11/08/10

Movemo-nos na noite sem saída

 

A sucessão de escândalos, episódios, campanhas e histórias mal contadas que vão compondo a vida política portuguesa está-se a tornar de tal modo  folhetinesca que se torna difícil não adivinhar a existência de uma lógica por trás de toda esta loucura. Todos se entretêm a dar pareceres e a comentar os méritos ou deméritos de investigações e acusações, como se cada uma delas isoladamente nos pudesse dizer alguma coisa sobre o comportamento do governo do dia, o que o antecedeu ou o que se prepara para lhe suceder. E tudo isto em vão, uma vez que a natureza mesma dos negócios públicos torna imperativo o reino do segredo sobre todas as coisas, de tal forma que os pequenos fragmentos de verdade que nos são servidos em dose mínima diária mais não são do que armas de arremesso trocadas entre dois exércitos, cujo campo de batalha é o aparelho de Estado. Entre magistrados e respectivo sindicato, procuradores e investigadores, será fácil encontrar versões mas improvável obter justiça. Alguma coisa virá por certo ao de cima em cada um destes factos escaldantes, mas tudo indica que isso será insuficiente para compreender a magnitude da guerra de manobras em curso.
É próprio do nosso tempo que cada  facto isolado oculte o movimento mais geral em que está inserido. E uma vez que demasiadas pessoas dependem de demasiadas pessoas que dependem de demasiados silêncios, todo aquele que arrisca uma interpretação mais arrojada do que está a acontecer terá necessariamente que ser ignorado. Neste delicado contexto, até os mais lúcidos e corajosos adoptam redobradas cautelas; e quem os poderá censurar? Na nossa época, a fronteira que separa os sábios dos loucos é suficientemente ténue para que se possa transitar de um lado para o outro em função de uma simples troca do condicional pelo indicativo.  A ausência de uma consciência histórica - que foi em tempos um instrumento essencial na disputa do poder - está a conduzir as várias  facções em disputa para um beco sem saída, no que ao regime diz respeito.
Para quem arruma o Estado de Direito na prateleira da melhor ficção e sabe da história o suficiente para ler o liberalismo como uma narrativa, as coisas não se apresentam menos complicadas. Qual é, precisamente, o lugar de tantas e tão embaraçosas traquibérnias da república? Estará a oligarquia a correr riscos desnecessários ou fará tudo isto parte de uma estratégia mais ampla para a subversão do regime? 
A II República tem dado provas de extrema maleabilidade (chamemos-lhe assim) no entendimento do que são as liberdades e garantias inscritas na sua Constituição. Não nos consta que já alguém tenha pago um preço demasiado elevado pela sua dedicação à causa da burguesia portuguesa. Nem os mais delicados trabalhinhos sujos - tenham  eles sido a rede bombista durante o PREC, o assassinato de Sá Carneiro, a participação na guerra suja do Estado espanhol contra os independentistas bascos, ou as várias balas perdidas disparadas por agentes da polícia - levaram gente à prisão. 
Porquê, então, um esforço tão indiscreto para terraplanar o sistema judiciário e ligá-lo ao telecomando?  Que enormidade se prepara, ao ponto de exigir uma prévia limpeza de balneário num ponto tão nevrálgico ? A quem serve este processo de obscurecimento, que caminha a passos largos para um estado de coisas em que legalidade e ilegalidade se tornam indistintas ou subordinadas apenas à conveniência do momento, como se a cúpulas desta conspiração tivesse lido Lukács? Por quem dobram os sinos?
Estas perguntas procuram avidamente resposta. Sem uma visão integral do teatro de operações, torna-se impossível identificar a disposição real das trincheiras inimigas e o destacamento que procurar passar à ofensiva arriscará ver-se dizimado pelo fogo inimigo, sem ter sequer a possibilidade de calcular a sua proveniênica. A lógica por trás desta loucura tem que ser identificada, a sua disposição exacta cartografada, o seu poder de fogo rigorosamente calculado. É preciso submeter o presente a um rígido controlo biométrico. E agora um pouco de Debord, hábil cronista deste  tempo,  que sobre ele falou com tanta mais liberdade quanto já está morto e não pode por isso pagar o elevado preço que se cobra à lucidez:
Actualmente já não existe julgamento com a garantia de relativa independência, daqueles que constituíam o mundo erudito; daqueles que, por exemplo, antigamente, manifestavam o seu orgulho numa capacidade de verificação, permitindo a aproximação àquilo a que se chamava a história imparcial dos factos, de acreditar pelo menos que ela merecia ser conhecida. Já nem existe mesmo verdade bibliográfica incontestável, e os resumos informatizados dos ficheiros das bibliotecas nacionais poderão suprimir ainda melhor os traços. Perder-nos-iamos pensando naquilo que foram noutros tempos os magistrados, os médicos, os historiadores, e nas obrigações imperativas em que eles se reconheciam, na maior parte das vezes, nos limites das suas competências: os homens parecem-se mais com o seu tempo do que com o seu pai.
Aquilo de que o espectáculo pode deixar de falar durante três dias é como se não existisse. Pois ele fala, então, de outra coisa qualquer e é isso que, portanto, a partir daí, em suma, existe. As consequências práticas, como se vê, são imensas. [...] Antigamente, apenas se conspirava contra uma ordem estabelecida. Hoje conspirar a seu favor é uma nova profissão em grande desenvolvimento. Sob a dominação espectacular, conspira-se para a manter, e para assegurar aquilo que só ela poderá chamar o seu bom rumo. Esta conspiração faz parte do seu próprio funcionamento.
Comentários sobre a sociedade do espectáculo (1988)

1 comentários:

Justiniano disse...

Um bom texto, caro Ricardo Noronha. O apelo à lucidez e à prudencia! E sempre ambivalente, a prudencia. Este texto é, por isso, prudente. Até a tirada do Debord pode valer para ambos os lados, desta estória, claro!!