01/06/11

À rasca com esta geração?


Uma estranha espuma tem vindo a subir à tona das marés de indignação que nos varrem as ruas e os ecrãs. Malta que toma a palavra e os microfones, posicionando-se à cabeça de coisas como o M12M ou a Acampada do Rossio. Jovens que parecem convencidos de que as suas habilitações académicas, quando fermentadas pela revolta, bastam para emitir reflexões e análises úteis ou inovadoras sobre o mundo, sobre a desgraça em que nos atolámos.
Longe de mim querer nivelar tudo; pelo que vi no Rossio, a maioria não é assim. Apenas os mais estridentes e pródigos no verbo. Os que se sonham fadados a papéis de Pasionaria e de Durruti nestas novas colunas de combatentes em busca de causas.
Por caridade, não afixo aqui o vídeo que me despertou esta reflexão. No entanto, a interveniente parece bastante satisfeita com o resultado: até o trouxe a público, sinal de que lobriga ali motivos para orgulho. Mas trata-se tão somente de um resumo de mil conversas de café, temperado por ocasionais especiarias exóticas: a ideia de que é preciso ver «o mundo de uma perspectiva um bocado marxista» para se saber que com fome não se pensa lá muito bem, referências a tudo e mais um par de botas, dos Deolinda ao salário mínimo (que seria «um terço do da Europa»). Sem esquecer a elitista proclamação de que quem não possui «educação» não «pensa». Passando, numa instância anterior, pela comparação de Merkel a Hitler (a sério) e pela descoberta da fórmula mágica que nos há-de redimir a todos: quando um partido de esquerda começa a liderar uma ditadura, deixa de ser de esquerda – e assim nos livraríamos, sem actos de contrição nem penosas exegeses, de todos os trastes incómodos, de Estaline a Pol Pot. Culminando com elogios à direita, por trabalhar com a realidade existente e não se entregar a utopias; o que me parece algo bizarro, dado o contexto, mas enfim.

O que falta em reflexão sobra, no entanto, em convicção histriónica, em firmeza nos gestos e na voz. Mesmo, ou sobretudo, quando os enunciados começam pelo omnipresente «acho que». Nada tenho contra a paixão nestas coisas da política; parece-me até um dos nossos grandes défices actuais. Mas aplicada sobre bases tão periclitantes remete-nos para a definição clássica e inevitável: «full of sound and fury, Signifying nothing.»
Ao lermos invectivas iracundas de malta de ideias mais estruturadas, vamos parar ao campo inverso mas infelizmente complementar: a erística aplicada a discussões bizantinas que emperram, desmobilizam, descredibilizam. Os cismas dentro de cismas, a milhas de processos fecundos em marcha aqui tão perto. Dando razão aos que impacientemente aguardam a hora de enquadrar os descontentes.
Imagino que a oportunidade de liderar uma revolução seja irresistível para muitos; mas urge que os colectivos que vão coalescendo entre os indignados atenuem e modulem as ânsias de protagonismo de quem patentemente ainda não tem asas para estes voos. Sob pena de tudo se esvair, para regressar à poesia, «Num grande mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dor! - quase vivido...»

5 comentários:

Anónimo disse...

claro que um governo de esquerda, de participação popular, não pode ser uma ditadura. É uma contradição. É como dizer que a républica democrática e popular da coreia do norte coloca em cheque a democracia.

Rita Delille disse...

excelente análise!

Miguel Serras Pereira disse...

Bravo, bravíssimo cmarada Luís!

Abraço grande

miguel(sp)

Luis Rainha disse...

Anónimo,
Também se poderia então afirmar que um estuprador de crianças não é católico. Ou que um polícia violento na realidade já não é um polícia. Os exemplos desta prática simplificadora e redentora não teriam fim. E era tão fácil, não era?
E se quer que lhe diga, acho que o governo cubano, por muitas razões, é de esquerda. E não deixa de ser uma ditadura, sem admissão de escolha entre filosofias de governo diversas.

zeh disse...

"Sem esquecer a elitista proclamação de que quem não possui «educação» não «pensa»."

Quando é que isto é dito? A afirmação aos 2min não é a reproduzida aqui. Apenas ouvi dizer que a falta das ferramentas da educação, do conhecimento de história e da prática da expressão de ideias dificultam a intervenção (política, presumo).

E a frase, da posta: "a ideia de que é preciso ver «o mundo de uma perspectiva um bocado marxista» para se saber que com fome não se pensa lá muito bem" também não reproduz com justeza o que foi dito. Citando:
"além de que, eu, quando tenho muita fome, tenho dificuldade em pensar. Mas isto é porque se calhar eu vejo o mundo de uma perspectiva um bocado marxista, acho que sem nada no estômago não há filosofia". Claramente, não é a ideia que foi reproduzida.

Isto sem me referir ao conteúdo, que até acho pouco estruturado e algo confuso por vezes e criticável outras.

Mas se o que esta posta exigia era rigor e contribuições de melhor qualidade, então peca pelo mesmo motivo, já que lhe falta rigor e precisão no enunciar da crítica (com a agravante que é escrita e pode ser mais pensada, por oposição ao discurso corrido que é criticado, inclusivamente por pormenores como dizer "os outros países da Europa" quando se tivesse sido dito "alguns países da Europa" ou "União Europeia", a afirmação de terço de salário mínimo estaria muito próximo da exactidão).

Critico eu portanto esta crítica. Pela falta de rigor que exibe no momento em que a exige, e pela parca contribuição para a qualidade do debate, no seu conteúdo. De que serve esta polémica? Nada acrescenta, aqui, ou a seguir quando afirma que as tais "invectivas iracundas" é que alimentam as "discussões bizantinas que emperram, desmobilizam, descredibilizam", sem demonstrar nem isso, nem que essas discussões não têm raiz noutro lado e em diferenças políticas de maior profundidade.

Se pode ser que tenham sido "cismas dentro de cismas", e aceito-o como possibilidade, então isto que aqui li foram cismas dentro de cismas dentro de cismas.