26/09/10

Irlanda, os mitos e as realidades

O Miguel Noronha responde ao Luis Rainha, argumentando que a culpa da crise irlandesa não é da austeridade, mas das elevadas despesas resultantes da dívida dos bancos.

Em primeiro lugar, parece que os liberais só chegaram a essa conclusão agora - há uns meses a conversa era que a Irlanda ia no bom caminho, que as medidas de austeridade tinham sossegado os mercados, e até que já tinha saído da crise! Pelos vistos, também não davam grande importância a esse problema que agora acham determinante (ou sejam, aplaudiam entusiasticamente a redução nas despesas com salários sem perderem tempo o gigantesco aumento na despesa para salvar os depositantes dos bancos).

Mas será que a culpa da actual situação irlandesa é mesmo da elevada divida que o Estado irlandês assumiu (com a nacionalização de alguns bancos há cerca de dois anos)? Em primeiro lugar, demos que ver de qual crise estamos a falar - da crise económica (com a redução do PIB e o aumento do desemprego) ou da crise orçamental (com o Estado irlandês a pagar juros cada vez mais altos pela sua dívida)? É que, sendo problemas bastante ligados, não são exactamente o mesmo problema.

A respeito da crise económica, não vejo como o endividamento do Estado a possa ter causado directamente; claro que a causou (ou agravou - a causa em si foi mais uma bolha imobiliária ao estilo dos EUA e Espanha) indirectamente - o aumento da dívida pública levou a medidas de austeridade, que contribuíram para agravar a crise, mas de qualquer maneira será a austeridade a causa imediata da crise (outro possivel mecanismo seria, mesmo que o governo não tomasse nenhumas medidas de austeridade, os consumidores e investidores, face ao montante da dívida, assumirem que essas medidas iriam acabar mais tarde ou mais cedo por ser tomadas e começarem já a agir em conformidade - no entanto, mesmo assim, seria a austeridade - ou a sua ameaça - o razão imediata da crise). Mas, de qualquer maneira, não estou a ver como esse endividamento pode ser o responsável pelo recente agravamento da crise irlandesa: afinal, se o problema é a dívida dos bancos, esse problema existe quase há dois anos - como pode ser o responsável pela contracção da economia há 4 meses?

A respeito da crise orçamental - aí claro que as enormes dividas contraídas pelo Estado irlandês são a causa da crise orçamental, mas a mesma situação se aplica: essas dívidas existem há cerca de dois anos; como são responsáveis pelo agravamento dos juros e do risco orçamental irlandês nos últimos tempos?










A única forma que eu vejo que permita explicar, não só a má situação financeira irlandesa, mas o também o agravamento constante dessa situação, é por via dos efeitos da austeridade: ao fazer reduzir o produto, a austeridade aumenta o peso da divida externa em percentagem do produto nacional, tornando os empréstimos mais arriscados e por isso fazendo subir os juros (o que por sua vez obriga a mais cortes na despesa interna para compensar o aumento do juros, levando a uma maior contracção da economia, num ciclo vicioso - mais ou menos a situação que falei aqui).

Aliás, nem é preciso seguir a teoria económica keynesiana (para não falarmos na marxista) para chegar a esta conclusão - mesmo que aceitemos a teoria defendida por grande parte dos economistas liberais, segundo a qual politicas contracionárias não originam uma redução significativa da produção real, mas pouco mais que uma queda dos preços, o fenómeno que referi acima aconteceria: a dívida do Estado irlandês está denominada em euros (e talvez também em dólares e/ou libras esterlinas), não em unidades do índice de preços irlandês, logo mesmo que austeridade levasse apenas a uma redução dos preços sem afectar a produção e o emprego, levaria a um aumento real da dívida (já que o valor nominal da dívida mantinha-se o mesmo, com os preços e salários a descerem).

3 comentários:

Luís Serpa disse...

Se não tivesse havido o plano de austeridade a Irlanda estaria mil vezes pior.

Justiniano disse...

MM, que me recorde, os tais liberais também aturdiram contra os planos de salvamento da Banca!!

Luis Rainha disse...

Portanto, para essa criatura quem percebe mesmo do assunto é quem andou um mês a berrar que a Irlanda estava nos melhores dos caminhos. Sim senhora...