16/09/10

Para o debate sobre o que significa intervir democraticamente nas presidenciais

Não nego que tivesse sido possível transformar a intervenção nas eleições presidenciais numa afirmação de cidadania activa, visando a participação igualitária no exercício do poder político e uma efectiva democratização deste. Isso poderia ter sido tentado através da  carta de princípios de uma candidatura, ou até subscrita por mais do que um candidato, se disso fosse caso. Além dos pontos acima indicados, e negativamente, a referida carta de princípios deveria formular explicitamente a ideia de que os movimentos da cidadania activa e a extensão da participação democrática são incompatíveis  com a delegação em "homens providenciais" ou "chefes carismáticos" e não podem deixar de se fazer contra eles.
A condição de uma intervenção que valesse a pena nas presidenciais, através do apoio a uma candidatura, só faria sentido se não nos obrigasse a subscrever e avalizar posições e concepções que negam os propósitos de democratização e de extensão igualitária das liberdades e direitos que politicamente nos identificam como cidadãos que entendem que um poder político democraticamente legítimo só pode ser o do auto-governo, o da participação de cada um nas decisões que vinculam todos. A meu ver, uma candidatura de teor semelhante deveria nomeadamente adiantar o compromisso dos seus protagonistas (candiato e não só) com a perspectiva de uma "democratização económica" a ser inventada na acção e sem receita pronta-a-vestir e/ou a aplicar pelo reforço de uma intervenção estatal que, embora invocando a torto e a direito o "sector público", continuasse a pressupor a menorização e a redução a tarefas ancilares ou residuais do espaço público democrático, só ele capaz de levar a cabo uma repolitização alternativa da esfera económica, assente, por um lado, no desenvolvimento no seu interior da participação igualitária nas decisões e deliberações, e, por outro, na adopção de medidas de democratização do mercadoe de desmercantilização da força de trabalho, através de uma política tendente à igualdade no que se refere a salários e rendimentos. Acrescento ter por evidente que o PCP nunca aprovaria uma iniciativa semelhante - embora boa parte do seu eleitorado e até talvez das suas bases pudesse ser conquistada pela sua dinâmica, deixando cair o candidato comunista oficial (um pouco à maneira do que sucedeu quando o PCP apresentou Octávio Pato como candidato contra Otelo, nos idos de 70). Esta "convulsão" na área do PCP seria de resto salutar e abriria novas perspectivas à luta pela democratização do regime via "cidadania activa".
Não se tendo conseguido promover esta forma de intervenção "positiva" no cenário das próximas presidenciais, o fundamental parece-me agora não renunciarmos à crítica democrática das candidaturas existentes e à desmistificação das suas pseudo-alternativas. Nesse sentido,  e para esclarecer posições no debate que tem tido lugar no Vias e noutros blogues — e estou a pensar sobretudo, entre muitos outros, em posts recentes do João Tunes, do Luis Rainha, do Carlos Guedes, do Jorge Nascimento Fernandes, do Tiago Mota Saraiva, do Renato Teixeira, do João Rodrigues, do Daniel Oliveira, do João Torgal, do Paulo Jorge Vieira, da Joana Lopes, do Rui Tavares ou do Vítor Dias — retomo aqui quase sem alterações, mas sem a introdução, o texto que publiquei há meses, a meados de Janeiro, quando ainda não se perfilava a candidatura de Fernando Nobre, mas a de Alegre já pré-saíra a terreiro, no 5 dias, e cujas razões de fundo creio ser importante reafirmar neste momento.

