16/09/10

Não se brinca com as escolhas do Comité Central

Ricardo Araújo Pereira publicou na "Visão" sobre a escolha do candidato presidencial do PCP:

Depois de uma longa e cuidada reflexão, o Partido Comunista Português resolveu escolher, como candidato ao mais alto cargo da nação, um senhor. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de um indivíduo. E, embora possa ser precoce afirmá-lo sem investigação mais profunda, creio que estamos na presença de um cidadão. Neste momento, é tudo o que podemos dizer de Francisco Lopes - o que, não sendo pouco, na verdade é um pouco menos do que podíamos dizer de António Abreu em 2001, quando este foi escolhido pelo PCP para derrotar Jorge Sampaio. Para vencer Cavaco Silva, antigo primeiro-ministro e actual Presidente da República, o PCP aponta um candidato que nem os militantes comunistas sabem exactamente quem é. Claro que não quero com isto sugerir que as eleições presidenciais sejam um concurso de popularidade. Julgo que, apesar de tudo, os concursos de popularidade são um pouco menos frívolos.

Não posso deixar de me condoer quando penso na sorte dos especialistas em marketing que vão ser incumbidos da tarefa de elaborar os cartazes da candidatura de Francisco Lopes. Se me permitem, deixo algumas sugestões de slogans que podem vir a ser úteis em momentos de crise criativa. Por exemplo: "Vota Francisco Lopes (que é o senhor que aparece neste cartaz. A sério)." Talvez pudesse ser uma boa apresentação do candidato ao povo português. Outra hipótese: "Vota Francisco Lopes. A maior parte das pessoas que integram o comité central sabe quem ele é." É um slogan que aponta um conjunto alargado de cidadãos que podem avalizar as qualidades do candidato. Mais uma proposta, um pouco mais agressiva: "Francisco Lopes: o candidato da esquerda que o PS não apoia (até porque nunca ouviu falar nele)." Trata-se de um cartaz que farpeia o Bloco de Esquerda por se juntar ao candidato apoiado pelo partido do governo. Avançando com Francisco Lopes, o PCP sabe que não há qualquer hipótese de o seu candidato ser apoiado por mais ninguém. Por último, proponho: "Francisco Lopes. A força do carisma." Mas talvez sem a fotografia.

Sendo surpreendente, a escolha do PCP parece inserir-se no padrão de candidaturas destas presidenciais, em que os partidos de esquerda apoiam candidatos de outros partidos: o Bloco de Esquerda apoia Manuel Alegre, que é o candidato do PS, e o Partido Comunista apoia Francisco Lopes, que é o candidato do PCUS, o Partido Comunista da União Soviética. Francisco Lopes parece uma escolha de Brejnev, embora um pouco mais conservadora.

Com esta candidatura, o PCP consegue ser extravagante na ortodoxia, o que requer talento. A escolha é tão previsível que apanhou toda a gente de surpresa. E, no panorama político específico destas eleições, é única. Fernando Nobre é o candidato independente. Manuel Alegre, que nas últimas eleições era um candidato independente, nestas consegue ser, até agora, o candidato apoiado por mais partidos. E Francisco Lopes emerge como o único candidato que, sendo apoiado por um partido, é tão desconhecido no meio político como um independente. Tem tudo para agradar a toda a gente.

Pois RAP não fez rir o Comité Central (do PCP). E mereceu uma reprimenda séria assinada por um ilustre membro da Comissão Política (Vasco Cardoso):

O texto – e convido-vos a ler para que não se julgue que é falta de capacidade de encaixe da minha parte quando fazem umas piadas sobre o Partido ou sobre os comunistas – é o que vos transcrevi e pouco mais. Uma pobreza tão pobre que o que tem a mais no preconceito tem a menos em sentido de humor. Um exercício mal conseguido de ridicularização dos comunistas, que entra sem distinção para a galeria das várias peças produzidas nas últimas semanas inseridas numa operação mais vasta que visa diminuir a candidatura, ocultar o seu projecto, impedir que a discussão se faça em função do que ela é e do que propõe ao País.

