter, todos os mesmos objetivos de futuro, a mesma visão do mundo, ou o mesmo estilo de vida. Isso é impossível, e a democracia [esquerda] que é democracia [esquerda] luta para que isso seja impossível, e para que ainda assim haja unidade entre os muitos, os que não são ricos nem poderosos, os que se arriscam a ser lixados se não souberem fazer uma aliança.


Se não me engano muito, temos aqui os primeiros elementos da plataforma ou projecto de democratização a que me referia atrás, não sendo difícil tirar deles um pequeno número de consequências necessárias que essa plataforma ou projecto deverá explicitar desde o início. Uma maneira clara de o fazer é em termos de acção e participação - ou, se se quiser, nos termos que a democracia requer e implica no regime ou modo de agir e participar.

Se "a democracia é uma aliança de pessoas livres e iguais", a organização de um movimento que a tenha por fim, terá de a ter também por meio e forma de organização. Ora, se todo o movimento é um poder e comporta relações de poder, o primeiro regime de exercício do poder a democratizar por uma "aliança de pessoas livres e iguais" é o da organização e direcção do próprio movimento. Esta democratização é condição necessária da que o movimento propõe no que se refere ao governo da sociedade.

As mesmas razões fazem com que as lutas e acção política do movimento visem a extensão e generalização da participação igualitária, responsável e regular - auto-organizada ou autónoma -, de cada cidadão nas decisões comuns, que vinculam a existência colectiva e a gestão das suas condições. O regime democrático resultante de "uma aliança de pessoas livres e iguais" é o de uma forma de governo ou exercício do poder cuja legitimidade implica a igual possibilidade de participação governante de cada um dos cidadãos governados.

Na medida - hoje enorme - em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Esta democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir nesse aspecto: implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc.

Trata-se, na realidade, de um ponto de importância capital, uma vez que, embora não saibamos talvez o que seria a democratização da economia, sabemos que sem ela não há democratização efectiva do poder político, pois boa parte deste é hoje exercido na esfera económica, e, mais ainda, a componente "direcção da economia" tende a primar cada vez mais no governo efectivo da sociedade sobre a parte que cabe ao aparelho de Estado propriamente dito. Assim, seria talvez preferível falarmos, não tanto do poder político e do poder económico da oligarquia governante, como de um poder político oligárquico que se exerce ora sob a forma da organização hierárquica da economia, ora sob a forma de controle dos aparelhos do Estado.

Se o que disse até aqui contém as bases que poderiam funcionar como uma plataforma ou projecto de democratização, vemos agora que essas bases configuram um denominador comum que não precisa de optar por uma das "grandes narrativas" ou tradições rivais que conhecemos, nem de as substituir por uma nova grande narrativa ou concepção do mundo unificada. Pode, em contrapartida, reunir gente que vem de tradições e horizontes diversos e cujas antecipações dos conteúdos substantivos de uma sociedade autónoma permanecem abertas ao debate. Não é que a ideia de democracia para que remete a descrição do Rui Tavares seja neutra ao nível das concepções do mundo ou que os conteúdos substantivos, os investimentos da vontade, os objectivos visados pelos que se identifiquem com o projecto de democratização, não sejam importantes. Efectivamente, quem quer a liberdade de decidir em pé de igualdade com todos os outros do governo das dimensões comuns ou colectivas da sua própria existência, quer essa liberdade em vista de alguma coisa a que poderíamos chamar aristotelicamente as condições de uma vida boa. O que aqui se sustenta é que essa questão essencial e múltipla só pode ser plenamente posta e indefinidamente retomada por todos e cada um daqueles a quem diz respeito através de uma acção de democratização instituinte cujos critérios e formas de organização procurei indicar acima.

