É a esta e a outras questoes que tenta responder o ensaio de Paul Mattick.
Trata-se de uma adaptação do seu livro Business as Usual: The Economic Crisis and the Failure of Capitalism, publicado em abril 2011 nos EUA pela University of Chicago Press. Uma primeira versão deste livro foi publicada em francês, Le jour de l’addition (L’insomniaque, Paris, maio 2009). Paul Mattick é ex-editor do International Journal of Political Economy. A traduçao é de Luis Leitao.
O futuro sombrio do capitalismo
À parte a dissensão, claramente baseada na não-realidade, dos seus membros republicanos, a Comissão de Inquérito à Crise Financeira do Congresso norte-américano dificilmente poderia esperar que o relatório que elaborou em Janeiro suscitasse uma grande agitação. Ao fim de ano e meio de investigação, e após o testemunho de académicos e de outros peritos económicos, o resultado não foi além da ideia comum de que a recessão económica que explodiu à vista de todos em 2007 podia ter sido evitada, e a sua causa foi uma combinação de uma regulação governamental frouxa e da assumpção de riscos excessivos por credores e devedores, particularmente no mercado da habitação. Esta mesma ideia comum assegura-nos que uma acção governamental rápida evitou que a Grande Recessão se tivesse transformado numa depressão mais profunda, e que a recessão deu lugar à retoma, embora «frágil». Porém, independentemente do número de vezes que for repetida, esta ideia comum permanece pouco convincente. Por que razão a retoma é frágil? Por que razão se mantém o desemprego obstinadamente elevado? Por que razão os bancos, que viram recentemente reforçada a sua liquidez por essa acção governamental rápida, estão tão pouco interessados em emprestar esse dinheiro para a expansão da actividade económica? Por que razão as crises de dívida soberana na Europa se repetem nos Estados Unidos na forma de orçamentos estaduais em descalabro? Por que razão os políticos apelam constantemente à austeridade, ainda que a economia permaneça incapaz de satisfazer as necessidades de milhões de pessoas em termos de habitação, cuidados de saúde, educação, e mesmo alimentos? A falência da hipotética ciência da economia, já demonstrada pelo fracasso dos especialistas preverem a catástrofe, é sublinhada pela sua aparente incapacidade quer para explicar o que está a acontecer actualmente quer para conseguir um consenso a respeito de medidas adequadas para enfrentar a situação. Um aspecto digno de nota acerca dos comentários sobre as perturbações económicas dos nossos dias é que, apesar da constante referência à Grande Depressão da década de 1930, bem como às múltiplas recessões que ocorreram desde a Segunda Guerra Mundial, tem havido poucas referências ao facto de as depressões económicas terem constituído um aspecto recorrente da economia capitalista desde a Revolução Industrial. Uma atenção mínima à história faz os acontecimentos recentes parecerem longe de serem inabituais. Na realidade, desde o início do século XIX até aos anos 30 do século passado, o capitalismo passou entre um terço e metade da sua história em depressões (consoante o modo como são datadas por diferentes autoridades), que aumentaram constantemente de gravidade até à Grande Depressão de 1929. Foi apenas a relativa superficialidade das recessões desde a Segunda Guerra Mundial que deu origem à ideia de que o capitalismo não iria mais sofrer os altos e baixos característicos dos seus primeiros 150 anos como forma social dominante. A escolha da teoria económica parecia ser entre a ideia neoliberal do capitalismo como um sistema auto-equilibrante e a concepção keynesiana, que considerava que a economia era controlável pela manipulação governamental. A desadequação de ambas as visões, demonstrada pelos acontecimentos económicos actuais, suscita um outro olhar sobre a dinâmica a longo prazo do sistema capitalista. Estudiosos anteriores daquilo que nos finais do século XIX se chamaria o ciclo económico entenderam-no como uma característica da economia de mercado, em que a maioria dos bens é produzida para venda. Nessa economia, a razão que está na base da produção de bens e serviços pelas empresas é fazer dinheiro; as empresas expandem-se e contraem-se, e substituem um dado bem ou serviço que produzem por outro em resposta ao nível de lucros obtido pelos seus investimentos. Nos princípios do século XX, estudos estatísticos (efectuados pelo economista americano Wesley C. Mitchell e pelo National Bureau of Economic Research) demonstraram que a alternância entre prosperidade e depressão seguia as flutuações da rentabilidade das empresas.