Nada de que não estivéssemos à espera ou que condicione – era só o que faltava! – a grande campanha que iremos construir. Dito isto, um último registo:

Nesta «ideologia ambiente» – como alguém lhe chamou –, em que poderosos instrumentos são accionados para que todas as ideias, todas as opiniões, todas as atitudes, todas as formas de expressão crítica, artística ou criativa, incluindo o humor, se expressem com «toda a liberdade» desde que não ponham em causa a ordem estabelecida e os poderes dominantes, cada um faz as suas opções. E RAP tem feito as suas!

Que RAP, nos últimos anos, tenha ganho a vida sobretudo a ridicularizar (com enorme talento e propriedade) o primeiro-ministro e de tal forma que dificilmente se encontrará alguém que tanto tenha corroído a imagem política de Sócrates, não o exime de ser considerado um enfileirado na "ordem estabelecida" e nos "poderes dominantes". Porque estragou tudo ao brincar com as escolhas do Comité Central, o detentor exclusivo do patromónio humorístico do comunismo, como deu provas ao ter escolhido Francisco Lopes como candidato a Belém. Mas quando o Comité Central lança publicamente uma anedota isso não autoriza ninguém a rir-se dela. E, neste caso, com Francisco Lopes, a tarefa distribuída era bater palmas e não soltar gargalhadas, coisa de anticomunistas.

(publicado também aqui)

10 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Delicioso - tanto o divertido texto do RAP como o comentário do responsável. Obrigado pela dica, camarada.

Abrç grd

miguel sp

Anónimo disse...

Por mim, que já escrevi sobre este assunto, só quero dizer duas coisas:

- uma que acho de uma coerência irrepreensível os apoiantes de Alegre que, ao virar de uma esquina falam de uma «sábia» decisão do PCP e de que, para certa finalidade, melhor casndidato não havia e, logo noutra esquina, se entretêm a tentar amesquinhar e ridicularizar Francisco Lopes;

- a outra é que fico comovido até às lágrimas e tenho dolorosas insónias só de saber e de ver que tantos não comunistas e tantos adversários políticos do PCP desejavam do coração e em sofrimento que o PCP tivesse escolhido um candidato que supostamente lhe daria um magnificente score eleitoral nas presidenciais.

Não, não e não. Não vou terminar com o refrão de uma canção que em tempos muito idos foi cantada pela (minha camarada) Ivone Silva e pelo Camilo de Oliveira.

Ricardo S. Coelho disse...

Eu acho que o Comité Central nunca se ri de nada. O comunismo é uma coisa séria. Ponto final.
Claro que há alguns que cismam em fazer humor com coisas sérias. Na Coreia do Norte, onde o povo escolheu ter uma ditadura (segundo Francisco Lopes) ou uma coisa que se calhar até é uma democracia (segundo Bernardino Soares), sabem bem como tratar desta gente.

Luis Rainha disse...

Vítor,

Olha que há não-comunistas, como eu, que votam de quando em vez no PCP e têm por coisa boa que ele atinja bons scores.
Mas neste candidato não voto nem que a vaca tussa.

Anónimo disse...

Luís:

É por causa de casos como o seu que qualquer um de nós, quando escreve, mesmo que o não diga, sabe perfeitamente que toda a regra tem excepções.

LAM disse...

...Mas é caso para dizer que foi pior a emenda que o soneto.

O texto de RAP, em tom jocoso num tipo de registo de piada popular penso que não risca tinta ao candidato. Francisco Lopes é um homem desconhecido da imensa maioria das pessoas, e isso não é por certo desconhecido de quem propôs, mal ao bem não vem ao caso, o seu nome (se esse facto fosse desconhecido do CC então havia grandes motivos de preocupação). E toda a piada construída por RAP decorre daí. Nem a breve referência ao "candidato do PCUS", no sentido em que afirma que a escolha teria acontecido num órgão restrito, aparelhístico, do partido, pode levantar reacções de maior: por certo os dirigentes do PCP não querem convencer ninguém que o nome do candidato surgiu fruto do debate democrático profundo nas células de base do partido, digo eu.

