A propósito do que o Zé Neves, o Ricardo Noronha e alguns seus comentadores já aqui escreveram sobre o problema, há um comentário de nf, na caixa do post de Manuel Gusmão no 5dias, cujo primeiro parágrafo me parece refutar quase insuperavelmente as justificações "objectivas" — ou "socialistas científicas" — do "patriotismo" e da "independência nacional":
Não é por o capitalismo se dar muito bem num mundo geopolítico também, mas não só, determinado por estados-nação que se tem que «ser» patriota. Quer dizer, não é o facto da luta de classes se desenvolver também à escala nacional que justifica a afirmação de patriotismo, mesmo dando de barato que, sendo assim, haverá sempre formas de identificação de classe a nível nacional.
Assim, dos factos invocados não se pode deduzir o "valor" do patriotismo do Estado-nação. Mas nf continua:
Se tentar definir a unidade do povo português materialmente é o cabo dos trabalhos, por outro lado enveredar pela convencional alternativa de encontrar um fundo espiritual – seja simbólico, psicológico, cultural, étnico, etc. – para os que cá estão deixará (…) o internacionalismo patriótico de esquerda em maus lençóis.
E volta, sem dúvida, a ter razão - pelo menos se por "patriotismo" entendermos qualquer coisa que justifique a defesa do Estado-nação, a exaltação da nacionalidade. No entanto, o "patriotismo" — embora eu pessoalmente prefira pôr o termo de parte pelos equívocos que provoca — pode ser usado por alguns noutro sentido — como bem lembrou, valendo-se de Orwell, o Ricardo Alves, no comentário a um post do Miguel Madeira sobre outros aspectos da mesma questão. E é, de resto, estranho que Manuel Gusmão — poeta maior da língua desta região da Europa — não tenha recorrido a esse "patriotismo" da língua no seu texto.
Estamos a falar aqui de outra coisa — evocada pelas célebres palavras de Pessoa, quando diz que "a minha pátria é a língua portuguesa" —, coisa essa que, ela sim, ainda que não sem problemas, pode ser objecto de uma valorização ou investimento afectivo não incompatível com uma adesão de parte inteira ao internacionalismo, e à prioridade, que veicula um antagonismo irredutível, da democracia sobre a "independência nacional". Essa outra coisa é a língua-mãe e, juntamente com ela, um certo conjunto de elementos de uma paisagem ou repertório de usos e costumes, comparáveis por excelência aos recursos das línguas, e cuja pluralidade — pluralidade de tradições reformuladas e emancipadas da autoridade tradicional através de uma crítica interna da vida quotidiana — só poderá, à semelhança da pluralidade das línguas, alimentar os motivos quotidianos com origem no "mundo da vida" que, como sugeria Lefebvre, inspiram, no plano da convivência ou coexistência colectiva informal, o trabalho de universalização inseparável da autonomia democrática.
Que me entendam bem: não se trata de defender aqui o multiculturalismo. Com efeito, penso que a mundialização da cidadania governante, ou da participação igualitária de todos no exercício do poder político (incluindo, sem dúvida, o governo da economia), equivale à universalização de um traço cultural distintivo e primeiro — ao primado cultural desse traço: "nós somos e/ou queremos ser aqueles que fazem, sabendo-o, sob responsabilidade e por conta e risco próprios, as suas próprias instituições e leis". Ora, ao primado da acção deste traço distintivo não há ídolo ou outro princípio cultural que não seja necessariamente dessacralizado. Mas tal não significa que em todas as cidades e partes do mundo se fale a mesma língua, se cultivem ou prefiram os mesmos ócios, se adoptem as mesmas soluções arquitectónicas, as mesmas "técnicas do corpo", os mesmos regimes alimentares, as mesmas artes favoritas — ou, em suma, sejam escandidos do mesmo modo os trabalhos e os dias.