A explicação mais elaborada dessas flutuações, a teoria de Karl Marx da taxa de lucro, veio de tão longe da corrente principal da teoria económica que foi em grande medida ignorada pelos estudiosos do capitalismo, incluindo os de esquerda. Mas a história económica sugere a justeza da sua ideia de que, enquanto a prosperidade cria condições para uma eventual crise, a depressão que lhe sucede torna possível uma reanimação económica, pois a redução dos custos de investimento — graças às falências, quedas de preços, volatilização dos rendimentos dos créditos ao investimento, e diminuição dos custos da mão-de-obra devido ao aumento do desemprego e à melhoria da produtividade dos novos equipamentos — propicia taxas mais elevadas de retorno, produzindo aumento do investimento e, por consequência, uma economia em expansão. Apesar dos seus aspectos particulares, a Grande Depressão e a retoma pós-1945 da economia capitalista seguiu, em linhas gerais, o padrão estabelecido em episódios anteriores de colapso e regeneração económicos. A depressão foi uma depressão longa, e o nível de destruição física e económica de capital foi anormalmente elevado (especialmente durante a guerra na qual desembocou). Por conseguinte, não surpreende que a recuperação conduzisse a um período de prosperidade, que durou até meados dos anos 70, que os economistas alcunharam de Idade do Ouro, pela sua duração e amplitude. A relativa ausência de depressões sérias no decurso desses anos deveu-se também ao prolongamento para o período de pós-Depressão daquilo que se veio a chamar métodos keynesianos: a despesa pública em proporção com o produto interno bruto, nos países da OCDE, aumentou de 27% em 1950 para 37% em 1973. Nos Estados Unidos, como observou, em 1988, a economista Joyce Kolko, "cerca de metade dos novos postos de trabalho depois de 1950 foi criada por gastos do Estado, enquanto nos outros países da OCDE se verificava uma evolução semelhante." A ideia de Keynes tinha sido de que os Estados endividar-se-iam em épocas de depressão para relançar a economia, e quando, em consequência disso, a economia se expandisse, podia-se-lhe fazer facilmente reembolsar a dívida através dos impostos. Na realidade, a gestão da crise transformou-se numa «economia mista» público-privada permanente. Quando a Idade do Ouro chegou ao seu termo definitivo em meados da década de 1970, o aumento gigantesco da despesa pública que evitou nessa altura um retorno à situação de depressão constituiu outro passo no caminho dos défices cada vez mais problemáticos dos nossos dias. A mesma razão para o aumento da despesa pública — lucros insuficientes — tornou impossível liquidar a dívida pública resultante.
Entretanto, à dívida pública vieram somar-se quantidades cada vez maiores de dívida das empresas e dos particulares, tornando possível a aparente prosperidade das últimas duas décadas. Promessas de pagar algures no futuro tomaram o lugar do dinheiro que a economia capitalista em abrandamento não conseguia gerar. Uma vez que os Estados, as empresas e, num grau cada vez maior, os indivíduos utilizaram créditos para comprar bens e serviços, a dívida pública, das empresas e das famílias surgiu nos balanços dos bancos e de outras empresas como lucros. Mas o reembolso da dívida exige dinheiro gerado pela produção rentável e pela venda de bens e serviços. E, como observa Robert Brenner, professor de história da UCLA: "Entre1973 e a actualidade, o desempenho económico nos EUA, Europa Ocidental e Japão, medido por todos os indicadores macroeconómicos padrão, deteriorou-se de ciclo económico para ciclo económico e de década para década (com excepção da segunda metade da década de 1990). Igualmente revelador é o facto de, durante o mesmo período, o investimento de capital à escala mundial, e em todas as regiões, com excepção da China, inclusivamente na Ásia Oriental [países recém-industrializados], desde meados da década de 1990 ter sido constantemente mais débil."
O resultado foi, em termos gerais, o reaparecimento, em 2007, da depressão evitada na década de 1970.
