Apesar de todas as desavenças recentes que me têm oposto à Joana Lopes e a certas posições que ela tem defendido no Brumas — a propósito, por exemplo, da candidatura "pró-governamental" e pouco democrática de Manuel Alegre —, este continua a ser um dos meus blogues de referência cuja leitura só posso recomendar como indispensável.
Este post sobre o PCP não podia ser nem mais oportuno nem mais certeiro na formulação do que nas concepções organizativas mais intimamente inseparáveis da sua prática política reproduz e consolida o modelo hierárquico de uma sociedade classista, legitimando a distinção estrutural e permanente entre governantes e governados e/ou a necessidade de "legítimos superiores" que governem e comandem a massa maioritária dos que não podem nem devem — do ponto de vista do PCP — fazer outra coisa que não seja confiar nos chefes, líderes, representantes ou "defensores" de uma vanguarda, investida de poderes absolutos, e obedecer-lhes.
Através de uma leitura tão convincente como clara das afirmações de Francisco Lopes por ocasião de uma entrevista ao DN, a Joana sublinha o modo como quando a direcção do PCP, num comunicado recente, afirma que «é ao povo cubano que compete, soberanamente, tomar as decisões que considere mais adequadas para prosseguir a construção do socialismo (…)», devemos entender que isso significa, na autorizada e não contestada interpretação de FL, que «os dirigentes cubanos têm todo o direito de pensar em cada momento quais são as formas de organização do seu Estado e dar resposta aos interesses do povo». O mesmo é dizer, como a Joana assinala, que o candidato "atribui «aos dirigentes cubanos» todo o direito de se substituírem ao povo na defesa dos seus interesses".
Seria difícil caracterizar melhor e mais sucintamente o modo como o candidato do PCP entende os direitos superiores de direcção a exercer pelo Partido sobre os trabalhadores e o conjunto dos cidadãos, bem como o modo como os dirigentes do PCP concebem os seus direitos "governantes" no âmbito interno e/ou sobre a sua área de influência política. Também não parece mais difícil compreender que modo de de produção, tipo de relações de poder e modelo de sociedade estas concepções da acção política pressupõem, actualizam ou prefiguram, quando reclamam, nos termos em que o fazem, a direcção e comando absolutos — não vinculados a outro critério ou, na realidade, interesse, que não seja o dos dirigentes esclarecidos, detentores, à maneira do Papa, do monopólio da verdade e de todo o seu esplendor — da vida social e das suas instâncias de deliberação e decisão.
20/09/10
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7 comentários:
Caro Miguel, a sua interpretaçao do sentido das palavras do Francisco Lopes é no minimo abusiva, para nao dizer mais. Perdoe-me que lhe diga, com toda a franqueza, que eu acho muito mais legitimo retirar das palavras do candidato presidencial do PCP a seguinte explanaçao:
«os dirigentes cubanos têm todo o direito de pensar em cada momento quais são as formas de organização do seu Estado e dar resposta aos interesses do povo» visto que estes dirigentes sao portadores da legitimidade democratica que lhes foi imbuida pelo recente acto eleitoral em Cuba e pelos debates francos e honestos que se têm vindo a desenvolver nos ultimos dois anos com largos sectores da populaçao e que, no actual momento, encontram-se na sua fase de conclusao.
Em suma e em sintese, onde o Miguel vê um dirigismo atroz que se substitui ao povo, eu vejo dirigentes honestamente preocupados em promover um amplo debate para conseguir com o apoio do povo um consenso nacional sobre a melhor forma de revitalizar a economia cubana. Dir-me-à que a minha visao é ideologica, e é, assim como a sua...
cumprimentos
rafael
MSG:
Conte-nos lá se o "problema" cubano não se resolveria com um desembarque na Baia dos Porcos.
Saudações anarco-revolucionárias,
MSG,
resolver-se-ia - lá como cá - muita coisa com a extensão dos direitos de cidadania no sentido do exercício do poder político (direcção da economia incluída) por órgãos de auto-governo popular.
Saudações democráticas e libertárias
msp
Caro Miguel
Nao nego a pertinencia da sua observaçao. Qualquer tipo de democracia exige a sua continua transformaçao no sentido de aproximar o mais possivel o poder de decisao, a capacidade de influir na politica dos afectados pela mesma. Mas note bem as diferenças dos processos de tranformaçao de organizaçao social na maior das antilhas e no nosso ocidente. Se é verdade que sao as organizaçoes de massas a apresentarem as propostas legislativas, estas sao feitas após largos periodos de debate nacional com uma profunda consulta popular enquanto que na nossa proto-democracia entregamo-nos à consulta dos especialistas que avalam tecnicamente a opiniao do poder dominante. E o povo, nem visto nem achado. Sao as diferenças entre a democracia participativa (ou de alta intensidade como dizia o outro) e a democracia representativa (ou de baixa intensidade)...
Caro Rafael,
sinto-me sempre um tanto perplexo quando discuto consigo. E não sei se conseguiremos chegar suficientemente longe nestas trocas de opiniões em caixas de comentários.
Como você adivinha, a democracia que me interessa é aquela a que você chama "participativa" - sendo que os regimes da parte do mundo em que vivemos, embora marcados por conquistas democráticas importantes que limitam o poder das oligarquias capitalistas, não merecem, a meu ver, que os consideremos como democracias.
