04/01/11

Castoriadis: "a ideia política e a questão política da autonomia do indivíduo e da colectividade (…) só são possíveis e só têm sentido cada uma delas através da outra"

Documentando a exasperação que sinto, e a investida polémica do Bruno sobre o Rui Bebiano veio avivar,  ao mesmo tempo perante os que insistem nas "limitações" e "restrições" que a "sociedade" impõe ao "indivíduo", como se não fosse a sociedade que o cria,  nomeia, atribui "valor",  proporciona os meios de expressão da sua singularidade e a ideia dos seus direitos, e perante os que falam como se pudéssemos conceber uma sociedade em vias de se tornar livre e igualitária sem expandir no movimento dessa transformação a liberdade dos indivíduos e a igualdade (no exercício do poder e dos direitos de cidadania) entre os seus membros individuais — aqui fica o excerto de uma reflexão de Castoriadis que talvez valha a pena ler e discutir.

O que é que quer dizer ser "socialista" ou mesmo "comunista"? Ser partidário da sociedade, da socialidade (ou da comunidade) - e contra quê? Toda a sociedade sempre foi, e sempre será, "socialista". (…) A sociedade mais ferozmente "individualista" é ainda "socialista" no sentido em que afirma e impõe essa significação, essa fabricação, esse "valor" social (…) que é o indivíduo. (…) Este facto elementar (…) foi conhecido desde sempre e formulado por pensadores tão diferentes como Platão, Aristóteles ou Diderot. Só através da sua ocultação, de há dez anos para cá [1979], puderam florescer novas variedades de confusão e de mistificação (…): a ficção de um "indivíduo" que viria ao mundo inteiramente acabado e determinado quanto ao essencial, e que a sociedade - a socialidade enquanto tal - corromperia, oprimiria, reduziria à servidão.

Ou então o termos socialismo carrega uma ambiguidade perigosa. Parece opôr um primado material, substantivo, "de valor",  da sociedade ao indivíduo — como se pudesse haver "escolhas", "opções" pela sociedade e contra o indivíduo. No plano teórico, das ideias e dos conceitos, uma oposição semelhante é (…) contra-senso. (…) Permanece prisioneira da filosofia e da ideologia burguesa, no interior da falsa problemática criada por ela. E acaba por tornar-se cobertura ideológica do totalitarismo, do mesmo modo que alimenta, por oposição, um pseudo-"individualismo", ou "liberalismo".
(…)
As sociedades que fabricam indivíduos servos (…) não os submetem à colectividade (…). Submetem-nos à instituição dada da sociedade, o que é completamente diferente. O selvagem não está submetido à tribo como colectividade efectiva: ele e a colectividade estão submetidos às regras estabelecidas pelos "antepassados". O judeu, o cristão, o muçulmano não estão submetidos à colectividade judaica, cristã ou muçulmana: são escravos da instituição dada da sua sociedade, de uma Lei imutável e intangível, uma vez que a sua origem é atribuída a uma fonte transcendente, Deus (…). Na própria Grécia, em Esparta, o espartano não está submetido aos espartanos,  mas a Esparta e ao que faz com que Esparta seja Esparta: não a sua localização geográfica, mas as suas leis, estabelecidas como intengíveis e atribuídas, no essencial, a um fundador mítico ou mitificado, Licurgo. A origem mítica da lei, como a doação das Tábuas da Lei a Moisés, como a revelação cristã ou o profetismo muçulmano, têm a mesma significação e a mesma função: garantir a conservação de uma instituição heterónoma da sociedade incorporando nessa instituição a representação de uma origem extra-social da lei,  que é assim posta, como por definição e essência, subtraída à actividade instituinte dos humanos.

Em contrapartida, onde houve ruptura da heteronomia instituída surgem simultaneamente (…) indivíduo autónomo e e colectividade autónoma. Mais exactamente, aparecem a ideia política e a questão política da autonomia do indivíduo e da colectividade, que só são possíveis e só têm sentido cada uma delas através da outra (…) [:] o indivíduo autónomo, que — sabendo-se embora no interior de uma ordem/desordem desprovida de sentido do mundo — se quer e se faz responsável pelo que é, pelo que diz, pelo que faz, nasce ao mesmo tempo e no mesmo movimento em que emerge a cidade, a polis, como colectividade autónoma, quer dizer que não recebe as suas leis de uma instância que lhe seria exterior e superior, mas as estabelece ela própria e para si própria.

Cornelius Castoriadis, "Socialisme et société autonome", Le contenu du socialisme, Paris, UGE, "10-18", 1979, pp. 12-15.

6 comentários:

Niet disse...

