16/09/10

Ainda as traduções

A Ana Cristina Leonardo oferece-nos o caminho para Billy Budd, de Herman Melville, postando o seu início, em tradução de José Estêvão Sasportes. Até aqui, tudo bem. O pior é quando o espírito mais picuinhas se lembra de cotejar a tradução com o original. Instala-se a surpresa: há pormenores elididos, frases simplificadas, perdeu-se grande parte do colorido original. Mais estranho: o «Hansdome Sailor» passa a «Marinheiro Ideal» – deitando-se fora a vigorosa carga homoerótica que tinge toda a admiração do narrador por tais figuras sobre-humanas. Porque terão desaparecido saborosos nacos de prosa como «no perceptible trace of the vainglorious about him» ou «like a body-guard quite surround some superior figure»? Sumiram também vários traços da inevitável quaintness associada à leitura de um texto com mais de um século; o resultado (a avaliar por este início) mais parece um digest do que uma tradução fiel. E trata-se de coisa gabada!
Há opções compreensíveis e que em nada alteram o texto; mas deixar de fora palavras e frases – onde foram parar o «holiday attire» ou a diferença entre «flank» e «surround»? – já me parece francamente desrespeitoso para com a obra traduzida e, em derradeira análise, para com o leitor. Isto sem sequer mencionar minudências como a escolha de “patente” para substituir “class”; se fosse essa a ideia de Melville, ele teria por certo usado “rank”.
Por estas e por outras (incluindo o preço, claro), é que eu tendo a só ler uma tradução se não domino de todo o idioma original.

Seguem-se a passagem original, a tradução de Sasportes e uma outra versão, à la minute, bastante mais literal:


IN THE time before steamships, or then more frequently than now, a stroller along the docks of any considerable sea-port would occasionally have his attention arrested by a group of bronzed mariners, man-of-war's men or merchant-sailors in holiday attire ashore on liberty. In certain instances they would flank, or, like a body-guard quite surround some superior figure of their own class, moving along with them like Aldebaran among the lesser lights of his constellation. That signal object was the "Handsome Sailor" of the less prosaic time alike of the military and merchant navies. With no perceptible trace of the vainglorious about him, rather with the off-hand unaffectedness of natural regality, he seemed to accept the spontaneous homage of his shipmates.


Antes do aparecimento dos navios a vapor, quem se passeasse ao longo das docas de qualquer porto de considerável importância sentiria, com mais frequência do que hoje, a sua atenção desperta por um grupo de marinheiros bronzeados, da marinha de guerra ou mercante, a gozarem em terra a sua licença. Algumas vezes vê-los-ia reunidos à volta de uma figura superlativa, embora da mesma patente, caminhando juntos como Aldebarã entre as estrelas de menos intensidade da sua constelação. Este astro de primeira grandeza era o «Marinheiro Ideal» dos tempos menos prosaicos das marinhas mercante e militar. Não havia nele qualquer ostentação e aceitava essa homenagem espontânea dos seus camaradas com a simplicidade de quem vê reconhecido um direito natural.

Nos tempos antes dos navios a vapor, ou então mais frequentemente do que agora, quem passeasse pelas docas de qualquer porto marítimo considerável teria ocasionalmente a sua atenção capturada por um grupo de marinheiros bronzeados, homens de vasos de guerra ou da marinha mercante nos seus trajes de férias, de licença em terra. Em algumas ocasiões, eles flanqueavam ou, como os guarda-costas, chegavam a rodear uma figura superior, embora da mesma classe, que caminhava com eles como Aldebarã entre as luzes menores da sua constelação. Esse farol era o “Marinheiro Galante” dos tempos menos prosaicos das marinhas mercante e militar. Sem vestígio perceptível de vanglória, antes com a natural falta de afectação da realeza, ele parecia aceitar a espontânea homenagem dos seus camaradas de navio.

10 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

Lamento dizer-te, luís, mas deixando por ora de lado as "miudezas", o texto do Sasportes é mais bonito do que o teu.

