31/01/11

Sobre as escolas públicas e privadas

Muita gente da minha área politica é capaz de não concordar com o que vou escrever, mas não tenho numa objecção de principio a um sistema em que as famílias possam por os filhos numa escola privada (ou numa escola organizada pelo sindicato, ou por uma "associação pedagógica alternativa", ou um colectivo autogerido de professores, ou seja o que for) e que seja o Estado a pagar (e não família em causa).

Desde que:

- o valor que o Estado pague à escola privada (ou sindical, ou "alternativa", ou...) seja equivalente o custo marginal de um aluno na escola pública

- a escola privada respeite os direitos dos seus trabalhadores

- a escola privada não cobre propinas adicionais ao subsidio estatal

- a escola privada não seleccione alunos (ou, se o fizer, o faça nas mesma circunstâncias da estatal)

Vamos analisar isso ponto por ponto (excluindo a questão dos direitos laborais, que é tão óbvia que não precisa de ser explicada):

Pagamento de acordo com o custo marginal - o "custo marginal" corresponde ao aumento de despesa que o Estado tem por mais alunos frequentarem a escola (ou, inversamente, a poupança que há se alunos deixarem de frequentar a escola). Os defensores dos "contratos de associação" falam muito do "custo por aluno", mas escondem essa diferença entre o custo marginal e o custo médio (despesa total a dividir pelo número de alunos) - no custo médio estão incluídos custos de estrutura que as escolas públicas têm sempre, tenham muitos ou poucos alunos. Ora, se um aluno não frequenta a escola pública mas o Estado tem as mesmas despesas que teria se ele a frequentasse, porque razão o estado deve ir ainda gastar dinheiro adicional a subsidiar uma escola privada? Só faz sentido subsidiar alunos numa escola privada se esse subsidio for igual (ou menor) do que o dinheiro adicional que o Estado gastaria se eles fossem para a escola pública.

Ausência de propinas adicionais - nos sistemas de "contratos de associação"/"charter schools" o Estado paga e as famílias não pagam nada; no sistema do cheque-ensino, ass escolas privadas fixam o valor das suas propinas (tal como agora) e o Estado dá uma espécie de subsidio às famílias para pagar as propinas, que as familias podem complementar com dinheiro delas (caso a escola que querem cobre uma propina mais alta que o valor do cheque-ensino). Eu sou contra o segundo sistema, tanto por razão filosóficas como pragmáticas:

A razão filosófica é acho que só faz sentido subsidiar alunos na escola privada se for para assegurar igualdade de acesso à educação; mas, num sistema em que as escolas cobrem propinas adicionais além do subsidio, isso quer dizer que as escolas "de elite" continuaram a ser para a elite económica e social, logo não vejo que essas escolas (ou os seus alunos) devam receber subsídios.

Depois há a razão pragmática - um sistema desses arriscava-se a uma espiral inflacionária: como as "melhores" escolas continuariam fora do alcance de muita gente, haveria pressões para o governo subir o valor do cheque-ensino (em nome da "justiça social"), que por sua vez incentivaria as escolas a subirem também o valor das propinas (já que agora os seus clientes poderiam pagar mais), o que levaria ainda a mais aumentos no cheque-ensino, numa potencialmente enorme transferência de riqueza para as escolas privadas mas que pouco ou nada benificiaria os alunos e as suas famílias (tanto no privado como no público)

- Não selecção de alunos - a razão aqui é a mesma que a "razão filosófica" apresentada no ponto anterior: não faz sentido estar a subsidiar escolas reservadas a elites. Há quem argumente que todas as escolas (desde que tenham mais procura do que capacidade) precisam de seleccionar; eu até acho que não, mas, a ser assim, pelo menos que essa selecção seja feita por uma regra geral comum a todas as escolas e que não crie circulos viciosos de favorecimentos (os melhores alunos irem para as melhores escolas e ficarem ainda melhores, os piores irem para as piores e...).

Eu até tenho uma ideia de, a ter mesmo que haver selecção de alunos por escolas, de qual seria talvez o sistema menos mau [Atenção: ver adenda no fim do post]: quanto mais afastada fosse a nota do aluno face à nota média, mais prioridade teria (ou seja, os bons e os maus alunos ficariam à frente dos médios).

Razões para isso:

1º um sistema que desse prioridade aos bons alunos teria o problema que referi ali atrás; um sistema que desse prioridade aos maus alunos poderia levar a incentivos perversos. Um sistema que favoreça os bons e maus alunos não teria esses problemas

2º a razão mais importante - os bons e maus alunos são, por norma, pessoas mais complicadas que os médios, logo irem para uma escola "boa" ou "má" pode ser decisivo para a sua vida futura; já os alunos médios tendem a ser "médios" em qualquer situação - note-se que não estou a dizer que as "boas escolas" para os "bons alunos" serão necessariamente as mesmas "boas escolas" para os "maus alunos" (sem ter feito qualquer estudo sobre o assunto, baseando-me apenas na minha intuição, diria que os "maus alunos" precisam de muita atenção em quantidade e qualidade, os "médios" de atenção média em quantidade e qualidade, os "bons" de muita atenção em qualidade e pouca em quantidade).

