21/04/11

Portugal: um retrato social

 

Bem sei que nada há de original num jogador de futebol que chora após uma derrota e que esta foto não tem a carga épica transcendental de Eusébio em 1966. Contudo, deixem-me partilhar convosco  o meu apreço  incondicional pela forma como joga e faz jogar Carlos Martins. 
Não se trata de o considerar o melhor ou o mais decisivo dos jogadores (papel que ficou reservado para Moutinho no primeiro ano de juvenis). Pelo contrário, estamos a falar de um jogador que foi, durante anos, o paradigma do perdulário, do irresponsável, do enorme talento comprometido pelo descontrolo emocional.
Martins é grande - diria mesmo que é o maior -  porque vive cada momento do jogo com prazer (mesmo quando está a recuperar uma bola perdida) e intensidade, a condição essencial para ser um grande jogador. Mas também porque o seu futebol tem a largura e o comprimento do campo todo, o permanente entendimento dos movimentos do conjunto dos jogadores (colegas e adversários) e a inteligência para jogar e fazer jogar, no espaço e no pé, oferecendo largura e inventando profundidade.
Martins é ainda uma metáfora poderosa. Arde dentro dele uma chama imensa, um fogo que parece estar sempre prestes a tornar-se um incêndio descontrolado, uma vontade que claramente o ultrapassa, mas que ele se recusa a abandonar. Um herói mitológico que aceita qualquer desafio e que não pestaneja quando ouve o treinador dizer que quer ganhar a Liga dos Campeões. Imagino que tenha sido ele o único no balneário a levar a sério as palavras (ou, se quiserem, a palavra) de Jesus a esse respeito e a perguntar em voz alta do que é que os outros todos se estavam a rir. Esse jogo de dados com o impossível confere-lhe uma aura quase sebastianista, de quem não leva o mundo suficientemente a sério para acreditar que ele não pode ser conquistado e transformado num quinto império benfiquista. A realidade mete-se por vezes no meio do caminho, mas o que é que interessa a realidade quando o Benfica está a jogar? 
Ontem Villas Boas ganhou claramente o "duelo táctico" a Jesus, quando fez subir a defesa e deixou a equipa  mais lenta sem espaço para pensar o jogo. Mas não é certo que isso venha a ser o fim da história. Como acontece quase sempre, tudo se decidiu nos pormenores: uma bola que se perde numa saída para o contra-ataque, um golo marcado em fora de jogo, a felicidade de um ressalto que deixa o guarda-redes batido. A cultura hegemónica yuppie, com o seu culto da "vitória" e do "sucesso" está pronta para crucificar Jesus (bem sei, bem sei, esta teve pouco de original). E contudo, o treinador parece-me ser o menor dos problemas. No sentido em que não há ninguém comprovadamente melhor do que ele disponível para vir treinar o Benfica, o que me parece um argumento mais soberano do que esta coisa que se assemelha vagamente a uma República. 
Mas sobretudo porque, se a expressão "jogar à Benfica" tem algum significado, então ela deve corresponder a mais do que aos resultados e troféus conquistados, deve ser uma cultura, no sentido mais ambicioso do termo. E eu, desde que sou pequenino, nunca tinha visto uma equipa que se assemelhasse tanto ao sentido que atribuo a essa expressão: que joga quase sempre no fio da navalha, disposta a tudo, sem rede de segurança, pronta a ser goleada por uma equipa israelita, mas não a abandonar a pressão alta e a posse de bola. Essa equipa pode perder tudo ou ganhar tudo, jogar bem, mal ou sofrivelmente, mas nunca se encolhe nem baixa a cabeça, a não ser para esconder as lágrimas, no fim do jogo.  É, mais do que uma equipa, uma epopeia. Ninguém a representa tão bem como este número 17 que não acredita em inevitabilidades e que não desistiu de escrever a sua própria história, que é também a nossa. Todos os dias somos bombardeados por exemplos de sucesso, como Cristiano Ronaldo, mas a inteligência furiosa de Martins é uma inspiração bastante mais interessante nos tempos que correm. É como ele que temos de jogar: ora em largura, ora em profundidade, ora no espaço, ora no pé, mas sempre com a determinação de quem não se rende. No final, poderá sempre haver um canto do relvado onde nos deixarmos cair. Mas só no final.

4 comentários:

André Carapinha disse...

É isso mesmo, apesar do relativo insucesso desta época, é inegável que o sistema de Jesus voltou a devolver ao Benfica a sua identidade futebolística, um 4x4x2 ofensivíssimo, um jogo de ataque e risco constante, e um futebol que antes de ser eficaz tem, primeiro, a obrigação de ser espectacular. Aqueles que entendem o que é ser do Benfica sabem-no bem, e não estão dispostos a trocar isto por equipas "equilibradas", "cínicas", "pragmáticas" e etc. É por isso que, não sendo um treinador perfeito, que nenhum o é, falhando aqui e ali de forma evidente em opções tácticas, o Jesus continua a ser o treinador ideal para o Benfica.

João Valente Aguiar disse...