Quando o colapso da grande bolha hipotecária americana, em 2007, desencadeou uma crise global, os estados nacionais viram-se apanhados entre, por um lado, a necessidade de manter o sistema a funcionar, injectando dinheiro nas firmas financeiras «demasiado grandes para poderem ser deixadas falir», apoiando governos locais e «estimulando» a economia privada, e, por outro, o imperativo de limitar o crescimento da dívida pública antes que ela atingisse o ponto de uma insolvência em grande escala. Os Estados Unidos tinham, em 1930, uma dívida pública de 16 mil milhões de dólares; hoje, ela é de 14 milhões de milhões, e continua a aumentar. A dívida federal tinha já atingido 37,9% do PIB em 1970, e era de 63,9% em 2004, quando o Fundo Monetário Internacional advertiu para o facto de a combinação do défice orçamental da América e do seu desequilíbrio, em crescimento rápido, da balança comercial ameaçar «a estabilidade financeira da economia global». Os apelos de homens de negócios e de políticos de todo o mundo para que se efectuassem cortes na despesa pública, independentemente de terem sido exagerados pela ideologia neoliberal, representam o reconhecimento de uma novidade pós-anos 30: o facto de a carta keynesiana ter sido jogada profusamente. Por consequência, embora o capitalismo dos nossos dias seja em muitos aspectos uma versão muito transformada do que era no século XIX, esta transformação não induziu uma diminuição dos problemas sistémicos diagnosticados pelos seus críticos desse século. Eles apresentam-se apenas em novas formas. Com efeito, a crise que se desenha perante nós será provavelmente mais terrível do que as Grandes Depressões de 1873-93 e 1929-39. A contínua industrialização da agricultura e urbanização da população — calcula-se que, em 2010, mais de metade dos habitantes do planeta vivia em cidades — tornou cada vez mais pessoas dependentes do mercado para se abastecerem de alimentos e de outros bens essenciais. A situação, no limite da sobrevivência, em que se encontram hoje as massas urbanas do Cairo, de Daca, de São Paulo e da Cidade do México ver-se-á repetida nos países capitalistas avançados, pois o desemprego e a austeridade imposta pelos governos afectam cada vez mais pessoas, não só nas cinturas industriais do mundo desenvolvido, mas também em Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Madrid e Praga. Abandonado aos seus próprios instrumentos, o capitalismo prenuncia dificuldades económicas para as próximas décadas, com ataques cada vez maiores aos salários e às condições de trabalho daqueles que, por todo o mundo, ainda tiverem a sorte de estar empregados, ondas de falências e fusões de empresas capitalistas, e conflitos cada vez mais graves entre organismos económicos e mesmo entre nações acerca de quem é que vai pagar isto tudo. Que empresas de automóveis, e em que países, sobreviverão, enquanto outros se apoderam dos seus activos e dos seus mercados? Que instituições financeiras serão esmagadas por dívidas incobráveis, e quais sobreviverão para se apoderarem de porções maiores do mercado mundial do dinheiro? Que lutas se desenvolverão pelo controlo das matérias-primas, como o petróleo e a água para irrigação e a água potável, ou os terrenos agrícolas? No entanto, por mais sombrias que sejam estas considerações, elas deixam de fora dois factores que, paradoxalmente se encontram relacionados, e que auguram outros efeitos terríveis para o futuro do capitalismo: o iminente declínio do petróleo — presentemente a base de todo o sistema industrial — enquanto fonte de energia, e o aquecimento global causado pelo consumo de combustíveis fósseis. Mesmo que a estagnação persistente abrande as alterações climáticas ocasionadas pelo efeito de estufa, os danos já infligidos são extremamente graves. Elizabeth Kolbert, uma jornalista nada dada a exageros, intitulou o seu artigo extremamente informativo de Notas de Campo de uma Catástrofe. A fusão dos glaciares ameaça não só os panoramas suíços, mas o abastecimento de água potável de populações inteiras em regiões como o Paquistão e as quedas de água andinas; nos últimos anos as secas têm arruinado a agricultura australiana e chinesa, enquanto as cheias devastam periodicamente as casas de dezenas de milhões de pessoas situadas nas terras baixas da Ásia do Sul. Infelizmente, o cortejo de desastres está ainda no seu início. Ele seguirá a par de uma economia estagnada, e o aumento das emissões de gases de estufa, que o regresso a uma verdadeira prosperidade produziria, só o agravará.