Muito esquematicamente, diria, no entanto, que a participação não basta: é necessário que seja igualitária, comum, independente de tutelas e sem fronteiras superiormente definidas. Caso contrário, a participação dirigida, hierarquicamente definida ou heterónoma, tenderá a corromper a vida política e a descambar em degenerescências populistas monstruosas, um pouco do mesmo modo que a canalização ou formatação representativa imposta ao exercício de certos direitos democráticos, nas nossas sociedades, acaba por funcionar como entrave estrutural e fundamental à extensão da cidadania activa, ao desenvolvimento generalizado das suas dimensões anticapitalistas e anti-classistas.
Voltando ao princípio: o que me desconcerta pois no seu caso é ver que alguém que professa e faz sua uma concepção, nas suas linhas gerais, tão justa do "socialismo" ou da "emancipação" como democratização efectiva do exercício do poder e das relações de poder, consiga discernir num regime como o de Cuba virtualidades alternativas à dominação oligárquica que nos é imposta nesta parte do mundo.
Sinceras saudações democráticas
msp
Só na lógica manipuladora do Miguel Serras Pereira (e da Joana Lopes) é que a afirmação de que «é ao povo cubano que compete, soberanamente, tomar as decisões que considere mais adequadas para prosseguir a construção do socialismo» (do comunicado do PCP) significa, redutoramente, que «os dirigentes cubanos têm todo o direito de pensar em cada momento quais são as formas de organização do seu Estado e dar resposta aos interesses do povo» (afirmação do candidato presidencial comunista Francisco Lopes) e, descendo ainda mais no plano inclinado da deturpação, de que isso é o mesmo que dizer que o candidato comunista "atribui «aos dirigentes cubanos» todo o direito de se substituírem ao povo na defesa dos seus interesses".
Para o leitor honesto das duas afirmações (do comunicado e do candidato) é perfeitamente claro que, embora a segunda se relacione com a primeira, têm ambas a sua autonomia. Pessoalmente, até diria mais: «os dirigentes cubanos têm o DEVER de pensar em cada momento quais são as formas de organização do seu Estado e dar resposta aos interesses do povo». Mais do que todo o direito, todo o dever.
A construção do socialismo por parte de um povo, não significa nem que o pensamento do povo é substituído pelo pensamento dos dirigentes (interpretação que o MSP fraudulentamente quer colar ao candidato comunista) nem que o pensamento dos dirigentes é substituído pelo pensamento do povo, no sentido de que se devam abster de pensar, e sobretudo de pensar nas alterações institucionais e organizativas que a realidade e a população exigem ou recomendam. É que enquanto houver essa diferença “de classe” (num termo discutivelmente empregue, porque lhe retira ou menoriza a dimensão económica) entre governantes e governados - e ela existirá certamente muito tempo, mesmo em países, como Cuba, que mais avançaram no sentido de eliminá-la -, as propostas de reestruturação do modelo económico, mesmo que partam da base, de dinâmicas populares mais ou menos alargadas, exigirão sempre para a sua implementação que os órgãos do Estado as institucionalizem ou, no mínimo, as acompanhem, e que por isso os dirigentes OBRIGATORIAMENTE pensem nelas.
É evidentemente com conteúdo semelhante que deve ser entendida a resposta de Francisco Lopes.
Mas, claro, a falsificação do MSP não é inocente. Precisava de adulterar as palavras para voltar aos seus temas predilectos: a ruminação impotente sobre a democracia igualitária, que na sua boca oscila sempre entre a utopia e a reaccionarice, e a sua cruzada contra o comando absoluto que, na sua doentia visão, o PCP (ou, dentro deste, a direcção do PCP) reclamaria para o país.
Anónimo,
é evidente que temos visões diferentes do socialismo, da democracia, das condições mínimas de um e outro. Mas não lhe voiu chamar manipulador. Acentuo apenas que a democracia exige a dimensão socialista e não pode existir sem ela. E o socialismo é a democratização da economia ou a sua colectivização democrática, não sendo garantido, nem ficando sequer necessariamente mais próximo, através da sua simples nacionalização. A "nacionalização" da economia só seria um avanço socialista se democratizasse, através da participação igualitária nas decisões, a direcção política - doravante exercida pelo poder político - da economia. Caso contrário, a lógica e a realidade da organização capitalista e classista manter-se-á, através da distinção hierárquica entre os que decidem da produção, do trabalho, da repartição do produto entre investimento (e de que tipo?) e consumo, e os que eles subordinam ao seu poder (de classe).
Dito isto, o combate à hierarquia e à divisão do trabalho político entre governantes (que dispõem também do comando da produção e dos seus meios) e governados (súbditos postos a render ou explorados em benefício dos primeiros) é um primeiro passo e não um objectivo remoto. A igualdade democrática é condição necessária do começo da instituição da democracia, e sinifica fundamentalmente igualdade de poder (de rendimentos também: uma vez que o rendimento de que um indivíduo dispõe determina o peso do seu voto no mercado dos bens de consumo, e não deve haver votos que pesem mais do que outros). De resto, só esta igualdade do poder de deliberar e decidir pode assegurar também igual liberdade para todos, como só a igual liberdade e livre participação no exercício de poder de todos os cidadãos pode garantir a igualdade.
Quer isto dizer que seja verosímil fazer tudo de uma vez? Claro que não. Mas quer dizer que cada reivindicação e cada luta, cada campanha e cada proposta de acção deverão ser formuladas, conduzidas e participadas nestes termos - rejeitando todo o tipo de medidas transitórias que comprometam mais igualdade e mais liberdade desde já.
Saudações democráticas
msp
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