1. Convém recordar que o Presidente da República é o “Chefe de Estado”. Como “chefe de Estado”, e enquanto o for, o Presidente é um símbolo por excelência de uma sociedade hierarquicamente organizada, assente, entre outras coisas, na distinção permanente e estrutural entre governantes e governados. A ideia de que é bom é ter um bom chefe à cabeça do Estado é apostar, mantendo a actual divisão do trabalho político, numa forma de poder que só pode impedir o caminho da sua conquista e exercício pelo auto-governo organizado e igualitário do conjunto dos cidadãos. O quadro de uma república instituída como expressão e actualização da vontade de autonomia da cidadania governante não conservaria o lugar e o cargo da “chefia do Estado”. No caso de ser necessário, em certas circunstâncias - protocolares, por exemplo –, que alguém desempenhasse o papel de “presidente da República”, isso poderia ser feito, como já defendi, por tiragem à sorte.
Há algum tempo, respondi … [a alguém], que insistia na eventual necessidade de uma organização hierárquica e com liderança clara para conquistar e impor o poder revolucionário, fazendo-lhe notar que ele permanecia prisioneiro da problemática e do “problema do bom governante ou, no sentido platónico, do político como pastor”, quando a emancipação democrática não pode deixar de, desde o primeiro momento, tentar “romper com a problemática do rebanho e as condições do arrebanhamento”. Creio que a mesma objecção vale contra os que apostam no tema das próximas eleições presidenciais sem pelo menos contestarem a instituição do chefe de Estado.
2. Como os que frequentam as discussões deste café sabem, não me tenho cansado de insistir numa concepção activa da cidadania, pelo que entendo o auto-governo dos cidadãos organizados, e na denúncia do carácter classista e anti-democrático da limitação da actividade política regular a “políticos profissionais” e “especializados”. Assim, à partida, os apelos de Manuel Alegre aos “movimentos de cidadãos”, mulheres e homens comuns que assumissem plenamente a acção política como seu direito e responsabilidade, dever-me-ia merecer aplauso e solidariedade.
Há, no entanto, o facto de Manuel Alegre ser um “político profissional” por excelência, o que o tornaria pouco indicado para encabeçar um movimento semelhante de contestação das formas que organizam a cena política dominante. No mínimo, seria necessário um gesto de ruptura com o papel até agora desempenhado, e não, como aconteceu das últimas presidenciais para cá, a sua atitude de ex-dirigente partidário e de “dirigente partidário em potência”. Até mais ver, não deixou a sua atitude de cabecilha de uma oposição frouxa à direcção actual do PS, e tudo leva a crer que uma eventual sua ruptura com o PS não o levaria a romper com a lógica do bom pastor que acima evoquei. Compete-lhe a ele provar que é capaz do contrário. E oxalá fosse capaz de tal coisa – digo-o sem grandes esperanças, mas também sem ironia.
Seja como for, uma interrogação permanece. Ainda que Manuel Alegre venha a mostrar-se capaz de satisfazer as condições em causa, será assumindo a causa de uma nova candidatura presidencial, que melhor se poderá desenvolver e propor a acção em vista da construção de uma cidadania quotidianamente activa e potencialmente governante, em que todos decidam das leis por que se governam e das leis que governam a sua actividade na esfera da produção e da economia? Será batendo-nos pela eleição de um chefe de Estado que, aos olhos da “multidão” dominada no seu dia a dia por toda a espécie de expropriações e de menorizações, expressaremos da melhor maneira a nossa vontade de autonomia e de avanço no sentido da emancipação?
