24/09/10

O vírus da peste (4)

Excerto de uma crónica de Manuel António Pina:

Mas o racismo não raro contamina as próprias vítimas, tornando-as também em algozes. O mais inquietante exemplo é talvez aquilo que Steiner chama o "ódio de si", ou "autoproscrição", do judeu, que explicaria o desconcertante anti-semitismo ou rejeição do próprio judaísmo que, desde Paulo de Tarso, é notório em numerosos intelectuais judeus (mais perto de nós, alguns houve que chegaram a aprovar Hitler). Que sentir senão repugnância com uma resposta que o presidente da Câmara de Torres Vedras, cigano, deu ao "Expresso" a propósito da expulsão de França de ciganos romenos e búlgaros: "Os ciganos portugueses vêem com apreensão a chegada dos 'novos ciganos'. Sentem que os seus comportamentos desviantes ou bizarros podem pôr em causa a integração"?

4 comentários:

Justiniano disse...

Caríssimo MSP, esta temática é, sem dúvida, interessantíssima. Complexa e interessante!
Tanto na construção ofensiva como defensiva.

Ricardo Alves disse...

Um judeu não pode escolher deixar de ser judeu? E tornar-se crítico do judaísmo, no limite anti-judaico? Se há católicos e muçulmanos (menos) que o fazem, porque não podem os judeu abjurar do judaísmo?

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
não compreendo muito bem o que motiva a tua pergunta. Mas, enfim, respondo-lhe sem rodeios, o melhor que posso: um judeu pode - e, do meu ponto de vista, fará melhor em - deixar de ser judeu, no sentido religioso, de fiel da religião mosaica, etc.
Mas isso, a um nazi, pouco importaria: o judeu continuaria a ser judeu ainda que se declarasse mais nazi do que Hitler. O problema do anti-semita é que postula um ser do judeu predeterminado, independente da sua vontade e do seu fazer, etc.
O "ódio de si" que Steiner refere não se manifesta necessariamente em quem abandone a crença mosaica (o próprio Steiner não é um judeu no sentido religioso…). Um seu exemplo clássico é o de Otto Weininger, judeu e anti-semita, que teoriza a essência judaica, ou a psicologia judaica, etc. como um traço permanente e mórbido.
Não me parece que, respondendo-te assim, tenha feito muito mais do que abrir portas abertas ou repetir coisas que sabes tão bem como eu. Mas, enfim, foi o que se pôde arranjar.
Abrç

msp

Ricardo Alves disse...

O que motivou o meu comentário foi esta parte: «O mais inquietante exemplo é talvez aquilo que Steiner chama o "ódio de si", ou "autoproscrição", do judeu, que explicaria o desconcertante anti-semitismo ou rejeição do próprio judaísmo que, desde Paulo de Tarso, é notório em numerosos intelectuais judeus (mais perto de nós, alguns houve que chegaram a aprovar Hitler)».

Eu gosto de ler o Manuel António Pina, mas «anti-semitismo» é ódio; «rejeição do judaísmo» pode ser apenas abandonar a religião judaica em si. Espantou-me que ele misturasse com tanta ligeireza as duas coisas.