O ponto que me importa marcar não é o do relativismo, mas o da criação. A "vida boa" não pode em deve ser concebida como um estado de coisas final ou, menos ainda, uma organização estatal cientificamente definitiva, mas como um fazer quotidiano, que quotidianamente se interroga e explicita, mantendo-se interminavelmente em aberto à posição de novos fins, imaginados, criados e propostos a partir das encruzilhadas comuns dos nossos trabalhos e ócios dos nossos dias. É esta concepção em acto da "vida boa" no fazer e na deliberação do que fazer que permite que, a partir de pontos de partida diferentes, correspondendo ao legado de diferentes "tradições" e/ou "grandes narrativas", a "aliança" de que fala o Rui Tavares e que é, no fundo, também a preocupação fundamental do post do Pedro Viana.

5 comentários:

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Concordo totalmente com o que afirmas. Mas talvez não tenhas entendido o que quis dizer com grande narrativa unificadora. Porque o que propões é isso mesmo: a democracia [esquerda] como aliança de pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade. Uma narrativa política tem 3 componentes: o passado (o contexto); o presente (o que é preciso fazer agora); o futuro (o que esperamos atingir). É "grande e unificadora" quando abarca todos os aspectos da vida em sociedade, construindo um todo coerente. O futuro já o identificaste: onde pretendemos chegar é a uma sociedade constituída por pessoas livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade. O passado/presente, que queremos deixar para trás, está há muito identificado, e é caracterizado por uma imensa desigualdade que atravessa todos os aspectos - políticos, sociais, económicos - da vida em sociedade. Falta construir a via, alterar o presente até chegarmos ao futuro. E identificas o modo como essa via deve ser construída, através da discussão e decisão democrática. Falta fazê-la, e aparecerem propostas coerentes com o que conhecemos do passado e o que queremos para o futuro. Acima de tudo, "grande narrativa unificadora" significa elaborar um conjuntos de atitudes e propostas que sejam coerentes e remetam para um conceito unificador, que neste caso seria democracia. Isto é, propomos tal e fazemos isto de tal maneira porque defendemos que "as pessoas devem ser livres e iguais, fraternas entre si na mesma dignidade". É quando as propostas políticas são acompanhadas de uma narrativa unificadora que elas fazem sentido, e, ressoando com as aspirações das pessoas, podem recolher um amplo apoio.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
tens razão no que dizes, mas o problema é que o termo "grande narrativa" sugere - contra a inspiração melhor do teu pensamento - um processo antecipadamente finalizado, bem como uma homogeneidade dos pontos de partida ou balanços do passado, que podem dar origem a equívocos. Quanto ao resto, ainda bem que sublinhas a solidariedade profunda das nossas perspectivas, que também eu nunca deixei de pressupor ao escrever este post.

Abraço também para ti

miguel(sp)

Anónimo disse...

Este texto do MS. Pereira é o corolário de meses de intensa reflexão e explicação/teorização política, em torno da política de Autonomia e Democracia. O " manifesto " tem múltiplos andamentos e séries de sentido político: complexos e circulares, agenciados em torno do agir,da criação e defesa da auto-instituição da sociedade e da economia. " A política não é luta pelo poder no interior de instituições dadas, nem simplesmente luta pela transformação das instituições ditas políticas, ou de certas instituições, ou mesmo de todas as instituições. A política é a partir de agora a transformação da relação da sociedade perante essas instituições; pela instauração de um estado de coisas no qual o homem social pode e quer olhar as instituições que regulam a sua vida assim como as suas próprias criações colectivas; portanto, que as pode e quer transformar cada vez que sente necessidade e desejo nisso ", C. Castoriadis.( La Société bureaucratique.UGE.paris 1972).Vamos ver se consigo, nos próximos tempos, conseguir enquadrar e realçar a teoria libertadora de Castoriadis face aos Habermas, Rortys e Bensaids que o tentaram contestar...De qualquer das formas, o texto do MSP é um repto fortíssimo e que merece toda a nossa atenção, claro como água cristalina e pura. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Salut, Niet!

msp

O Clandestino disse...

Subscrevo por inteiro. As considerações finais, em torno de como a "vida boa" deve ser potenciada, são particularmente marcantes.