3. Evidentemente, não vejo objecção de princípio a uma intervenção no cenário eleitoral, a título de combate secundário ou de “aproveitamento” que permita chamar a atenção para as questões de fundo e funcione de modo a contestar, no seu próprio campo, os princípios hierárqucos que prevalecem na cena política dominante e lhe são consubstanciais. E aqui parece-me que devemos ter em conta as circunstâncias actuais e, por assim dizer, a dimensão da conjuntura em que as próximas eleições presidenciais terão lugar.
Acontece, com efeito, que a “crise” financeira em curso acarreta ou torna mais ameaçadores os riscos veiculados por certas propostas de reforma ou redefinição dos regimes liberais abalados.
Por exemplo, as “intervenções providenciais”, acima da “política”, e desqualificando-a (mediante o aproveitamento e a insistência na “corrupção” e nos “escândalos”, bem reais, de resto), insistindo na sabedoria, na autoridade e na competência de um chefe, acima dos partidos e das classes, que “meta isto na ordem”, são efectivamente um risco no contexto actual. Os regimes de tipo fascista, na base de corporativismos vários, também se apresentavam, no seu tempo, como “sociais” – e propagavam uma concepção “providencial” do Estado, afirmando-se como uma espécie de “Estados-Providência” reaccionários, através da sua imposição dos compromissos entre os diferentes interesses de classe (“sócio-profissionais”).
Outra variante da mesma ameaça vem das vozes e pareceres dos que nos convidam a investir em “organizações de confiança”, em “direcções seguras”, em “rumos certos” definidos por ideologias, concepções, competências “firmes” e aplicados por equipas “capazes” – e para isso dotadas da “autoridade” necessária. Trata-se de uma orientação que encontramos em quadrantes que se reclamam de diferentes tradições, e assume muitas vezes a forma da reivindicação de um maior papel do Estado, ao mesmo tempo que alimenta a confusão entre “estatal” e “público”, ou identifica a defesa do “bem público” com o reforço dos aparelhos de Estado centrais e das suas competências de “direcção”, tanto da actividade económica como do espírito.
Trata-se de uma tendência bem patente, por exemplo, nalgumas “novas” versões direitistas da “doutrina social da Igreja”. E afirma-se ao mesmo tempo que, em certas forças e corrente de “esquerda” vemos uma reabilitação cada vez mais assumida do “socialismo real” à Brejnev, quando não à Estaline: significativamente, foi vendido na festa do Avante! e tem sido citado fervorosamente na blogosfera por militantes e/ou simpatizantes do PC um livro chamado Um Outro Olhar sobre Estaline, escrito por um tal Ludo Martens, m-l belga, que é um autêntico trabalho “negacionista”. O facto de a corrente m-l do autor sustentar que a URSS se tornou “social-fascista” depois de Estaline parece não incomodar um certo sector de apoiantes do PCP: aprovam Estaline, o regime que lhe sucedeu, a China maoísta e também a actual… O que é sintomático são os termos cada vez mais decididos da reabilitação e da proclamação sem complexos da nova síntese, por contraste com o reconhecimento dos erros cometidos, as alegações de ignorância dos métodos dos “partidos-irmãos” no poder, etc., que, há poucos anos ainda, definiam a posição oficial e vinculativa, se bem que, conforme os casos, mais ou menos relutante ou contrafeita, do PCP.
Valeria a pena, mas é impossível aqui, continuarmos a analisar a importância e a capacidade de influência que todo um leque de propostas muito diferentes, mas tendo em comum a valorização da autoridade do Estado, de um governo esclarecido, de uma organização correctiva, de um “poder dos melhores”, etc., acompanhada nalgumas versões da insistência no papel a desempenhar por um “timoneiro”, chefe ou condutor de forte personalidade. Terei de me limitar a sugerir para terminar que este traço do contexto conjuntural, introduzido por certas declinações da actual “crise”, deveria levar-nos a olhar com uma desconfiança democrática ainda maior um excessivo investimento da “questão das presidenciais”.