O que estas persistentes tensões sociais prenunciam é que a degradação da economia, independentemente das suas inflexões cíclicas, constituirá apenas a introdução a uma crise do sistema social que, por se basear nas leis da física e da química, transcende as questões estritamente económicas. Se o pico de abastecimento do petróleo e as catástrofes das alterações climáticas não provocarem uma grande transformação da vida social, será difícil imaginar o que poderia fazê-lo. Esta ideia pode parecer hoje irreal àqueles de nós que ainda vivem, em grande parte, naquilo que resta da prosperidade material forjada pelo capitalismo do pós-guerra, do mesmo modo que a penúria e o terror dos habitantes do Congo dilacerado pela guerra são difíceis de conceber vistos de Nova Iorque ou de Buenos Aires. Mas isto mostra apenas uma deficiência de imaginação, e não a irrealidade dos desafios que nos aguardam. Catástrofes locais como a torrente de petróleo que brotou da plataforma de perfuração da BP para o Golfo do México em 2010 tornarão porventura mais fácil de compreender do que se trata. A maior incógnita no que respeita ao futuro do capitalismo reside na tolerância da população mundial à devastação que estas dificuldades do sistema social infligirão às suas vidas. As pessoas são capazes de reagir de forma construtiva perante a ruptura dos padrões normais de vida social, improvisando soluções para problemas imediatos de sobrevivência física e emocional, como está amplamente demonstrado pelo seu comportamento perante catástrofes como terramotos, cheias e destruições causadas pela guerra, bem como em períodos anteriores de penúria económica. As pessoas do século XXI não perderam a capacidade de enfrentar as autoridades sociais em defesa dos seus interesses, como se provou com os protestos dos jovens em Atenas, as greves dos funcionários públicos em Joanesburgo e, muito recentemente, e de maneira espectacular, com os egípcios, que, pelo menos por agora, derrubaram um estado policial que durava há muito tempo. De qualquer modo, elas vão ter oportunidades adequadas para explorar essas possibilidades no futuro próximo se quiserem melhorar as suas condições de vida nas formas concretas que uma economia em desagregação exigirá. Embora actualmente ainda estejam à espera do prometido retorno da prosperidade, em dado momento os milhões de novos sem-abrigo, como muitos dos seus antecessores nos anos 30, podem perfeitamente olhar para as casas recém-penhoradas e vazias, os bens de consumo invendáveis e os alimentos do Estado armazenados e ver os materiais de que necessitam para sustentar a vida. No entanto, a simples apropriação e uso de habitação, alimentos e outros bens, violando as leis de um sistema económico baseado na troca de bens por dinheiro, implica em si mesmo um modo radicalmente novo de existência social.
A relação social entre empregadores e assalariados, que é uma relação que junta a dependência mútua e o conflito inerente, tornou-se vital para todos os países do mundo. Ela irá moldar decisivamente as formas como os povos irão vivenciar e enfrentar o futuro. Evidentemente, tal como no passado, os trabalhadores exigirão que a indústria ou o Estado lhes proporcionem empregos, mas se a primeira pudesse rentavelmente ocupar mais pessoas, já o estaria a fazer, enquanto o segundo tem, mesmo no presente, de confrontar-se com os limites da dívida soberana. À medida que o desemprego continua a aumentar, talvez os trabalhadores, com e sem emprego, se apercebam de que as fábricas, os escritórios, as explorações agrícolas, as escolas e outros locais de trabalho continuarão a existir, mesmo que não possam ser geridos de modo rentável, e que podem ser postos a funcionar para produzir bens e serviços de que as pessoas precisam. Mesmo que não haja postos de trabalho suficientes — emprego remunerado, nas empresas ou no Estado — há muito trabalho a fazer se as pessoas organizarem a produção e a distribuição por si próprias, fora dos constrangimentos da economia empresarial. Isto significaria, evidentemente, construir uma nova forma de sociedade.
O capitalismo existe já há tantas gerações, provando a sua vitalidade ao afastar ou absorver todos os outros sistemas sociais no mundo inteiro, que parece fazer parte da natureza, ser insubstituível. Mas tem limites históricos, patentes na sua incapacidade de fazer face aos desafios ecológicos que produziu, gerar crescimento suficiente para empregar rentavelmente os milhares de milhões de pessoas que se amontoam em barros de barracas em África, na América do Sul e na Ásia, e, em número cada vez maior, na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, e escapar ao dilema da dependência de um grau de participação pública na vida económica que absorve dinheiro do sistema de iniciativa privada. Do mesmo modo que a Grande Recessão demonstrou os limites dos meios instalados nos últimos 40 anos para conter a tendência do capitalismo para as catástrofes periódicas, ela sugere a necessidade de, finalmente, levar a sério a ideia de que, como diz o ditado, outro mundo é possível.
Paul Mattick
13 de Março de 2011
2 comentários:
incapacidade?
muitos modelos previram o que aconteceu
curiosamente os primeiros foram os dos demógrafos japs nos anos 70
nunca tiveram foi muita visibilidade
idem para as bolhas desde a de 1926 na Florida até à de 2006 na Irlanda
e a intervenção estatal cada vez maior na economia e no mercado de emprego
deve-se em parte à mecanização que provoca desemprego e à neo-ecologia política que levou à migração da indústria pesada
e à urbanização forçada das sociedades, nunca se criaram estimulos para a manutenção das pequenas comunidades
isso levou à necessidade de reconstrução e manutenção sucessiva das estruturas de suporte das megalópoles nos últimos 20 anos e
isso teve enormes custos
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