Adenda: na verdade, acho que o sistema que o Pedro Viana sugere ("sortear os lugares existentes") muito melhor e mais simples do que o que propus.

9 comentários:

OmarLittle disse...

Madeira,

O currículo dado nas escolas deve ser regulado também. Pode ser dada alguma flexibilidade, mas dentro de certos limites.

Percebes certamente que é óbvio este ponto.

Abraços

Omar Little

Miguel Madeira disse...

Sim, sobretudo no sentido de haver padrões mínimos (estilo terem que ensinar a evolução, mesmo que depois tenham aulas adicionais a falar do "inteligent design")

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Parece-me que há alguns equívocos no teu post. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que se pretende dizer com escolas públicas. São escolas em que as despesas são pagas pelo Estado? São escolas cujas instalações são propriedade do Estado? São escolas em que os funcionários são públicos?

Ora, num sistema educacional em que "a escola privada não cobre propinas adicionais ao subsidio estatal", e todos os alunos recebem esse subsídio, efectivamente todas as despesas de todas as escolas são pagas pelo Estado. Ou será que haveria pais a rejeitarem o subsídio e quererem pagar do seu bolso? Portanto, no sistema que propoes, o financiamento do sistema educacional é 100% estatal. Ou seja, é um sistema ainda mais "público" do que o que existe actualmente, no sentido da sua dependência financeira do Estado. É certo que a propriedade física das escolas podia não ser do Estado, mas isso não me parece muito relevante. E tal como tu afirmas, havendo respeito pelos direitos dos trabalhadores, tal efectivamente quereria dizer que eles seriam tratados (quase) como funcionários públicos. Em resumo, não me parece que sistema que defendes seja muito diferente dum sistema educacional 100% público, em que há grande autonomia funcional e pedagógica das escolas, as quais poderiam ser constituídas por iniciativa não apenas do Esatdo mas também de grupos de cidadãos.

Um outro equívoco tem a ver com a necessidade de selecção, quando há excesso de subscrição. Não há tal necessidade. Basta sortear os lugares existentes. Com um sorteio não há selecção consciente, que é o que se discute neste caso.

Finalmente, não, não acho que os pais tenham o direito de decidir como querem ver os seus filhos educados (ou não). Algo que falta na tua análise. Dás a entender que qualquer "projecto pedagógico" é aceitável. Algo com o que discordo totalmente. A educação duma criança é responsabilidade de toda a comunidade onde esta se insere, em particular, também mas não só, da sua família, biológica ou de acolhimento. Portanto, a comunidade deve poder decidir colectivamente que projectos pedagógicos são aceitáveis, e os que não são. Eu estou consciente que há perigos nesta minha posição. Mas prefiro arriscar más decisões colectivas que afectam todos, do que a certeza que deixando a decisão a múltiplas "ditaduras familiares" haverá inevitavelmente crianças sacrificadas às crenças tresloucadas de alguns pais.

Um abraço,

Pedro

Anónimo disse...

clap clap clap
posso não concordar com muito muito do que propões, mas só ver alguém a desalinhar, pensando, merece o meu sincero aplauso.
faz falta mais disto e em mais assuntos.

joão viegas disse...

Ola,

Bravo por lembrar que a questão é bastante mais complexa do que normalmente se entende. Não tenho tempo para descer ao detalhe e não conheço bem o caso português mas, de facto, acho que existe aqui uma questão complicada que consiste em saber em que medida, e com que condições, podemos admitir, e mesmo encorajar, pessoas privadas a encarregar-se de serviços publicos.


Esta questão devia reter a atenção de toda a esquerda.

E para quem pensa que se trata de uma questão meramente teorica, lembro que no sector social, no sector sanitario, no sector da saude, é usual delegarem-se serviços publicos a entidades "privadas" (no sentido de não-publicas"), que são normalmente entidades não comerciais. O desenvovimento do sector cooperativo, objectivo de Abril inscrito na constituição de 76, obedecia à mesma logica.

So acho que v. devia dizer de maneira ainda mais firme o obvio : o sistema publico de ensino NAO SERVE PARA SELECIONAR. Serve, entre outras coisas, para impedir que a "selecção" (nomeadamente no mercado de trabalho) seja socialmente injusta. Mas a sua principal incumbência e o que deve nortear a sua organização é mais simples, e consiste apenas em administrar à população o ensino gratuito a que ela tem direito, para maior beneficio do pais.