A opção teórica e política construída por Castoriadis ao longo de perto 50 nos,de crítica ao duplo processo de alienação e repressão iniciado pela Revolução Russa de 1917( e afrontamento sem limites face ao Capitalismo Global) é única e singular garantindo a autonomia - a justiça e a igualdade- de todos e de cada um, caro MS Pereira: Estás a ver os volumes da série " La Création Humaine ", dos seminários na EHESS proferidos pelo Castoriadis, o nosso Corneille,dos anos 82/3 até 89, salvo erro. No segundo volume-De Homère à Héraclite- há um texto fundamental sobre " O pensamento Político ", onde ele defende a Democracia Directa, não sem elogiar a " Constituição de Atenas " elaborada por Aristóteles...No fim de uma cerrada argumentação histórico-filosófica através do mundo grego do séc.VII- Tucidides/Péricles,Heródoto e Aristóteles( contra Platão,claro!)- Castoriadis precisa: " A democracia é o regime que não tem a temer senão os seus próprios erros- e acabamos por renunciar a nos queixar do que for que aconteça ,ao pé de quem quer que seja, porque somos, tanto quanto é humano e realizável,o autor. A democracia é efectivamente o regime que arrisca pelo que realiza. Não é garantia contra si-própria. Os outros regimes não conhecem o risco, permanecem sempre na certeza da escravidão. Não estão como a democracia garantidos contra si-próprios- mas garantem a todos a escravidão. A debilidade contemporânea desejaria que a política fosse o domínio da existência, o único, de onde a incerteza estivesse ausente. Grita histericamente porque nada poderia limitar, pela ausência de normas transcendentes, o que um qualquer regime democrático e revolucionário arriscaria fazer. Como se não soubessemos que o essencial da história é constituído pelas monstruosidades que realizaram os regimes que se reclamavam de tais normas.Eis, onde estamos, apòs 25 séculos de reflexão política ".Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Cuidado, Niet - não vá o nosso amigo Bruno Peixe fazer-te engrossar as hostes dos "liberais simpáticos" que não deram pela "viragem matemática" do Badiou ou não sabem datar o corte epistemológico - ou será ontológico? - com ela, entretanto operado, sob os signos conjugados e abençoados por Paulo de Tarso da "suplementação fenomenológica" e do Amor.

Salut et liberté

msp

brunopeixe disse...

Grande Miguel,

Eu também aprecio o tom jocoso, e se a tanto me desse o engenho e a arte, logo escreveria mais assim. E eu bem sei que estas coisas da net, é mais picardia e tal, mas convinha talvez não sacrificar o rigor por causa de uns aplausos da claque, que os terás sempre, já que também és generoso é és pródigo a dá-los aos teus amigos.
Podes estar descansado tu e o Niet, que eu não ponho ninguém em lado nenhum e, acima de tudo, tenho cuidado em não por palavras e intenções na boca e na cabeça de ninguém, ao contrário de ti.
Desafio-te a encontrares algo que eu tivesse escrito e que desse a entender que era preciso saber o que quer que fosse acerca do Badiou, da matemática, da ontologia, fenomenologia, economia, conselhia ou o raio que as parta a todas. E sabes porque é que não escrevi? Simples, porque não é isso que defendo. Não acho que seja preciso qualquer pergaminho ou conhecimento especializado para tomar uma posição política. Já tu não achas a mesma coisa, porque parece que tens necessidade de dar porrada no Badiou para marcar as tuas posições. Vê-se o resultado: acertas ao lado.
O que eu fiz, muito simplesmente, foi contrariar o que tu e o Bebiano publicaram sobre o Badiou, muito simplesmente porque estava incorrecto, tal como já te vi corrigires outras pessoas a respeito de outros autores. Quer isso dizer que na tua opinião só quem sabe do Trotsky e da Luxemburgo é que pode tomar posições políticas? Não, pois não?
Então seria bom se da próxima vez, em vez de julgares que os outros, que pensam de forma diferente da tua, são todos papagaios de um qualquer mandarim académico ao serviço do KGB, lhes desses a mesma consideração que esperas de quem lê os teus textos. É para isso que as tomadas de posição se tornam públicas.
Se não podes sempre trocar os textos com a tua malta do libertarismo republicano na horizantal. Sempre com muitos abraços libertários.

Um abraço,
Bruno.

James disse...

Saudades do Castoriadis, do Andre Gorz (não era esse o nome dele, salvo erro), do Raoul Vaneighem e tutti quanti.

Gostava muito de saber onde páram os meus livrús dessa gajada toda, devem estar a apodrecer numa qualquer garagem, em vez de estar a apodrecer aki em casa (humidade dixit)

Miguel Serras Pereira disse...

Caro James,
o nome do Gorz era, de facto, Gerhard Hirsch, e o homem usou também o pseudónimo ("ecologista") de Michel Bosquet. Castoriadis, antes de passar a assinar assim, teve também diversos pseudónimos… O primeiro livro dele publicado em Portugal, antes ainda do 25 de Abril de 1974, era assinado por P. Cardan.

Miguel Serras Pereira disse...

Bruno,
o que o Rui Bebiano e eu escrevemos?!?!
Quanto ao que tu defendes como regime político ou regime de acção, terás de ser tu a explicá-lo. Vê - ou revê -, por favor, a última das minhas réplicas no outro post em cuja caixa de comentários temos trocado argumentos.
Abrç

msp