É justamente a este propósito que as considerações de Orwell, recordadas pelo Ricardo Alves, podem servir-nos de inspiração, e ser radicalizadas em termos que as desembaracem, desenvolvendo-as, dos resquícios do que de "patriótico" (ou "nacional") ainda as limita. O mesmo se poderia dizer da reflexão — radicalmente anti-imperialista, se se quiser, e de tradição benjaminiana — de um George Steiner sobre a multiplicidade das línguas e a universalidade paradoxal de Babel. Mas, não sendo aqui o momento de inventariar ainda que sumariamente os diferentes contributos que nos podem ajudar a relançar o problema, talvez possamos pelo menos assumir desde já esta ideia, decididamente antagónica do culto, investimento ou justificação da "independência nacional": o direito à diferença — à pluralidade e pluralização, quer ao nível das singularidades individuais, quer ao das linguísticas e da organização dos trabalhos e ócios de cada dia na cidade - tem como condição necessária a universalização política e cultural da democracia.
Adenda: Já depois da publicação do texto supra, vejo que Manuel Gusmão se limita, no essencial, a responder a nf, sempre na caixa do post já citado, o seguinte: É basicamente o facto de a luta de classes se travar também a nível nacional que justifica (torna necessário e compreensível) que a classe operária tenha bandeiras ou objectivos de luta (nacionais ou patrióticos). O que, com o devido respeito, nada traz de novo ao debate e incorre no mesmo vício de passar do facto da existência de um "quadro nacional" ao seu investimento como "bandeira". Dizer que, devendo ser travada no quadro nacional, a luta contra a exploração deve valorizar a realidade nacional, e/ou se transforma em combate patriótico, é pouco mais ou menos a mesma coisa que dizer que, operando-se no quadro nacional, também a exploração — pelo menos quando e onde lhe interesse salvaguardar esse quadro como condição ou garantia — tem objectivos patrióticos.
17/01/11
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
miguel, a ver se concordas:
se leio bem, a questão será não abdicar da heterogeneidade cultural - e eu não posso deixar de concordar com isto mesmo. a própria luta pela heterogeneidade pode ser pensada (e em parte deve) como uma luta contra o nacionalismo, já que este é uma máquina homogenezeidora (sendo certo que todos os países possuem hinos e bandeiras diferentes, a verdade é que todos trabalham os mesmos símbolos, partilhando o que um autor chamava o kit identitário).
a questão está em não pensar a diferença cultural como diferença nacional e, em qualquer dos casos, tomá-la sempre na sua relatividade (de como o fascínio pelo campo é relativo ao ódio pela cidade e vice-versa).
em relação à língua, isto implicaria não pensarmos a diversidade linguística apenas (ou tanto) em torno de diversidade nacional mas também em torno da diversidade social (do erudito à gíria).
e dp ainda haveria a questão do esperanto... mas deixo para outra
abç
Sim, Zé: dita de outro modo, a ideia é essa. Teríamos de discutir melhor o que entender por "diferença cultural" e a transformação/batalha cultural requerida pela autonomia democrática. Mas teremos outras ocasiões de o fazer e de nos entendermos também a esse respeito.
Abrç
miguel (sp)
Simplex:
1. Sei onde nasci, daí que existam afinidades, laços, cumplicidades, amizades, amores e ódios.
2. "Nacionalismo" , seja em nome de que bandeiras fôr é uma coisa serôdia, reaccionária, anti-qui-qui-quada, que faz tanto sentido como voltar a viver em cavernas.
3. O dinheiro não tem pátria, e às vezes nem existência física.
Portanto a ideia é chafurdar no passado e apelar à parvoíce patriótica e inculta, para "compensar" ? Tontaria...
:-(
4. Quanto a mim a "discussão" (se existindo...) é uma absoluta perda de tempo. O que é, é, voluntarismo pode ser muito romântico e bonito, mas não adianta. Quanto mais se superarem essas 'barreiras mentais' que fazem de fronteira entre uns e outros, mais à frente se vai.
Desculpem, eu podia dizer isto tudo noutro registo de linguagem e cheinho de citações a acompanhar para me dar 'argumentos de autoridade', mas realmente não me está a apetrecer...
:-)
Enviar um comentário