Sou adepto do maior clube português dos últimos 30 anos e do clube português com maior palmarés a nível internacional de sempre - o glorioso FCP - e, por isso, não tenho nenhum pudor em reconhecer que o Benfica começou a jogar no risco constante com o Jorge Jesus. Nesse aspecto concordo em absoluto com o teu post.
Todavia, eu acho que isso é muito lindo no que toca a definir a idiossincrasia de uma equipa, mas não diz nada de uma determinada equipa ser batida no plano desportivo por outra. Atenção, não estou a fazer a apologia do sucesso, da treta da competitividade ou da eficácia dos supostos vencedores per si, mas o futebol (como qualquer desporto) rege-se e é jogado pelo primado desportivo que lhe é inerente: no caso, marcar golos. E para isso tem de saber roubar melhor a bola ao adversário, controlar melhor a posse de bola, etc. etc. n coisas que estamos fartos de saber.

Portanto, sou contra a ideologia de ver o futebol como uma réplica do mercado, da competição, etc. Mas não concordo que sejam as marcas puramente identitárias que contem grande coisa para o desempenho especificamente desportivo de uma equipa. Penso que se usa isso mais para justificar um mau ano de futebol jogado do que como um assunto desportivamente relevante. E isso acontece quando o Benfica ou o Porto não são campeões.
Abraço

Ricardo Noronha disse...

Parece-me, João,que o facto de vários jogadores que passaram pelo Porto falarem habitualmente do espírito do balneário, de irem todos almoçar e etc. não é casual. Não explica tudo, mas tem o seu efeito, como sabe qualquer pessoa que jogue à bola. Isso cria qualquer coisa como uma "identidade". Vários grandes jogadores que passaram pelo Porto sem singrar também parecem ilustrar isso: Diego, Luís Fabiano, Pizzi, etc. Por outro lado, um jogador que não sabia pontapear uma bola quando chegou aos séniores, como Bruno Alves, tornou-se um dos melhores centrais do mundo. Maniche, que era um médio pouco mais do que sofrível, tornou-se um jogador de primeiríssima água. Portanto, isso tudo entra na equação.
O ponto é que o Benfica até nem jogou mal este ano. Perdeu 9 pontos nas primeiras 4 jornadas, com muito dedo da arbitragem e alguns erros próprios. Mas o Porto também cometeu erros e beneficiou amplamente de penaltis duvidosos (isto é um eufemismo) e vistas muito largas dos árbitros. A partir daí, entre duas equipas que estão mais ou menos ao mesmo nível (a do Porto teve menos mudanças e tem jogadores mais jovens e mais rápidos), o factor psicológico tornou-se decisivo. O Porto passou a jogar "com toda a tranquilidade" e o Benfica a jogar sobre brasas. Pôr o David Luiz a defesa esquerdo no Dragão fez o resto.
Tudo isto para dizer que o Porto tem muito mérito, mas que a nossa percepção destes assuntos tende a ser moldada por análises de jornalistas que dizem sempre a mesma coisa: os que ganham são brilhantes, os que perdem são incompetentes. E que há mais aqui em jogo.
Dito isto, tanto a habitual megalomania benfiquista (os melhores, os maiores, jesus é maus se não ganharmos tudo, etc...) como o revanchismo portista (a vitória deste ano demonstra que o Benfica o ano passado ganhou na secretaria, etc...) têm ocupado demasiado espaço público. Um bom sintoma é o programa da TVI que substituiu o Domingo Desportivo. Não apenas começa à 1h da manhã, como é preciso ouvir uma hora de conversa circular antes de poder ver os resumos propriamente ditos.
Há um excesso de discursividade e ouve-se quase sempre a mesma lenga-lenga sobre o trabalho, a competência, a superior organização, e assim sucessivamente. Mas para encontrar uma boa análise dos jogos propriamente ditos, é um sarilho.
E isto para não falar do insuportável Rui Santos, que parece nunca ter dado um pontapé na bola a vida inteira.

João Valente Aguiar disse...

Eu não acho que o Benfica ganhou na secretaria no ano passado. Mereceu. Ponto.

Quanto ao facto de o Benfica ter perdido mtos pontos no início do campeonato. O campeonato é uma maratona e as primeiras jornadas tb contam. E não acho que, este ano, o Porto e o Benfica tenham sido tão iguais como defendes. Em cinco jogos entre os dois clubes o Porto ganhou quatro. E dois na Luz, ainda por cima com grande carga emocional (ser-se ou não campeão no estádio do adversário; passagem ou não para a final da Taça). Eu, como tu, sou jovem mas em vinte anos de ver futebol não me lembro de mesmo o Porto ter ganho tantas vezes numa única temporada ao Benfica.
E essa da arbitragem tornou-se cliché. É verdade que houve jogos em que o Porto foi bafejado pelo apito ao longo dos anos. Mas sejamos marxistas :) os clubes ditos "pequenos" são sempre mto mais roubados nos jogos com os dois "grandes" e meio. E mesmo entre si. As vitórias desportivas do Porto a nível internacional não podem ser explicadas por esse factor. É a mesma coisa que dizer que o Benfica foi campeão europeu por ser o clube do fascismo. Por outro lado, essa da arbitragem parte do pressuposto que só o Pinto da Costa é mafioso. Pode ser o mais bem-sucedido nesse capítulo mas não acho que, do ponto de vista substantivo, o Luis Filipe Vieira o seja menos.

Bom, mas voltemos à luta porque o FMI ainda cá está :-)

Abraço