E por isso digo que a emenda, o texto do dirigente do PCP, foi pior do que o soneto. Porque faz um ataque e lança suspeitas ("...cada um faz as suas opções. E RAP tem feito as suas"). Isto de uma pessoa, com muitas contradições é certo, mas que, arrisco, quase ganhou sozinho por exemplo o referendo da IVG.

(a rábula da imitação de Marcelo Rebelo de Sousa e a forma como foram inteligentemente postas a nu as contradições da direita sobre o assunto, viraram definitivamente o resultado do referendo.)

Anónimo disse...

Ora, L.A.M, apenas três coisas:

Pelo menos, o Francisco Lopes foi escolhido por um Comité Central com perto de 160 pessoas enquanto o Alegre se escolheu a si próprio, o que era motivo para nem me vir falar de aparelhos.

Quanto à ideia de que R.A.P., contra o qual - fora este texto de mau gosto - nada tenho em geral, « quase ganhou SOZINHO por exemplo o referendo da IVG», tenha santa paciência que eu já não tenho idade para ouvir histórias da carochinha.

Por fim, veja lá se é o primeiro a conseguir explicar-me como é que os «desconhecidos» se tornam conhecidos se forem sempre os comhecidos a ser escolhidos.

miguel disse...

Há ainda o "pormaior" de o apoio do BE à candidatura de Manuel Alegre ter sido publicitado pelo Coordenador do BE 4 meses antes da Mesa Nacional ter discutido o assunto.

Daniel Nicola disse...

7o virgens no céu e 160 virgens ofendidas na terra! Mas não se pode acusar o CC por falta de sentido de humor, afinal foi o CC que escolheu Francisco Lopes.

Fosse a pasta do lápis azul parar a estes senhores e só teríamos o avante com a sua Pravda!

Vitor Dias diz que apoiantes de Alegre se "...entretêm a tentar amesquinhar e ridicularizar Francisco Lopes". Até porque sobre Alegre, do PCP só se dizem ámens como os do Vidal no 5 dias...

Certo é que a esquerda vai comendo a esquerda. A Cavaco niguém dá cavaco. Depois arriscamo-nos a ter, em vez de uma eleição, uma tomada de posse para o 2º mandato.

Esta é a tragédia da esquerda: a autofagia.

LAM disse...

Vitor Dias,

Penso que mais uma vez não compreende o que eu digo. Ou eu tenho dificuldade em me fazer entender por si, o que também pode acontecer, não querendo eu supor que haja da sua parte propositada distorção do que argumentei no comentário anterior.

Francisco Lopes até podia ter sido escolhido por um Comité Central de 300 ou 400 pessoas. O que está em causa é que é um personagem não conhecido e isso é um facto que o Vitor Dias não tem como não concordar. Repare que eu não digo que daí vem algum mal ao mundo, limito-me a constatar um facto. E o texto de RAP é nisso que se foca, com os exageros próprios de uma escrita humorística.
De resto Manuel Alegre (que "se escolheu a si próprio"), é por si invocado de forma deslocada, pelo menos por 2 razões: não é perdido nem achado no tema em questão, (provavelmente prestar-se-ia a outra anedota, mas a esta não), e, como concordará, não há um mínimo de comparação entre Manuel Alegre e Francisco Lopes no que a popularidade diz respeito, e é disso que trata o texto de RAP.

Quando digo que RAP "ganhou sozinho" o referendo da IVG, era obviamente um exagero meu que pensei tivesse ficado compreensível. Erro meu, que traduzo em miúdos: quem teve um papel (e tem tido noutras intervenções públicas a propósito de outros temas cívicos) tão relevante como RAP, não pode ser objecto das palavras que o cronista do jornal Avante usa na parte final da sua crónica, salvo se a intenção seja competir no humor.

Era só, Vitor Dias. De resto acho que o tema não merece que se parta tanta pedra. Um texto de um humorista, numa coluna declaradamente humorista deve de forma sã como tal ser encarado.