15/01/11

Rui Bebiano: sobre "a melhor forma [por vezes] de evitar males bem piores"

Não é segredo para quem leia alguma coisa dos meus posts que discordo sem reservas de certas tomadas de posição do Rui Bebiano. Ignoro, por exemplo e para me ficar por coisas recentes, o que o leva a tentar resgatar as piruetas teóricas de Badiou, e sinto calafrios quando o vejo condenar Maquiavel para o incluir numa lista de apologistas da tirania, senão de precursores do totalitarismo contemporâneo — isto para já não falar da reconstituição grosseiramente distorcida que faz da expedição australiana de Geza Roheim e lançando um púdico véu sobre o culto supersticioso e talvez inconsciente da razão de Estado subjacente às razões que o levam a declarar-se apoiante de Manuel Alegre… Mas nada disto — nem mesmo a recusa, pouco dialógica, de dar conta e razão do que diz a quem o interpela civilizadamente na blogosfera sobre aquilo que ele, na mesma, escreve — me impede de chamar a atenção para a lucidez e a honestidade deste seu post sobre a acção da "rua tunisina":

Será um lição para os povos dos Estados do mundo islâmico, dentro dos quais o poder arbitrário, a desigualdade entre ricos e pobres, entre quem pode sempre e quem apenas deve, a pobreza extrema da maioria da população, a exploração do trabalho, a falta de liberdade, o analfabetismo e a ignorância, a intolerância usada como forma de opressão, são camuflados por uma retórica sectária, nacionalista ou antiocidental, apresentada pelas autoridades políticas e religiosas como vinculada a uma «tradição islâmica» na verdade inexistente. Foi o libanês Samir Kassir quem, num livro que lhe custou a vida – Considerações Sobre a Desgraça Árabe, editado em 2006 pela Cotovia – falou dos crimes dessa gente que se mantém no poder fazendo crer aos seus povos «que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido», remetendo-os ao culto «da desgraça e da morte». Na realidade, uma alteração de política imposta pela revolta generalizada e pela vitória, ainda que temporária, dos objectivos nucleares dos sublevados, como esta que acaba de acontecer na Tunísia, suscita o exemplo de uma oportunidade, de um trilho, que só pode preocupar as elites criminosas, cujo poder se funda na opressão e se alimenta do ódio ao outro que vive a milhares de quilómetros de distância.
Mas será uma lição também para os povos do chamado ocidente, em particular para os da Europa do sul, contidos por sistemas políticos bloqueados, sem capacidade de renovação e de motivação, e narcotizados por uma comunicação social manipuladora, controlada pelos grupos financeiros, que se esforça para impor a ideia de que toda a perturbação é necessariamente má. Espalhando, como um vírus, a fantasia de que os núcleos concêntricos do poder são imunes aos protestos dos cidadãos e à possibilidade de uma mudança de orientação na organização da economia, na escala dos valores sociais, na escolha das prioridades políticas. A revolta extrema, dura e radical, com contornos por vezes brutais, como aquela que vimos agora nas cidades, vilas e até povoados tunisinos, pode desenhar num horizonte geograficamente alargado, a contracorrente, a percepção de que existe um momento no qual a paz social carece realmente de alguns safanões. Estes movimentos bruscos e perturbantes não são agradáveis – só um tonto ou um louco gosta do cheiro das barricadas em chamas, do ardor dos gazes lacrimogéneos, de sangue derramado –, mas podem ajudar a reencontrar a ideia de que a mudança radical não é um mal em si. E de que é ela pode até representar a melhor forma de evitar males bem piores.

1 comentários:

Niet disse...

A " cena " política tunisina está longe do desenlace. Apesar da " forte " pressão da administração de Obama, as élites políticas concentradas no partido único, RCD,conseguiram mediar duas sequências de passagem do poder em 24 horas, o que é obra. A Constituição foi talhada à medida, e só o PM, o economista pró-ocidental, M. Ghannouchi, pode "salvar" a situação caso imponha no Parlamento a convocação de eleições gerais livres e independentes com todas as forças políticas. Mas, os especialistas médio-orientais do Foreign Policy e do F. Affairs, Nathan J. Brown e Elliott Abramas, respectivamente, mostram-se altamente circunspectos face a interpretação " oficiosa " da letra da Constituição... E à falta de qualidade das forças da Oposição.Um blogue francês de alto nível, Slate. Com, aludia à visibilidade crescente no seio das classes médias tunisinas de um general- Rachid Ammara- e induzia da forte " pressão " que os EUA exercem nas Forças Armadas. Niet