8 comentários:

Anónimo disse...

Sobre este «post», apenas um ponto que, imodéstia à parte, creio valer por muitos.

Afirma M.S.P.que «O que é sintomático são os termos cada vez mais decididos da reabilitação e da proclamação sem complexos da nova síntese, por contraste com o reconhecimento dos erros cometidos, as alegações de ignorância dos métodos dos “partidos-irmãos” no poder, etc., que, há poucos anos ainda, definiam a posição oficial e vinculativa, se bem que, conforme os casos, mais ou menos relutante ou contrafeita, do PCP.»

Para o caso de não saber, informo Miguel Serras Pereira que, em matéria de orientações e apreciações fundamentais, o documento de maior autoridade do PCP e de vinculação dos seus militantes é o seu PROOGRAMA DE PARTIDO QUE DIZ O QUE DIZ, QUE CONTINUA EM VIGOR E QUE PODE SER CONSULTADO NO SÍTIO DO PCP.

Miguel Serras Pereira disse...

Vítor Dias,
não ignoro esse documento e até já o citei num ou noutro post recente. Com sua licença, não o considero tão admirável ou convincente como você. Mas, ainda que o fosse, o problema que eu ponho é outro - e já foi aqui (http://viasfacto.blogspot.com/2010/09/limpar-o-baco-das-paredes-de-vidro.html) levantado pelo meu glorioso camarada Miguel C, com link para um post do Jorge Nascimento Fernandes, etc.
Trata-se de assinalar que, embora sem ataque ou renegação frontal das posições oficiais que você cita e outras, a reabilitação do estalinismo acompanha, de resto sem grande coerência lógica, mas com eloquência sintomática, a de Brejnev, a de Mao, a de sabe-se lá que mais, enfim de todos ou quase os casos de "únicas versões verdadeiras do leninismo", mais ferozmente opostas outrora entre si, mas que tiveram por traço comum a ditadura do Partido e a propriedade burocrática da economia.
A reedição com uma nota apologética - há alguns anos impensável como expressão não imediatamente desautorizada de um militante com responsabilidades - do chefe de redacção do Avante! da edição do Breve Curso de 1938, que é uma das ilustrações mais gritantes das falsificações históricas do glorioso "coriféu do marxismo -leninismo" José Estaline, demonstra-o à saciedade, bem como o comprova facilmente o exame atento do que se passa em certas caixas de comentários blogosféricas ou a consulta de vários sites da Net.
Eu sei - enfim, creio ou gostaria de saber - que para si, Vítor Dias, esta deriva não é propriamente euforizante. Mas só não compreendo porque é que, em vez de acusarem o mensageiro, você e outros camaradas seus não se servem justamente dos textos oficiais que me cita e recita para combaterem pública e claramente a decomposição ideológica acentuada e as manifestações mais chocantes de caceteirismo sectário e doutrinariamente absurdo que se exprimem cada vez mais alto na sua área partidária.
Podemos voltar a discutir o assunto sempre que quiser. Basta que queira fazê-lo deveras.

msp

Niet disse...

MS Pereira: Com a máxima das boas vontades- e sobretudo porque nada se passa no plano da realidade política efectiva que possa ser perturbada! -não posso deixar de relevar a tua distinção entre postadores e comentaristas, um reflexo, digamos,muito " leninista ", e que me espanta, claro, vindo da parte de um autonomista credenciado e com uma estrutural e bem experimentada experiência militante de alto valor. E como estou sob a pressão do contra-relógio da " impressão " do comentário, queria deixar esta nota de Castoriadis muito precisa e certeira, que corrobora aquilo que quero exprimir:" A divisão pertinente da sociedade, para a reflexão e a prática socio-política, já não pode basear-se em " estatutos " ou " estados ", mas nos comportamentos; e os primeiros apenas determinam cada vez menos os segundos de maneira equívoca. A divisão pertinente torna-se hoje a divisão entre os que aceitam o sistema- como os estalinistas e os burocratas de todos os bordos-e aqueles que o recusam ". Liberté et égalité ! Niet

Niet disse...

MS Pereira: Não sei que bicho te mordeu. Apresentei uma questão- para mim de certa gravidade - por todas as razões e mais algumas...- e V. Excia queda-se num mutismo insustentável. Porquê? Por andar, em permanência, a distribuir juízos qualificativos de ordem política a todo o gato-sapato?Traindo o essencial do pensamento e da memória de Castoriadis, acima de tudo. Cidadania activa, radicalidade democrática: isso são noções pré-marxistas ou anti-libertárias, que o deixam ficar muito mal perante todos os que, como eu, lhe admiravam o perfil iconoclasta e demiúrgico.E que eu, em centenas de comments,desde o início do Blogue, nunca regatei e, mais, ajudei a aprofundar com as referências do EP. Coelho, por exemplo. Niet

Niet disse...

MS Pereira: Está tudo tratado! Bom vento! E Viva o Castoriadis!Liberté et égalité. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Intempestivo, sempre intempestivo, camarada Niet:

se leres bem o que escrevo e as "definições" que proponho de "cidadania" (governante), de "democracia" (como participação igualitária de todos nas decisões comuns), etc., verás que nada têm de anti-libertário, mas antes configuram qualquer coisa como um entendimento radicalmente libertário (anti-estatal) da acção política.
De resto, o pensamento da cidadania ou autonomia demnocrática como abertura da potência instituinte no espaço público instituído do auto-governo é um aspecto central da reflexão do Castoriadis.
Confiante na tua inteligência e generosidade hermenêutica, creio não ser necessário acrescentar mais.
Saúde e liberdade

msp

alexandre o médio disse...

camaradas deliciosos que belíssima e enriquecedora e gloriosa troca de ideias adoro-vos tanto e que a coragem e a inteligencia e e os abraços sempre fortes nunca faltem na nossa dura viagem em direcção a uma sociedade fraterna cheia de livros do castoridis, afectuosos abraços meus camaradas deliciosos e gloriosos e cheios de paixão pelo castoridis.

Anónimo disse...

Hello. And Bye. fr33 pr0n this is it!