Ana Cristina Leonardo disse...

Ah, claro que isto cai tb. dentro daquela discussão interminável do tradutor e do traidor.
E não esqueças que a tradução é de 63.

Miguel Serras Pereira disse...

Caros Luis e Ana Cristina,

é verdade que a versão proposta pelo Sasportes é fluente e elegante, "bem escrita" e "natural". Demasiado "natural", para dizer toda a verdade - demasido nacionalizadora, demasiado esquiva à "prova do estrangeiro" ou "da estranheza" que, segundo A. Berman, no livro do mesmo nome ("Lépreuve de l'étranger'), é o momento da verdade da tradução.Não sentimos essa rotação que, nas grandes traduções (digamos de João Barrento ou Pedro Tamen, entre alguns outros), o movimento que passa e faz comunicar uma língua e a outra, imprime, e só ele pode imprimir, na língua de chegada.
É também verdade que a tradução à la minute do Luis se ressente dessa condição e não consegue uma respiração plenamente convincente. Nem outra coisa seria de esperar num material de trabalho destinado a ilustrar simplesmente as omissões e soluções redutoras da versão Sasportes.
Mas a observação sobre a atenuação da carga erótica implícita comportada pela solução "Marinheiro Ideal" é certeira - mais certeira até do que a alternativa sugerida, demasiado "literária", "Marinheiro Galante", quando, a meu ver, "Belo Marinheiro" seria mais económica e superiormente eficaz.
Outra observação justa do Luis é a que se refere às supressões não compensadas (a supressão sob uma forma normalizadora da "realeza" parece-me imperdoável e tributária de uma excessiva moderação no esforço) e aquilo que apenas sugere quando se refere à distância temporal do texto traduzido. Mas aqui seria necessário entrar numa reflexão séria sobre a "tradução do tempo" e os seus problemas imensos: a importação, a par da estranheza incorporada, mas não reduzida, da língua estrangeira, da estranheza dos "outros tempos", se me parece ser um "must", é, como todos os outros que a tarefa do tradutor conhece, um "must" sem receita.
Enfim, isto são simplesmente primeiras impressões, mas valeria, sem dúvida, a pena levar a conversa mais longe, embora eu não esteja certo de que este seja o lugar mais adequado. Que me dizem vocês?

Abrçs para ambos

msp

Luis Rainha disse...

Ana,
O problema passa precisamente por aí. O "bonito" abafa a complexidade datada do original, reduz-lhe as arestas e anula a distância temporal que deveria sempre ser mantida, sob a pena de estarmos perante uma espécie de actualização espúria.

Miguel,
Só quanto à classificação do Marinheiro: pelo menos no Inglês de hoje, parece-me que o autor teria escrito "beautiful" se quisesse referir-se directamente à beleza do objecto de admiração. Mas tal parece-me um qualificativo demasiado "físico" para a contenção do homoerotismo nesta novela. "Galante" também significa "belo" e tem o tal sabor de coisa de antanho...
Bem, por estas e por outras é que nunca me meti a fazer traduções a sério. O maior livro que traduzi tinha 100 páginas e tomou-me meses.

Anónimo disse...

e as alternativas airoso/garboso?

antonio

Miguel Serras Pereira disse...

Luis,
justamente, "galante" explicita demasiado - mais do que "handsome" - a nota erótica em surdina que o teu ouvido tão bem identificou. Um "belo marinheiro", um "belo soldado", um "belo cavaleiro" não a suprimem - como faz "ideal" -, mas também não a declaram forçosamente. É preciso "distinguir transições": nem subtraduzir nem sobretraduzir.
Dito isto, e em intenção do Anónimo, não há soluções únicas, excepto "até mais ver" - ou em casos de terminologia técnica triviais.
Quanto ao "bonito", creio que tens razão. Na grande literatura, há, como dizia Sophia, um "rouco" - assinalando "o caos mais antigo que os deuses" subjacente à criação -, e esse "rouco", a sua aspereza, etc., deve ser também traduzido e não reduzido (como, de resto, o "rouco" umbilical da língua de partida na de recepção).

msp

Ana Cristina Leonardo disse...