Atenção porque as ideias aqui estão muito baralhadas, e a direita tem interesse em que assim aconteça, mas convém lembrar o basico :

Um serviço publico que acentua a selecção social pré-existente, ou que a facilita, é um contrasenso absoluto. E' uma forma de roubar aos pobres para dar aos ricos.

Dee Dee disse...

Eh eh eh
Leio o MM há muito tempo e normalmente afirma-se um padrão: em geral, concordo com a maior parte do que escreve excepto quando o contexto é a educação. O padrão consolida-se:

1- Neste concordo, aliás, tentei alertar a jornalista do Público para este facto (no blogue educar em português). Só uma duvida (que estará relacionada com a minha falta de cultura económica), além do custo marginal por aluno, não seria importante conhecer o da Turma? Afinal, se entrarem numa escola 20 alunos que não obriguem á criação de Turmas novas o custo associado será muito baixo, agora 3 ou 3 alunos que impliquem uma nova unidade deste tipo terão associados custos muito superiores.
2- Pois, mas a prática tem revelado ser impossível conciliar este principio com a utilização de veículos privados para o ensino ( posso deixar links se o desejar). A razão é simples : excesso, em relação ao número de lugares existentes, de pessoas com habilitação para leccionar (que, como sabe, dá mais força aos patrões) e ineficiência da ACT e Justiça em geral (a existência de um sistema público maioritário também produz incentivos contraditórios). O ponto é: à partida, tem de se dar primazia a um destes valores.
3 e 4- Sim e Sim- simplesmente as escolas podem facilmente dar a volta á mais omnisciente das leis neste capitulo. Podem, por exemplo, dar alguns capítulos da Física a uma velocidade superior á adequada remetendo os alunos para aulas «facultativas» e remuneradas á parte (claro que os alunos podem arranjar essas aulas cá fora…). Este mecanismo também pode funcionar como forma de selecção dos alunos, quem não tiver económico para recorrer a ajuda exterior pode sentir-se pouco tentado a inscrever-se nesta escola . Outra alternativa seria, por exemplo, a escola oferecer cursos de Alemão durante o Verão e depois não dar alternativas á escolha desta língua, cujo ritmo de aprendizagem seria intenso. Enfim, se calhar estou a delirar mas, o meu ponto é: muitas escolas e uma parte importante dos pais querem esta segmentação (até por tradição) e não teriam dificuldades em arranjar estratégias para a perpetuar (embora a ideia de sorteio seja muito interessante).

Dee Dee disse...

Já agora, tanto quanto percebi, a ideia, do comentador anterior sobre a existência de um
«Um serviço publico que acentua a selecção social pré-existente» não é no caso português, normalmente corroborada pelos resultados do PISA (as interpretações variam, a oficial fala nas virtudes do sistema de ensino mas já vi alguém atribuir a um estudo do Banco de Portugal a ideia :« os pais portugueses dedicam pouca atenção aos filhos, desta maneira a mais-valia associada aos pais é mitigada»)


Alías, este debate teria sido bem mais oportuno há cerca de dois meses, quando a OCDE publicou os resultados dos desempenhos comparados de diversos modelos de ensino. A dimensão do debate na altura é quase insignificante comparada com a atenção dedicada a este assunto hoje, a pretexto de uma questão menor, relacionada com a uma diferença de 10000 euros por Turma entre uma proposta do Governo e uma organização que representa menos de 4,5% das escolas… É impressionante a capacidade de mobilização mediática de alguns sectores.

Anónimo disse...

Em relação ao primeiro comentário...

O currículo deve ser regulado? Porque achamos normais que crianças diferentes, com pais diferentes, de lugares diferentes, de aptidões diferentes, de interesses diferentes, devem ter a mesma educação ou pelo menos com minimamente padronizada?

Porque toda a gente tem que aprender a teoria da evolução? Alguém me consegue explicar isto? Que acontecia se não se ensinasse a teoria da evolução? Que acontecia se não se ensinasse História de Portugal? seríamos mais ignorantes? Tornamo-nos menos ignorantes só porque sabemos mais coisas? Não devíamos antes interessarmo-nos pela sapiência ao invés de conhecimentos estandardizados?

Já viram a tortura que se transformou dar aulas e aprender? Estamos no caminho certo na padronização do ensino?

Hakeem disse...

Junto mais um Colégio para a colecção dos que se andam a portar mal: O Colégio da Nossa Senhora da Assunção, concelho de Anadia. Deixo aqui um link de um blogue local onde ando a debater o mesmo que vocês e parece que estou a falar para paredes. Denunciem mais este caso paradigmático, pois vocês têm muito mais capacidades que eu para “entalar” estas corporações.

http://anadia100gente.blogspot.com/2011/01/sos-movimento-educacao-fecha-colegio-de.html