Caros Luís e Miguel, é pena que esta discussão se faça tendo em cima da mesa uma tradução de 1963 que, por acaso, acho bastante aceitável (a nota erótica a atribuir ao marinheiro teria que ver com isso? Só pergunto). Por outro lado, não tenho nada contra textos bonitos. Como não tenho nada contra textos ásperos, jazísticos, estranhos ou o que for. Têm é que ser literários. A aplicação meramente funcional da língua pode ser um exercício com interesse, mas esgota-se precisamente na sua qualidade de exercício. Gostaria de deixar isto bem claro, porque terei sido mal interpretada em relação ao adjectivo "bonito". Quanto às questões da tradução, creio que basicamente há que respeitar a respiração e a musculatura do texto original. Não se pode aprimorar, nem se pode ferir os ouvidos (a língua é música, seja de que género for, e não apenas ruído ou rouco - a linguagem dos deuses não é acessível aos homens).
Não fui cotejar o texto em causa (mas o link está no meu post para quem domine o inglês... de Melville).
Quanto às duas versões aqui postadas (raio de palavra), reafirmo que, na minha pessoalíssima opinião, a de Sasportes é mais bonita.

Luis Rainha disse...

Ana,
Suponho que a data (e as circunstâncias nacionais) da tradução possa ter obrigado ao eclipse da vertente homoerótica do texto. Tremo é de pensar no que tal terá feito à obra como um todo, sendo ela toda articulada sobre relações (de poder mas não só) entre homens – se bem me lembro, até Eva se sumia da história do pecado original.
Retornando ao "bonito", concordo contigo; a versão de Sasportes é mais agradável. Mas é mais um texto do tradutor do que de Melville.
E isto causa-me alarme acrescido: não me lembro de antes ter praticado este exercício de comparação; e se uma boa tradução apresenta um tal nível de criatividade, imagino como andarão as más...

Miguel,
Tema fascinante que nunca me tinha passado pela ideia: a reconstituição da estranheza, do dépaysement que a leitura de um texto arcaico causa ao leitor contemporâneo. Actualizar ou não? E em que medida? Como traduzir expressões que entretanto deixaram de ser descodificáveis, como o “signal object” deste exemplo?
Neste momento, não te invejo o mister.

CMF disse...

Ainda não encontrei tradução decente do Moby Dick, nem em português, nem em castelhano. Por isso, não me admira isso do Billy Budd, obra menos conhecida. Tenho-o em inglês, e para já (ainda para mais com este "conselho") não penso comprar qualquer tradução.

Miguel Cardoso disse...

Cheguei tarde a esta discussão, mas venho apenas oferecer uma nota de rodapé que poderá ter algum interesse para os envolvidos. Diz respeito à semântica da palavra 'handsome'. Franco Moretti, em The Way of the World, no contexto de uma discussão de Pride and Prejudice, tem isto a dizer:
'Jane Austen, who chose her words with legendary precision, attributes the adjective «beautiful» only to the 'natural' beauty of the estate. The house, the rooms, and the furniture are not 'beautiful' - they are 'handsome'. A term that indicates a 'decorous' and 'balanced' beauty, 'without harshness', 'comfortable' (...) Repeated three times in a page to indicate objects, «handsome» reappears a page later - four times in ten lines! - to designate Darcy. // 'Handsome': a beauty that is not in the least threatening or disconcerting, not in the least autonomous. It envelops the ideal of a golden mean, of a clear and reciprocal translatability between the individual and his context."
Isto dá ao termo um sentido um pouco diferente do seu uso contemporâneo corrente.

Seria contudo necessário ter em conta as 'collocations' do termo em Billy Bud (e.g., se é usado para designar outras pessoas ou objectos), as especificidades do inglês americano de Melville, etc.

Abç

Miguel